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FOLHAS
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O principal Objetivo da MARTIN CLARET é continuar a desenvolver uma grande e poderosa empresa editorial brasileira, para melhor servir a seus leitores.
A Filosofia de trabalho da MARTIN CLARET consiste em criar, inovar, produzir e distribuir, sinergicamente, livros da melhor qualidade editorial e gráfica, para o maior número de leitores e por um preço economicamente acessível.
A Missão da MARTIN CLARET é conscientizar e motivar as pessoas a desenvolver e utilizar o seu pleno potencial espiritual, mental, emocional e social.
A MARTIN CLARET está empenhada em contribuir para a difusão da educação e da cultura, por meio da democratização do livro, usando todos os canais ortodoxos e heterodoxos de comercialização.
A MARTIN CLARET, em sua missão empresarial, acredita na verdadeira função do livro: o livro muda as pessoas.
A MARTIN CLARET, em sua vocação educacional, deseja, por meio do livro, claretizar, otimizar e iluminar a vida das pessoas.
Revolucione-se: leia mais para ser mais!
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COLEÇÃO A OBRA-PRIMA DE CADA AUTOR
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© Copyright desta tradução: Editora Martin Claret, 2005
Editora Martin Claret Ltda. - Rua Alegrete, 62 - Bairro Sumaré
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Agradecemos a todos os nossos amigos e colaboradores — pessoas físicas e jurídicas — que deram as condições para que fosse possível a publicação deste livro.
1ª REIMPRESSÃO - 2008
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Que é o livro? Para fins estatísticos, na década de 1960, a UNESCO considerou o livro "uma publicação impressa, não periódica, que consta de no mínimo 49 páginas, sem contar as capas".
O livro é um produto industrial.
Mas também é mais do que um simples produto. O primeiro conceito que deveríamos reter é o de que o livro como objeto é o veículo, o suporte de uma informação. O livro é uma das mais revolucionárias invenções do homem.
A Enciclopédia Abril (1972), publicada pelo editor e empresário Victor Civita, no verbete "livro" traz concisas e importantes informações sobre a história do livro. A seguir, transcrevemos alguns tópicos desse estudo didático sobre o livro.
Antes mesmo que o homem pensasse em utilizar determinados materiais para escrever (como, por exemplo, fibras vegetais e tecidos), as bibliotecas da Antiguidade estavam repletas de textos gravados em tabuinhas de barro cozido. Eram os primeiros "livros", depois progressivamente modificados até chegarem a ser feitos — em grandes tiragens — em papel impresso mecanicamente, proporcionando facilidade de leitura e transporte. Com eles, tornou-se possível, em todas as épocas, transmitir fatos, acontecimentos históricos, descobertas, tratados, códigos ou apenas entretenimento.
Como sua fabricação, a função do livro sofreu enormes modifi-
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cações
dentro das mais diversas sociedades, a ponto de constituir uma mercadoria especial, com
técnica, intenção e utilização determinadas. No moderno
movimento editorial das chamadas sociedades de consumo, o livro pode ser considerado uma
mercadoria cultural, com maior ou menor significado no contexto socioeconômico em que
é publicado. Enquanto mercadoria, pode ser comprado, vendido ou trocado. Isso
não ocorre, porém, com sua função intrínseca,
insubstituível: pode-se dizer que o livro é essencialmente um instrumento
cultural de difusão de idéias, transmissão de conceitos,
documentação (inclusive fotográfica e iconográfica), entretenimento
ou ainda de condensação e acumulação do conhecimento. A palavra
escrita venceu o tempo, e o livro conquistou o espaço. Teoricamente, toda a
humanidade pode ser atingida por textos que difundem idéias que vão de
Sócrates e Horácio a Sartre e McLuhan, de Adolf Hitler a Karl Marx.
A história do livro confunde-se, em muitos aspectos, com a história da humanidade. Sempre que escolhem frases e temas, e transmitem idéias e conceitos, os escritores estão elegendo o que consideram significativo no momento histórico e cultural que vivem. E, assim, fornecem dados para a análise de sua sociedade. O conteúdo de um livro — aceito, discutido ou refutado socialmente — integra a estrutura intelectual dos grupos sociais.
Nos primeiros tempos, o escritor geralmente vivia em contato direto com seu público, que era formado por uns poucos letrados, já cientes das opiniões, idéias, imaginação e teses do autor, pela própria convivência que tinha com ele. Muitas vezes, mesmo antes de ser redigido o texto, as idéias nele contidas já haviam sido intensamente discutidas pelo escritor e parte de seus leitores. Nessa época, como em várias outras, não se pensava na enorme porcentagem de analfabetos. Até o século XV, o livro servia exclusivamente a uma pequena minoria de sábios e estudiosos que constituíam os círculos intelectuais (confinados aos mosteiros durante o começo da Idade Média) e que tinham acesso às bibliotecas, cheias de manuscritos ricamente ilustrados.
Com o reflorescimento comercial europeu, nos fins do século XIV, burgueses e
comerciantes passaram a integrar o mercado livreiro
med.00400.009.jpg da época. A erudição laicizou-se
e o número de escritores aumentou, surgindo também as primeiras obras escritas
em línguas que não o latim e o grego (reservadas aos textos clássicos e
aos assuntos considerados dignos de atenção). Nos séculos XVI e XVII,
surgiram diversas literaturas nacionais, demonstrando, além do florescimento
intelectual da época, que a população letrada dos países europeus
estava mais capacitada a adquirir obras escritas.
Com o desenvolvimento do sistema de impressão de Gutenberg, a Europa conseguiu dinamizar a fabricação de livros, imprimindo, em cinqüenta anos, cerca de 20 milhões de exemplares para uma população de quase 10 milhões de habitantes, cuja maioria era analfabeta. Para a época, isso significou enorme revolução, demonstrando que a imprensa só se tornou uma realidade diante da necessidade social de ler mais.
Impressos em papel, feitos em cadernos costurados e posteriormente encapados, os livros tornaram-se empreendimento cultural e comercial: os editores passaram logo a se preocupar com melhor apresentação e redução de preços. Tudo isso levou à comercialização do livro. E os livreiros baseavam-se no gosto do público para imprimir, principalmente obras religiosas, novelas, coleções de anedotas, manuais técnicos e receitas.
Mas a porcentagem de leitores não cresceu na mesma proporção que a
expansão demográfica mundial. Somente com as modificações
socioculturais e econômicas do século XIX — quando o livro começou
a ser utilizado também como meio de divulgação dessas
modificações e o conhecimento passou a significar uma conquista para o homem,
que, segundo se acreditava, poderia ascender socialmente se lesse — houve um
relativo aumento no número de leitores, sobretudo na França e na Inglaterra,
onde alguns editores passaram a produzir obras completas de autores famosos, a
preços baixos. O livro era então interpretado como símbolo de liberdade,
conseguida por conquistas culturais. Entretanto, na maioria dos países, não
houve nenhuma grande modificação nos índices porcentuais até o fim
da Primeira Guerra Mundial (1914/18), quando surgiram as primeiras grandes tiragens de
um só livro, principalmente romances, novelas e textos didáticos. O
número elevado de
med.00400.010.jpg cópias, além de baratear o preço da unidade, difundiu ainda mais a
literatura. Mesmo assim, a maior parte da população de muitos países
continuou distanciada, em parte porque o livro, em si, tinha sido durante muitos
séculos considerado objeto raro, atingível somente por um pequeno número
de eruditos. A grande massa da população mostrou maior receptividade aos
jornais, periódicos e folhetins, mais dinâmicos e atualizados, e
acessíveis ao poder aquisitivo da grande maioria. Mas isso não chegou a
ameaçar o livro como símbolo cultural de difusão de idéias, como
fariam, mais tarde, o rádio, o cinema e a televisão.
O advento das técnicas eletrônicas, o aperfeiçoamento dos métodos fotográficos e a pesquisa de materiais praticamente imperecíveis fazem alguns teóricos da comunicação de massa pensarem em um futuro sem os livros tradicionais (com seu formato quadrado ou retangular, composto de folhas de papel, unidas umas às outras por um dos lados). Seu conteúdo e suas mensagens (racionais ou emocionais) seriam transmitidos por outros meios, como por exemplo microfilmes e fitas gravadas.
A televisão transformaria o mundo todo em uma grande "aldeia" (como afirmou Marshall McLuhan), no momento em que todas as sociedades decretassem sua prioridade em relação aos textos escritos. Mas a palavra escrita dificilmente deixaria de ser considerada uma das mais importantes heranças culturais, entre todos os povos.
Através de toda a sua evolução, o livro sempre pôde ser visto como objeto cultural (manuseável, com forma entendida e interpretada em função de valores plásticos) e símbolo cultural (dotado de conteúdo, entendido e interpretado em função de valores semânticos). As duas maneiras podem fundir-se no pensamento coletivo, como um conjunto orgânico (onde texto e arte se completam, como, por exemplo, em um livro de arte) ou apenas como um conjunto textual (onde a mensagem escrita vem em primeiro lugar — em um livro de matemática, por exemplo).
A mensagem (racional, prática ou emocional) de um livro é sempre intelectual
e pode ser revivida a cada momento. O conteúdo, estático em si, dinamiza-se em
função da assimilação das palavras pelo leitor, que pode
discuti-las, reafirmá-las, negá-las ou transformá-las. Por isso, o livro
pode ser considerado instrumento cultural capaz de libertar informação, sons,
imagens, sentimentos e idéias através do tempo e do espaço. A quantidade
e a qualidade de
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idéias colocadas em um texto podem ser aceitas por uma sociedade, ou por ela
negadas, quando entram em choque com conceitos ou normas culturalmente admitidos.
Nas sociedades modernas, em que a classe média tende a considerar o livro como sinal de status e cultura (erudição), os compradores utilizam-no como símbolo mesmo, desvirtuando suas funções ao transformá-lo em livro-objeto. Mas o livro é, antes de tudo, funcional — seu conteúdo é que lhe dá valor (como os livros de ciências, filosofia, religião, artes, história e geografia, que representam cerca de 75% dos títulos publicados anualmente em todo o mundo).
No século XX, o consumo e a produção de livros aumentaram progressivamente. Lançado logo após a Segunda Guerra Mundial (1939/45), quando uma das características principais da edição de um livro eram as capas entreteladas ou cartonadas, o livro de bolso constituiu um grande êxito comercial. As obras — sobretudo best sellers publicados algum tempo antes em edições de luxo — passaram a ser impressas em rotativas, como as revistas, e distribuídas às bancas de jornal. Como as tiragens elevadas permitiam preços muito baixos, essas edições de bolso popularizaram-se e ganharam importância em todo o mundo.
Até 1950, existiam somente livros de bolso destinados a pessoas de baixo poder aquisitivo; a partir de 1955, desenvolveu-se a categoria do livro de bolso "de luxo". As características principais destes últimos eram a abundância de coleções — em 1964 havia mais de duzentas, nos Estados Unidos — e a variedade de títulos, endereçados a um público intelectualmente mais refinado. A essa diversificação das categorias adiciona-se a dos pontos-de-venda, que passaram a abranger, além das bancas de jornal, farmácias, lojas, livrarias, etc. Assim, nos Estados Unidos, o número de títulos publicados em edições de bolso chegou a 35 mil em 1969, representando quase 35% do total dos títulos editados.
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"Coleção" é uma palavra há muito tempo dicionarizada e define o conjunto ou reunião de objetos da mesma natureza ou que têm alguma relação entre si. Em um sentido editorial, significa o conjunto não-limitado de obras de autores diversos, publicado por uma mesma editora, sob um título geral indicativo de assunto ou área, para atendimento de segmentos definidos do mercado.
A coleção "A Obra-Prima de Cada Autor" corresponde plenamente à definição acima mencionada. Nosso principal objetivo é oferecer, em formato de bolso, a obra mais importante de cada autor, satisfazendo o leitor que procura qualidade.*
Desde os tempos mais remotos existiram coleções de livros. Em Nínive, em Pérgamo e na Anatólia existiam coleções de obras literárias de grande importância cultural. Mas nenhuma delas superou a célebre biblioteca de Alexandria, incendiada em 48 a.C. pelas legiões de Júlio César, quando estes arrasaram a cidade.
A coleção "A Obra-Prima de Cada Autor" é uma série de livros a ser composta por mais de 400 volumes, em formato de bolso, com preço altamente competitivo, e pode ser encontrada em centenas de pontos-de-venda. O critério de seleção dos títulos foi o já estabelecido pela tradição e pela crítica especializada. Em sua maioria, são obras de ficção e filosofia, embora possa haver textos sobre religião, poesia, política, psicologia e obras de auto-ajuda. Inauguram a coleção quatro textos clássicos: Dom Casmurro, de Machado de Assis; O Príncipe, de Maquiavel; Mensagem, de Fernando Pessoa e O Lobo do Mar, de Jack London.
Nossa proposta é fazer uma coleção quantitativamente aberta. A periodicidade é mensal. Editorialmente, sentimo-nos orgulhosos de poder oferecer a coleção "A Obra-Prima de Cada Autor" aos leitores brasileiros. Nós acreditamos na função do livro.
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Finalmente, surge no Brasil a primeira tradução integral de Folhas de Relva, obra-prima do poeta norte-americano Walt Whitman. Já era tempo de nos aproximarmos dessa obra sobre a qual o sensacionista poeta Álvaro de Campos, um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa, escreveu uma candente confissão, em sua famosa "Saudação a Walt Whitman":
Nunca posso ler os teus versos a fio. . . Há ali sentir demais. . . [. . .] E cheira-me a suor, a óleos, a atividade humana e mecânica. Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo, Não sei se o meu lugar real é o mundo ou nos teus versos, Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural.De fato, Fernando Pessoa foi para os leitores de língua portuguesa o primeiro elo com Whitman. Há uma clara linha de influência entre Whitman, o poeta da Liberdade, e Fernando Pessoa, que experimenta e assim apresenta o poeta de Folhas de Relva:
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor, Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso! .......................................................................... Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos, Concubina fogosa do universo disperso,
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Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas,
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas
profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . .
[. . .] E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos
dadas,
De mãos dadas, Walt, dançando o universo na alma.
Até a idade de 36 anos, não havia sinal de que Whitman se tornaria uma importante figura literária dos Estados Unidos. Em 1855, publicou, às suas custas, a primeira edição de Folhas de Relva, contendo 12 longos poemas que causaram estranheza, silêncio, polêmica e severas críticas da imprensa e do mundo literário nos Estados Unidos. O mais eminente escritor norte-americano da época, o filósofo transcendentalista Ralph Waldo Emerson, foi a grande exceção, pois saudou o poeta com entusiasmo: "Felicito-o pelo seu pensamento livre e corajoso, o que me dá uma grande alegria. Encontro coisas incomparavelmente ditas, como o devem ser. Encontro essa ecoragem na maneira de tratar os temas, que tanto prazer dá e que só uma ampla visão pode inspirar. Saúdo-o no começo de uma grande carreira".
Whitman é hoje considerado um dos precursores da moderna literatura mundial.
Assistiu de perto às agruras da Guerra de Secessão e ao veloz crescimento
americano na segunda metade do século XIX, tornando-se o principal intérprete e
cantor dessa epopéia de contradições. Foi também poeta do corpo e do
desejo, do desafio e da exaltação mística, buscando sempre um tom
genuinamente autóctone para a poesia do Novo Mundo. Embora pouco popular até a
sua morte, Whitman granjeou para si, ainda em vida, a admiração de expoentes da
literatura mundial, como Oscar Wilde, Algernon Charles Swinburne, Robert Louis Stevenson e
Alfred Lord Tennyson, além de Emerson, já citado. O festejado erudito e
crítico norte-americano de nossos dias, Harold Bloom, considera Whitman, em uma
perspectiva histórica, o maior poeta dos Estados Unidos, ao lado de Emily Dickinson.
Diz ainda da influência que
med.00400.015.jpg essa figura representativa do transcendentalismo norte-americano exerceu
sobre ele: "No verão de 1854, o poeta leu os ensaios de Emerson com grande
atenção, e com conseqüências maravilhosas, pois foi então que
iniciou a escrever o que viria a se chamar 'Canção de mim mesmo'. As primeiras
versões registradas no caderno expressam extraordinária sensação de
alívio: Sou a tua voz — Ela estava presa em ti — Em mim
começa a falar./ Celebro a mim mesmo, para celebrar cada homem e cada mulher
vivos [. . .]".
O próprio Whitman reconheceu o efeito que as leituras de Emerson tiveram sobre si: "Eu cozinhava, cozinhava, cozinhava — Emerson me pôs em ponto de fervura".
Com Folhas de Relva, pode ser considerado um dos mais importantes precursores da poesia moderna e, sem dúvida, um dos pouquíssimos autores do século XIX a libertar-se, na América, dos modelos europeus. Guardadas as distinções peculiares, os escritores dos Estados Unidos viviam, até Whitman, a mesma contradição que os autores brasileiros experimentavam até Machado de Assis e Mário de Andrade: um hibridismo cultural que consistia em revestir os temas nacionais de códigos europeus, formas esvaziadas de sentido, deslocadas de seu processo social.
Whitman pagou um alto preço de incompreensão pela sua capacidade de inovar. Tinha consciência da importância do que estava fazendo e até tentava de diversas formas estabelecer-se no panteão dos grandes escritores de seu tempo, mas contentava-se com a repercussão escandalosa que promovia entre alguns e com a falta de interesse das massas pelos cânticos que, com tanto amor, tecera para elas. Por isso escreveu: "O meu livro é um candidato para o futuro. Toda a arte original, afirma Taine1, de qualquer modo, é regulada por si mesma, e nenhuma arte original pode ser regulada por algum fator externo; ela carrega o seu próprio contrapeso, e não o recebe de alguma outra parte — vive de seu próprio sangue — um consolo para as minhas contusões freqüentes e minha intratável vaidade". Ele sabia que os efeitos de sua obra na consciência humana surgiriam com o tempo, e vaticinava:
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Esperanças, desejos, aspirações, ponderações,
vitórias, miríades de leitores,
Revestindo, contornando, cobrindo — depois de incrustações de
eras e eras,
Somente então poderão estas canções alcançar
fruição.
Whitman acreditava ter rompido os estreitos limites do convencional. Em "Um olhar retrospectivo sobre as estradas viajadas"2, afirmava que "o Mundo Antigo teve os poemas dos mitos, das ficções, do feudalismo, das conquistas, das castas, das guerras dinásticas e de personagens e façanhas esplêndidas e excepcionais, que foram grandes; mas o Novo Mundo precisa dos poemas das realidades e da ciência, e da média democrática e da eqüidade básica, que hão de ser maiores". E realça as circunstâncias sociais que condicionaram o seu trabalho: "Sei muito bem que minhas Folhas não poderiam ter emergido ou ter sido confeccionadas em qualquer outra era que não fosse a segunda metade do século XIX, nem em outra terra que não fosse a América democrática, e nem em uma circunstância distinta do triunfo absoluto dos exércitos da União Nacional".
Os ingredientes que fizeram de Folhas de Relva uma obra
revolucionária em seu tempo são os mesmos que causaram grande polêmica na
época de seu lançamento: a escolha de temas corriqueiros, o foco sobre o homem
comum, a desabrida sensualidade, a licenciosidade poética, a linguagem às vezes
chã, as estranhas enumerações, a equiparação de valor entre corpo
e alma... Mas o que coloca Whitman na condição de gênio da literatura
mundial é o fato de ter feito tudo isso sem perder o fio da iluminação
espiritual, que é a grande causa, a causa das causas que o animam. Whitman é
menos o cantor da democracia do que o cantor do Eu profundo; por isso, sentir o
espírito de sua poesia, a sua misteriosa fórmula de sugerir sem jamais
concretizar, a sua estranha e às vezes grosseira espontaneidade lírica, é
para o leitor "de primeira viagem" o caminho mais seguro de se evitar a
frustração. Como alimento da alma, os poemas de Whitman não têm o
apelo condimentado das emoções fáceis, de uma sonoridade harmoniosa, de uma
estética superficial e dos lugares-comuns. Saboreá-lo será sempre um
exercício de paciência e de sensibilidade até que se obtenha o êxtase
de uma convivência
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sublime que somente pode se estabelecer no lugar que Fernando Pessoa denomina de "alma
interna". Nesse sentido, Whitman logrou o maior de todos os seus objetivos
literários, o de fazer com que a obra e o autor se tornassem um único
fenômeno:
Para Whitman a essência precisava exalar de sua obra a qualquer custo:
Não foi dito sobre os meus cantos que eles se afastaram da arte? Que deixei de fundir dentro deles as regras da precisão e da delicadeza? Que a pulsação comedida do lirista, a graça do templo ornamentado, que as colunas e os arcos polidos foram esquecidos? Mas tu revelaste aqui — espírito que formou este cenário, Que meus cantos lembraram-se de ti.Naturalmente, Whitman nunca ouviu falar em Teilhard de Chardin, pois no ano de seu falecimento nos Estados Unidos (1892), Chardin, com apenas 10 anos de idade, fazia na França a sua primeira comunhão. Contudo, há muitos pontos de convergência entre o que concluiu o renomado filósofo e paleontólogo francês e a essência dos versos do grande poeta do Brooklin. Estas palavras de Chardin poderiam ser tidas em muitos aspectos como o fundamento da poesia whitmaniana:
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Se a quarta citação de Chardin nos remete aos poemas sensacionistas em que Whitman sacraliza o corpo físico, descrevendo-o como um altar em que se pode encontrar a essência divina, a número cinco nos faz pensar no que diz o crítico norte-americano Harold Bloom:
[. . .] os dois maiores poetas dos Estados Unidos, Walt Whitman e Emily Dickinson, alcançam o universal através do pessoal [. . .]. Os dois poetas, ao lado de Emerson, precursor de ambos, e Henry James, são os escritores mais influentes produzidos pelos Estados Unidos até o presente. [. . .] Os pais de Whitman eram seguidores do carismático Elias Hicks, pregador quacker, rebelde contrário às doutrinas normativas da seita, e um dos fundadores implícitos do que, segundo penso, deveria ser chamado Religião Norte-Americana, a fusão pós-cristã de vertentes gnósticas, órficas e entusiásticas. Há pouca diferença entre Hicks e Emerson, na condição de oradores da Luz interior; Hicks, tanto quanto Emerson, ressaltava a divindade do Eu, e negava a singularidade de Cristo.8
O saudoso filósofo brasileiro Huberto Rohden certamente diria
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que Whitman e Pessoa
expressam poeticamente aquilo que se pode chamar em filosofia de monismo panenteísta.
Se para o monoteísta "só há um Deus", para o monista "só há Deus", ou seja, um único Ser que se
manifesta e se revela em toda a criação, estando ao mesmo tempo imanente nela e
transcendente a ela (eis o sentido das misteriosas palavras de Cristo: "Eu e o Pai somos
um. Eu estou no Pai e o Pai está em mim, mas o Pai é maior do que eu").
Há um ensaio de Rohden sobre o pensamento de Teilhard de Chardin que esclarece o assunto com bastante propriedade9. Nas últimas páginas de O Fenômeno Humano, Chardin se defende das acusações de panteísmo de que vinha sendo alvo:
Para terminar e eliminar de uma vez para sempre os receios de panteísmo, constantemente evocados a propósito da evolução por certos campeões do espiritualismo tradicional — como não ver que, no caso de um Universo convergente tal como o apresentei, longe de nascer da fusão e da confusão dos centros elementares que ele reúne, o Centro universal de unificação (precisamente para exercer a sua função motora, coletora e estabilizadora) deve ser concebido como preexistente e transcendente. Panteísmo muito real, se quiserem (no sentido etimológico da palavra), mas panteísmo absolutamente legítimo: pois se, em fim de contas, os centros reflexivos do mundo não se fazem efetivamente senão "um com Deus", esse estado obtém-se não por identificação (tornando-se Deus tudo), mas por ação diferenciadora e comungante de amor (Deus todo em todos) — o que é essencialmente ortodoxo e cristão.
Rohden lamenta que Chardin não tenha utilizado o termo panenteísmo (tudo em Deus), em vez de panteísmo legítimo:
A palavra panenteísmo (pan-en-theô) foi recomendada pelo filósofo alemão Krause para precisar a inegável verdade de que o Infinito está presente em todos os Finitos. [. . .] O monista, ou panenteísta (o "panteísta legítimo" de Teilhard de Chardin) não separa Deus do mundo nem identifica Deus com o mundo, porque sabe que, como dizia Espinoza, "Deus é a alma do Universo, e o Universo é o corpo de Deus".
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Esse panenteísmo de Espinoza aparece claro na poesia de Whitman, em versos como estes:
Vós! Vós! A vital, a universal, a gigante força sem resistência, que não dorme, sempre calma, Segurando a Humanidade em vossas mãos abertas, como se fora um brinquedo efêmero Que, doente, sempre vos esquece! Pois que também vos esqueci, (Absorvido que estava nessas pequenas potências de progresso, política, cultura, riqueza, invenções, civilização), Perdi o meu reconhecimento de vosso poder sempre controlador, vós, poderosos, agonia dos elementos, No qual e sobre o qual flutuamos, no qual todos boiamos.Em Fernando Pessoa o panenteísmo aparece vigoroso em muitos momentos. Tal como Whitman, seu mestre, o poeta sente o próprio corpo atravessado dessa luz imanente e transcendente:
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar, E que há de passar por força, porque quando quero passar sou Deus! [. . .] Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida. O espírito que dá a vida neste momento sou EU! [. . .] Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus, Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa [. . .]10É evidente que Whitman foi visto com suspeitas pelas correntes do cristianismo
tradicional de sua época, mas certamente suas crenças caberiam nesta
descrição de Rohden:
Em nossos tempos aparece número cada vez maior de homens que, para além
do cristianismo teológico, vislumbram a cristicidade
10
med.00400.021.jpg espiritual. Cada
vez maior se torna a fome duma experiência direta de Deus, em vez duma simples
crença em doutrinas sobre Deus. Essa intuição experiencial é de
uma elite ainda muito pequena em comparação com a grande massa dos que
não conseguem ultrapassar a crença tradicional.11
A mística monista de Whitman, a sua experiência de unidade cósmica, é a essência que perpassa a amplitude dos quadrantes de sua criação poética, a mesma experiência monista que embala Fernando Pessoa em sua inacreditável realização literária, a mesma elevação arrebatada e livre, a mesma transcendência às crenças infantis do dualismo que domina, há milênios, tanto a Ciência quanto a Religião. Álvaro de Campos e Whitman estão irmanados na percepção dos fenômenos quânticos que dissolvem toda a dualidade da relação sujeito/objeto: "Toda Matéria é Espírito porque matéria e espírito são nomes confusos/ dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho/ E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!", escreve o primeiro. "Cada átomo que há em mim igualmente habita em ti. [. . .] É a ânsia central em cada átomo [. . .]. Para retornar à sua divina fonte e origem, não importa a que distância esteja, potencialmente igual em todos os sujeitos e objetos, sem exceção", postula o segundo.
Harold Bloom é categórico em chamar Whitman de "O Cantor do Eu", mostrando a
posição secundária que a defesa da democracia ocupa em sua obra:
É difícil acompanhar Whitman; ele está sempre a passar e a nos
ultrapassar [. . .]. Duvido que a abrangência de Whitman tenha muito a ver com
o fato de ser ele o poeta da democracia, ainda que insistisse nessa identidade.
Whitman, na verdade, é poeta hermético, hesitante, reservado e bem mais
difícil do que se faz parecer [. . .] Sempre que penso em Whitman e recito seus
versos em voz alta, deparo-me com o elegista do eu, o poeta da "Terra Noturna". Em
Whitman, quatro grandes imagens se fundem: Noite, Morte, Mãe e Mar. Talvez o
gênio de Walt Whitman fosse mais um ponto de chegada do que de partida. Os
excluídos nele encontram voz, mas
11
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o autêntico impacto do seu cantar
não é tanto a democracia, mas o elevado custo da confirmação do
eu, uma despesa total.12
Resta-nos apresentar alguma evidência do comportamento místico de Whitman no
cotidiano para confirmar nossa tese de que a sua espiritualidade monista animava a
realização de sua obra extraordinária. Essa evidência, fomo-la
encontrar no livro-documentário Walt Whitman: Profeta da
Liberdade, de Irineu Monteiro13, que pesquisou o amplo
acervo biográfico que existe sobre o autor de Folhas de Relva.
Se é pelos frutos que conhecemos a árvore, e se Whitman sempre desejou que sua
poesia fosse uma expressão de sua personalidade espiritual, o interessantíssimo
relato que se segue fala-nos muito sobre a obra:
O Dr. Richard M. Bucke deixou observações importantes sobre Walt Whitman,
especialmente pelo fato de se haver ligado a ele pessoalmente, como amigo e atento
observador de sua personalidade e suas respostas ao mundo envolvente. Seu livro Walt Whitman, publicado em Filadélfia, por David McKay,
é de 1883. O Cosmic Consciousness é de 1901. Neste
último, Bucke destaca Whitman como inserido entre aqueles que alcançaram
experiência cósmica, de ordem espiritual, em sua criatividade
estética, na captação de mensagens que ultrapassam as fronteiras da
literatura comum, de todos os dias. "Creio que toda a percepção do poeta
— enfatiza — é excepcionalmente aguda, sua audição,
principalmente. Não há som ou modulação de som perceptível
a outrem que lhe escape, e parece que ele ouve muitas coisas inaudíveis à
gente comum. Tenho ouvido falar a respeito da percepção dele sobre o
crescimento da relva e das árvores expressando-se em folhas."
E Bucke continua suas observações, dizendo que a ocupação
favorita de Whitman parecia a de estar fora de casa, ao ar livre, em contato com a
relva, as árvores, as flores, a luminosidade solar por cima de todas as coisas,
as modulações celestes. Gostava de ouvir os pássaros cantando na
amplidão livre, os grilos, as rãs, e todos os ruídos da Natureza.
Sentia mais atração por esse mundo, essas
12
13
med.00400.023.jpg manifestações da vida, do que
pelos seres humanos protocolares e frases feitas. "Até o instante em que o
conheci, jamais podia eu imaginar que tais coisas lhe proporcionavam tanta
felicidade. Amava as flores, selvagens ou domésticas. Como gostava ele de
tantas coisas! Como parecia fazer restrições a tantas outras! Não
havia um só objeto da Natureza que não produzisse em seu espírito uma
sensação maravilhosa. Sons e imagens, manifestações vegetais,
minerais e animais provocavam nele emoções incontidas."
Continuando, Bucke comenta que ele parecia gostar de todos os homens, de todas as
mulheres e de todas as crianças com as quais se deparava. Todos os que o
conheceram podiam afirmar ser Whitman uma pessoa agradável. Também ele, em
relação aos outros. Não discutia, não falava sobre dinheiro.
Não levava muito a sério o falar em linguagem áspera a respeito de
sua pessoa ou de seus escritos. E pondera Bucke: "Isto me fazia pensar que Whitman
encontrava prazer na oposição de seus inimigos gratuitos".
Ainda mais: penetrando na intimidade da vida do poeta, disse Bucke que, ao
encontrá-lo pela primeira vez, imaginou estar ele em estado de plena
vigilância, não permitindo que sua língua deixasse escapar qualquer
expressão de desgosto, de antipatia, queixumes ou remorso. Bucke custava a crer
que tais sentimentos não participassem de suas emoções, nem o
fustigassem. Mas, depois de conhecê-lo melhor, observando-o cuidadosamente,
afirmou: "Verifiquei ser essa ausência, ou inconsciência, perfeitamente
real".
Mais: "Suas maneiras eram curiosamente calmas e, em conversações, ou em
todas as circunstâncias, raramente aparentava excitação. Jamais o vi
ficar de mau humor. Parecia sempre alegre com os que o rodeavam. Geralmente,
dispensava apresentações formais".
Ninguém, segundo Bucke, ouvia de seus lábios uma só palavra contra o
tempo, o sofrimento, as enfermidades. Sua boca era de uma pureza incomparável,
dela não saindo uma só expressão desairosa, pejorativa ou uma
blasfêmia. E tudo decorria de seu estado interior, seu equilíbrio
emocional diante dos fatos, mesmo os mais desagradáveis. Movia-se pela coragem
e pelo autocontrole.
Em seguida, explica Bucke que Whitman jamais clamava contra qualquer nacionalidade
ou categoria humana, ou períodos históricos (feudalismo, por exemplo), ou
contra quaisquer tipos de ocupações. Não se voltava contra quaisquer
animais, insetos, plantas ou seres inanimados, nem contra qualquer lei da Natureza,
ou mesmo contra os resultados dessas leis, tais como doenças, deformidades ou
med.00400.024.jpg morte. Jamais
em conversação ou em companhia de qualquer pessoa, sob quaisquer
circunstâncias, usava ele de linguagem que pudesse ser indelicada
("naturalmente usou linguagem em seus poemas que tem sido um tanto indelicada, mas
em relação a ninguém procedeu assim . . .").
Mais adiante, o clínico e observador cuidadoso acrescenta: "De fato, jamais eu
soube que ele usasse de uma só palavra ou sentimento que não pudesse ser
publicado por tornar-se prejudicial à sua fama. Nunca jurou. Nunca falou em
estado colérico e, aparentemente, nunca se irritou. Jamais exibiu medo, e
não creio que o tivesse alguma vez sentido. Conversava em tom baixo, sempre
agradável e, usualmente, o conteúdo era instrutivo. Nunca proferiu
saudações formais, cheias de mesura e de desculpas, usando as formas
comuns de civilidade tais como 'por favor', 'muito obrigado'. Sua conversa, regra
geral, consistia de assuntos correntes, fatos do dia: política, notícias
sobre política e história, tanto européias como americanas, um pouco
sobre livros, muitos aspectos da Natureza, tais como paisagens, estrelas,
pássaros, flores e árvores. Lia os jornais do dia regularmente, gostava de
boas descrições e de reminiscências. Suas maneiras eram
invariavelmente calmas e simples"14.
Tal descrição pormenorizada fala por si. Percorramos agora os versos cósmicos de Folhas de Relva, com suas maravilhosas sutilezas. Pisemos nessa relva poética como quem anda em solo sagrado, mas sem temor, sem desconfiança. Façamos como Álvaro de Campos, que, para "sentir tudo" entregou-se aos cânticos de Whitman e saiu dançando, "de mãos dadas, Walt, dançando o Universo na alma".
14
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Nada pelas palavras do meu livro,
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E que esse é o tema da guerra, da vitória, das
batalhas,
Da preparação de soldados perfeitos?
Que assim seja, respondi então,
Eu também, sombra arrogante, canto a guerra e uma guerra mais
duradoura e maior que todas as outras,
Recompensada em meu livro com diversas vitórias, com vôo,
avanço e recuo, vitória concedida e irresoluta,
(Mesmo assim, parece-me certa, ou tão boa quanto certa, ao
final), o campo de batalha é o mundo.
Pela vida e pela morte, pelo corpo e pela alma eterna,
Contemplai, eu também venho entoando o canto das batalhas,
Eu, acima de todos, promovo corajosos soldados.,
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E este é o poema do oceano.
Então, ó livro, não hesites! Antes, realiza teu destino.
Não és a reminiscência da terra solitária,
Tu também, como uma nau atravessando o éter — propósito mais
claro do que o teu desconheço — repleto sempre de fé,
Casa-te a todo navio que navega, navega tu!
Dá a eles o meu amor que vai depositado (queridos marinheiros,por vós eu
deposito aqui o meu amor em cada folha);
Corre, meu livro! Espalha tuas velas brancas, minha ínfima nau, através
das ondas imperiais.
Prossegue cantando, navega adiante, desentranha o azul infinito de mim e
lança, em cada mar,
Esta canção por todos os marinheiros e suas naus.
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Sempre o pálido começo,
Sempre o crescimento, o arredondamento do círculo,
Sempre o ápice e o amálgama afinal (para o certo recomeço),
Espectros, espectros!
Sempre mutáveis,
Sempre materiais, transformando-se, fazendo-se em migalhas, readerindo,
Sempre os ateliês, as fábricas divinas,
Editando espectros.
Veja-se, eu ou tu,
Ou mulher, ou homem, ou estado, conhecido ou ignorado,
Nós parecemos sólida riqueza, força, beleza construída,
Mas de fato erguemos espectros.
A ostentação evanescente,
A substância do humor de um artista ou a longa observação da
savana,
As armadilhas de um guerreiro, de um mártir, de um herói,
Para talhar seu espectro.
De toda a vida humana,
(As unidades juntas, protegidas, nem um pensamento, a emoção, a
realização, deixados de fora)
O todo ou o grande ou o pequeno somado, adicionado,
Em seus espectros.
O velho, o antigo anseio,
Baseado nos clássicos pináculos, veja os novos, mais altos
pináculos,
Da ciência e do moderno ainda impelidos
Pelo velho, antigo anseio, espectros.
O presente, aqui e agora,
Da América, o ocupado, o prolífico, o intrincado turbilhão,
De agregado e segregado, porque dali apenas deixando ir,
Os hodiernos espectros.
Esses com o passado,
De terras esvaecidas, de todos os reinos de reis de além mar,
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Velhos conquistadores, velhas campanhas, velhas viagens de marinheiros,
Juntando-se aos espectros.
Densidades, crescimento, fachadas,
Estratos de montanhas, terras, rochas, árvores gigantes,
Nascidos à distância, à distância morrendo, vivendo
longamente, para deixar,
Espectros perpétuos.
Exaltado, arrebatado, extático,
O útero visível, mas deles desde a origem
De esféricas tendências para talhar e talhar e talhar,
A poderosa Terra-espectro.
Todo espaço, todo tempo,
(As estrelas, as terríveis perturbações dos sóis,
Dilatando-se, desmoronando, acabando, servindo seu propósito mais breve ou
duradouro),
Plenos de espectros somente.
Miríades silenciosas,
Os oceanos infinitos onde os rios deságuam,
As incontáveis identidades livres, separadas, como visão,
As verdadeiras realidades, espectros.
Não é este o mundo,
Não são esses os universos, eles os universos
Significam e terminam, sempre a permanente vida da vida,
Espectros, espectros.
Além de tuas aulas, erudito professor,
Além de teu telescópio ou espectroscópio aguçado,
observador,além de toda matemática,
Além da cirurgia dos médicos, da anatomia, além dos químicos e
sua química,
As entidades das entidades, espectros.
Soltos, ainda que presos,
Sempre serão, sempre foram e são,
Varrendo o presente para o futuro sem fim,
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Espectros, espectros, espectros.
O profeta e o bardo
Devem embora manter-se em estágios ainda mais elevados,
Devem mediar para o moderno, para a Democracia, ser intérpretes deles
ainda,
Deus e espectros.
E tu, minha alma,
Alegrias, exercícios incessantes, exaltações,
Teus anelos amplamente atendidos finalmente, preparados paraencontrar,
Teus companheiros, espectros.
Teu corpo permanente,
O corpo espreitando lá dentro de teu corpo,
O único sentido da forma de tua arte, o verdadeiro Eu, eu mesmo,
Uma imagem, um espectro.
Tuas próprias canções fora de tuas
canções,
Sem tensões especiais para cantar, nenhuma por si mesma,
Mas do resultado total, erguendo-se finalmente e flutuando,
Um giro em círculo total do espectro.
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(Como se qualquer homem soubesse realmente algo sobre a minha vida,
Quando até eu mesmo sempre penso saber pouco ou nada sobre minha vida real,
Apenas algumas dicas, umas poucas dicas pálidas difusas e despistes
Que procuro para meu uso próprio na trilha aqui de fora.)
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Uma vez completa escravatura, nenhuma nação, estado, cidade desta terra,
resgatará sua liberdade desse dia em diante.
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Não fecheis as vossas portas
Não fecheis para mim as vossas portas, orgulhosas bibliotecas,
Pois o que estava faltando em vossas bem fornidas prateleiras, ainda que tão
pobres, eu trago,
Da guerra recém-saído, um livro eu preparei,
Nada pelas palavras do meu livro, por seu sentido, tudo,
Um livro que existe por si mesmo, sem relação alguma com os demais e que
não tem sentido se lido apenas com o intelecto,
Mas vós, em vossos silêncios latentes, haveis de tremer a cada página,
assombrados.
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Que curioso, que real!
Sob os pés, o solo divino, o sol sobre a cabeça.
Vê o globo que gira,
Os continentes ancestrais, distantes uns dos outros, agrupados,
Os continentes presentes e futuros, norte e sul, com os istmos entre eles.
Vê os espaços vastos sem ter trilhos,
Como num sonho mudam e se enchem prontamente,
Massas incontáveis sobre eles desembocam,
Cobertos agora com os povos mais ousados — artes, instituições
— conhecidos.
Vê, projetada pelo tempo,
Para mim uma audiência inacabável.
Com passo firme e regular eles caminham, e nunca cessam,
Sucessões de homens, americanos, cem milhões,
Uma geração, vivendo a sua parte, passa,
Uma outra geração, vivendo a sua parte, passa por sua vez,
Com suas faces voltadas para os lados ou para trás, em minha
direção para me ouvir,
Com olhos retrospectivos para mim.
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E vós, precedentes, uni-vos amavelmente a elas, porque elas a vós se
unem amavelmente.
Aprendi a antiguidade,
Sentei-me para aprender aos pés dos grandes mestres,
Agora, se eu for digno, ah, que possam os grandes mestres volver e me
estudar.
Em nome destes Estados, devo eu menosprezar o passado?
Ora estão aqui os filhos do passado para justificá-lo.
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Quero fazer os poemas da materialidade, pois penso que serão entre todos os
mais espirituais,
E farei os poemas do meu corpo e do que há de mortal,
Pois creio assim estar a mim mesmo concedendo os poemas de minha alma e da
imortalidade.
Tecerei um cântico a estes Estados para que Estado algum, em
circunstância alguma, esteja sujeito a outro Estado,
E entoarei uma canção para que exista polidez noite e dia entre todos
os Estados e entre dois deles quaisquer.
E farei uma canção para os ouvidos do Presidente, cheio de armas com
pontas ameaçadoras,
E, por trás das armas, incontáveis faces insatisfeitas;
E a canção que eu teço é do Um que é feito do
amálgama de todos,
Esse Um cintilante e armado cuja cabeça se eleva sobre todos,
Resoluto e guerreiro Um inclusivo e acima de todos,
(Por mais alto que se eleve qualquer cabeça, aquela cabeça
permanecerá por cima).
Reconhecerei as terras hodiernas,
Palmilharei a inteira geografia da terra e saudarei cordialmente cada cidade
grande ou pequena,
E os empregos! Porei em meus poemas que em vós está o heroísmo
sobre a terra e sobre o mar,
E contarei o heroísmo sob o ponto de vista americano.
Cantarei a canção do companheirismo,
Quero mostrar o que sozinho deve enfim unir-se a estes,
Creio que estes hão de encontrar seu ideal de humano amor indicando-o em
mim,
E eu, assim, permitirei que flamejem em mim os fogos abrasadores que
ameaçavam consumir-me,
Erguerei o que por muito tempo manteve tíbio esse fogo que queima sem ter
chamas,
Eu lhes darei completa liberdade,
Escreverei o poema, evangelho de camaradas e de amor,
Pois quem, senão eu, deveria entender o amor com toda a sua
aflição e alegria?
E quem, senão eu mesmo, deveria ser o poeta dos camaradas?
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Está bem — contra isso não digo uma palavra, eu sou também
poeta deles,
Mas contempla! Uma tal queda é repentina: ser queimado em nome da
religião.
Nem toda matéria promove o calor, a flama intangível, a vida essencial
da terra,
Tudo isso não é apenas para a religião.
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Esbaforiu-se e cingiu-se em minha volta aquele que a ele me prende,
Tanto quanto eu vivo abraçado aos céus e ao mundo espiritual
inteiro,
Após o que eles me criaram soprando tantos temas.
Ah, tais temas! — igualdades! Ah, divina média!
Gorjeios sob o sol, introduzidos como agora, ou ao meio-dia, ou no
crepúsculo,
Tensões da música que flui pelas eras, agora chegando até
aqui,
Eu tomo as tuas cordas imprudentes e compostas, a elas acrescento e alegremente
passo-as adiante.
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E também os vossos cantos, criminosos foras-da-lei, pois eu vos fito com
olhos consangüíneos e vos trago comigo iguais aos outros.
Tecerei o verdadeiro poema das riquezas,
Ganhando para o corpo e para a alma tudo o que adere e vai adiante e não
é suprimido pela morte;
Entornarei o egotismo e revelarei que a tudo ele dá base e serei o bardo da
personalidade.
E mostrarei do masculino e do feminino que cada qual é apenas aimagem um do
outro,
E os órgãos sexuais e os atos! Concentrai-vos em mim, pois estou
determinado a contar-vos, com voz corajosamente clara, para provar-vos
ilustres.
E revelarei que não há imperfeição no presente e que ela
também não pode existir no futuro,
E mostrarei que tudo o que acontece a uma pessoa qualquer pode redundar em
maravilhosos resultados,
E provarei que nada pode ocorrer a alguém que seja mais belo do que a
morte,
E enfiarei um raio de luz através de meus poemas que farão do tempo e
dos eventos um mesmo ser compacto.
E verás que todas as coisas do Universo são milagres perfeitos, cada um
tão profundo quanto o outro.
Não escreverei meus poemas em referência às partes,
Mas escreverei poemas, canções, reflexões, com referência ao
conjunto,
E não cantarei fazendo referência a um só dia, mas farei
referência a todos os dias,
E não farei um poema, nem a mínima parte de um poema, para referir-me
exclusivamente à alma,
Pois tendo observado os objetos do universo, descubro que não há
qualquer um deles, e nem sequer uma partícula de um deles, que não seja
uma referência à alma.
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Como pode algum dia o corpo real morrer e ser enterrado?
No vosso corpo real, e qualquer corpo verdadeiro de homem ou de mulher,
Item por item confundirá as mãos dos preparadores de cadáver e
passará às esferas adequadas,
Levando aquilo que proveio do momento do nascimento até o momento da
morte.
As letras pelo tipógrafo dispostas geram a impressão, o sentido, a
idéia central,
Tanto quanto a substância e vida de um homem ou a vida e substância de
uma mulher são gravados no corpo e na alma,
Antes e depois da morte, indiferentemente.
Notai, o corpo contém e é o sentido, a idéia central; ele
contém e é a alma;
Quem quer que sejais vós, quão soberbos e divinos são os vossos
corpos, ou qualquer parte deles!
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Terra do Ontário, Erie, Huron, Michigan!
Terra dos Treze Antigos! Terra de Massachusetts! Terra de Vermont e
Connecticut!
Terra das costas oceânicas! Terra das serras e dos picos!
Terra de barqueiros e marinheiros! Terra de pescadores!
Inextricáveis terras! Unidas! Apaixonantes!
Lado a lado! Os irmãos mais velhos e os mais jovens! Os ossos em seus
membros!
A terra das grandes mulheres! O feminino! As irmãs experientes e as
irmãs inexperientes!
Terra das brisas longínquas! Suportada pelo Ártico! Bafejada pelas
brisas mexicanas! Diversificada! Densa!
As da Pensilvânia, as da Virgínia, as das duas Carolinas!
Ah, todos bem amados por mim! Minhas intrépidas nações! Ah, eu em
todos os graus abraço-vos com perfeito amor!
Eu não posso de vós me desligar! De nenhum de vós mais cedo do que
o outro!
Ah, morte! Ah, por tudo aquilo, eu sou ainda por vós não enxergado
nesta hora com amor irreprimível,
Andando pela Nova Inglaterra, um amigo, um viajante,
Usando meus pés descalços, para espirrar a água das ondinhas de
verão, nas bordas das areias, em Paumanok.
Cruzando os prados, vivendo em Chicago uma vez mais, vivendo em toda cidade,
Testemunhando espetáculos, nascimentos, progresso, estruturas, artes,
Ouvindo oradores e oradoras falar em átrios públicos,
Nestes Estados, deles e através deles, cada homem e mulher, um vizinho
meu.
Os da Louisiana, os da Geórgia, tão próximos de mim, tal como eu
tão próximo deles e delas,
Os de Mississippi e os de Arkansas até agora comigo, e eu até agora com
qualquer um deles,
E também sobre as planícies, a oeste do rio raquiano, ainda em minha
casa de argila,
E também voltando para o Leste, e ainda no Estado costeiro ou em
Maryland,
E também os canadenses, alegremente suportando o inverno, a neve e o gelo,
são bem-vindos para mim,
E também um filho verdadeiro do Maine ou dos Estados do Granito, ou do
Estado da Baía de Narragansett, ou do Estado do Império,
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E também navegando a outras praias para juntar-me aos mesmos, dando ainda as
boas-vindas para cada novo irmão,
Aqui introduzindo estas folhas para os novos do momento que se unem aos
antigos,
Eu venho entre os novos para ser deles companheiro e igual, vindo a vós
pessoalmente agora,
Ordenando-vos para ações, personagens, espetáculos, comigo.
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Vede os mecânicos ocupados em seus assentos com as ferramentas — vede
que entre eles emergem juízes superiores, filósofos, presidentes, vestidos
em roupas de operário,
Vede, caminhando entre as lojas e os campos dos Estados, eu bem amado,
abraçadinho dia e noite,
Ouvi os altos ecos de meus cantos lá — lede as sugestões que chegam
afinal.
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Eu me refugio pelo bem e pelo mal, eu permito que se fale em qualquer
casualidade,
A natureza sem estorvo, com energia original.
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alimentarás outra vez dos fantasmas que há nos
livros.
Do mesmo modo não verás mais através de meus olhos, nem tampouco
receberás coisa alguma de mim,
Ouvirás o que vem de todos os lados e saberás filtrar tudo por ti
mesmo.
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Nenhuma polegada ou qualquer partícula de uma polegada é vil e nenhum
será menos familiar que o resto.
Estou satisfeito — vejo, danço, rio, canto;
Quando o companheiro amoroso dorme abraçado a mim a noite inteira e depois
vai embora ao raiar do dia com passos silenciosos,
Deixando-me cestas cobertas com toalhas brancas enchendo a casa com sua
exuberância,
Devo adiar minha aceitação e compreensão e gritar pelos meus
olhos,
Para que deixem de fitar a estrada ao longe e para além dela
E imediatamente calculem e mostrem-me para um centavo,
O valor exato de um e o valor exato de dois, e o que está à frente?
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Imagino que seja o lenço do Senhor,
Um presente perfumado, uma lembrança deixada para nós como um
desígnio,
Tendo o nome do dono gravado de algum modo nos cantos, para que possamos ver e
destacar, e dizer De quem?
Ou é possível que a relva ela mesma seja uma criança, o bebê
criado pela vegetação.
Imagino que seja um hieróglifo uniforme,
E significa que brota tanto nas zonas largas quanto nas estreitas,
Crescendo tanto entre os negros quanto entre os brancos,
Canadenses, tuckahoes, congressistas, presos — eu dou a eles o mesmo, eu
deles recebo o mesmo.
E agora me parece que ela é o lindo cabelo longo dos túmulos.
Com carinho eu te usarei, relva crespa,
Pode ser que transpires do peito de jovens rapazes,
Pode ser que se eu os tivesse conhecido eu os teria amado,
Pode ser que venhas dos velhos, ou de recém-nascidos arrancados
prematuramente do colo de suas mães,
E aqui tu te transformas em colos de mãe.
Esta relva é muito escura para que provenha dos cabelos brancos das
mães,
Mais escura que as barbas sem cor dos anciãos,
Escura para vir de sob os desfalecidos céus vermelhos das bocas.
Ah! percebo afinal tantas línguas pronunciando,
E percebo que elas não vêm dos céus da boca à toa.
Eu gostaria de poder traduzir as insinuações sobre os rapazes e as
moças mortas,
E as insinuações sobre os velhos e as mães, e das criancinhas que
foram levadas prematuramente dos colos.
O que achas que foi feito dos jovens e dos velhos?
E o que achas que foi feito das mulheres e das crianças?
Eles estão vivos e bem em alguma parte,
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O brotinho é a prova de que de fato não há morte,
E se acaso algum dia ela existiu, conduziu-se adiante para a vida; não ficou
à espera no final para prendê-la,
E deixou de ser a morte no momento em que a vida apareceu.
Tudo avança e se expande, nada entra em colapso,
Morrer é algo diferente do que qualquer um pode supor, é uma sorte
maior.
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grossa caía sobre os braços voluptuosos e
alcançava até os pés.
O escravo fugitivo chegou à minha casa e parou lá fora,
Ouvi os movimentos com os quais ele quebrou os gravetos na pilha de lenha,
Pela porta entreaberta da cozinha, eu o vi hesitante e frágil,
E fui até o tronco em que ele se sentava, trouxe-o para dentro e o
acalmei,
Trouxe água e enchi uma banheira para o seu corpo suado e seus pés
feridos,
Dei-lhe um quarto contíguo ao meu, dei-lhe algumas roupas ordinárias e
limpas,
Lembro-me perfeitamente bem de seus olhos agitados e de seu constrangimento,
E lembro-me de colocar emplastros nas escoriações de seu pescoço e
de seus tornozelos;
Ele ficou comigo durante uma semana até se recuperar e continuar sua jornada
para o norte,
Eu fazia com que se sentasse ao meu lado na mesa, meu mosquete encostado a um
canto.
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Pequenos riachos passaram pelos corpos deles.
Uma mão invisível também passou pelos seus corpos,
Descendo trêmula de suas frontes e costelas.
Os rapazes bóiam de costas, suas barrigas brancas salientes estão
voltadas para o sol, eles não perguntam quem os segura com tanta rapidez,
Não sabem quem sopra e se debruça como um arco pendente que se
curva,
Eles não imaginam a quem encharcam quando borrifam a água.
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Contemplo o gigante pitoresco e o amo, e não paro por lá,
Sigo com a equipe também.
Em mim aquele que faz carícias na vida para onde quer que se mova,
voltando-se para frente ou para trás,
Debruçado sobre nichos laterais e novos, não perco qualquer pessoa ou
objeto,
Absorvo tudo para mim mesmo e para esta canção.
Bois sacudindo ruidosamente o jugo e as correntes ou parando sob a sombra das
folhas, o que é que expressais em vossos olhos?
Isso me parece mais do que todo impresso que já li em minha vida.
Meus passos assustam o pato selvagem e sua fêmea nesse passeio distante que
dura o dia inteiro,
Eles se erguem juntos, eles voam em círculos com lentidão.
Eu creio nesses propósitos alados,
Reconheço o vermelho, o amarelo, o branco, brincando comigo,
E considero o verde e o violeta e a coroa plumada intencional,
E não desprezo o valor da tartaruga porque ela é algo mais,
E o gaio na floresta nunca estudou a escala musical, e ainda assim gorjeia
belamente em meu conceito,
E o olhar da égua baia revela a vergonha de minha estupidez.
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Estou enamorado da experiência de crescer ao ar livre,
Entre os homens que vivem entre o gado ou degustam os oceanos ou as
florestas.
Entre os construtores e capitães de navios, os que empunham machados e
marretas e os que conduzem cavalos,
Posso comer e dormir com eles semana após semana.
O que é mais comum, mais barato, mais próximo, mais fácil, sou
Eu,
Eu me lançando sobre as minhas chances, investindo para alcançar um
retorno vasto,
Enfeitando-me para me entregar ao primeiro que me escolher,
Sem pedir ao céu que baixe para a minha boa vontade,
Espalhando-a livremente para sempre.
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O rapaz dirige o vagão expresso (eu o amo, apesar de não
conhecê-lo);
O mestiço calça suas botas leves para competir na corrida,
O tiro ao peru no Oeste atrai velhos e moços, alguns se apóiam em seus
rifles, outros sentam-se em troncos de madeira,
Destacado da multidão, o atirador caminha, toma a sua posição, faz
mira;
Os grupos de recém-chegados imigrantes cobrem o ancoradouro ou a doca,
Enquanto os negros capinam nas plantações de cana-de-açúcar, o
supervisor os observa do alto de sua sela,
A corneta toca no salão de baile, os cavalheiros perseguem suas parceiras, os
dançarinos fazem mesuras,
O jovem deita-se desperto no sótão de telhado de cedro e ouve atentamente
a chuva musical,
O caçador em Michigan põe armadilhas no riacho que ajuda a encher o
Huron,
A índia embrulhada em seu pano amarelo embainhado está oferecendo
mocassins e sacos de contas,
O especialista observa a galeria com olhos semi-abertos, inclinando- se para o
lado,
Enquanto os marinheiros aceleram o barco a vapor, a prancha é lançada aos
passageiros que ficarão em terra,
A irmã mais nova agarra-se à meada, enquanto a mais velha faz uma bola de
novelo, e pára às vezes para desatar os nós,
A mulher casada há um ano se recupera e está feliz, tendo dado à luz
seu primeiro filho há uma semana,
A jovem ianque de cabelos limpos trabalha em sua máquina de costura ou na
fábrica ou no moinho,
O pedreiro se apóia em seu martelo de duas alças, o lápis do
repórter desliza suavemente sobre o caderno, o pintor de sinais está
escrevendo em azul e dourado,
O menino do canal trota pelo caminho do reboque, o guarda-livros calcula em sua
mesa, o sapateiro encera a sua fibra,
O maestro marca o compasso da banda e todos os músicos seguem seu comando,
A criança é batizada, o convertido faz suas primeiras profissões de
fé,
A regata está esparramada pela baía, a corrida começou (como as
velas brancas brilham!)
O vaqueiro guardando seu rebanho orienta os animais que iriam se perder,
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O mascate com a mercadoria em suas costas (o comprador pechincha cada centavo);
A noiva alisa seu vestido branco, o ponteiro de minutos do relógio se move
vagarosamente,
O viciado em ópio reclina a cabeça rígida com os lábios
entreabertos,
A prostituta arrasta o xale, sua touca bamboleia em seu pescoço ébrio e
marcado,
A multidão acha graça em suas blasfêmias injuriosas, os homens dela
escarnecem piscando uns para os outros,
(Miserável! Eu não rio de tuas injúrias nem zombo de ti);
O Presidente realizando uma reunião de gabinete é cercado por seus
grandes Secretários de Governo,
Na praça caminham três matronas faustosas e amigáveis, de
braços dados,
A tripulação do navio pesqueiro acumula camadas de linguado no
estoque,
O morador do Missouri atravessa as planícies carregando suas mercadorias e seu
gado,
Enquanto o cobrador vai pelos corredores do trem denunciando sua presença pelo
retinir das moedas,
Os trabalhadores estão assentando o piso, os estanhadores estão
revestindo o telhado, os pedreiros pedem mais argamassa,
Em fila indiana, cada um tendo sobre os ombros o seu balde, passam adiante os
trabalhadores;
De estação em estação, a multidão indescritível se
reúne, é o quarto dia do sétimo mês (que saudações de
canhão e pequenos exércitos!)
De estação em estação o arado ara, o ceifador ceifa e os
grãos de inverno caem no chão;
Lá nos lagos o pescador de lúcio observa e aguarda junto ao buraco na
superfície congelada,
Os tocos grossos de pé em torno da clareira, o posseiro acerta a fundo com seu
machado,
Os condutores da chalana ancoram ao entardecer, perto dos algodoeiros e das
nogueiras pecãs,
Os caçadores de escravos atravessam as regiões do Rio Vermelho, ou
aquelas que são banhadas pelo Tennessee, ou as do Arkansas,
Tochas brilham na escuridão que pende sobre os Chattahooche ou Altamahaw,
Patriarcas sentam-se para jantar, tendo ao redor seus filhos, netos e bisnetos,
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Entre paredes de argila, em tendas de lona, descansam caçadores e armadores
depois do seu dia de esporte,
A cidade dorme e dorme o campo,
Os vivos dormem para seu tempo, os mortos dormem para o seu,
O velho marido dorme ao lado da esposa e o marido jovem dorme ao lado da
esposa;
E eles vêm para o meu interior, e eu saio ao seu encontro,
E tal como aquilo que pertence a eles, mais ou menos eu sou,
E de cada um deles, e de todos, eu teço a canção de mim mesmo.
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Um fazendeiro, mecânico, artista, cavalheiro, navegante, quacre,
Prisioneiro, proxeneta, arruaceiro, advogado, médico, sacerdote.
Resisto a qualquer coisa melhor do que à minha própria diversidade,
Respiro o ar, mas deixo muito dele atrás de mim,
Não sou presunçoso, e ocupo o meu posto.
(A mariposa e as ovas de peixe estão em seus postos,
Os sóis brilhantes vejo e os sóis escurecidos que eu não posso ver
estão em seus postos,
O palpável está em seu posto, o impalpável está em seu
posto).
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E os incontáveis heróis desconhecidos, tão grandes quanto os
grandes e aclamados heróis!
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Não lanço a lamúria da minha lamúria pelo mundo inteiro,
De que os meses são vazios e o chão é lamaçal e sujeira.
Choradeira e servilismo são encontrados junto com os remédios para
inválidos, a conformidade polariza-se no ordinário mais remoto.
Uso meu chapéu como bem entender dentro ou fora de casa.
Por que eu deveria orar? Por que deveria venerar e ser cerimonioso?
Tendo inquirido todas as camadas, analisado as minúcias, consultado os
doutores e calculado com perícia,
Não encontro gordura mais doce do que aquela que se prende aos meus
próprios ossos.
Em todas as pessoas enxergo a mim mesmo, em nenhuma vejo mais do que eu sou, ou
um grão de cevada a menos.
E o bem e o mal que falo de mim mesmo eu falo delas.
Sei que sou sólido e sadio.
Para mim os objetos convergentes do universo perpetuamente fluem,
Todos são escritos para mim, e eu devo entender o que a escrita
significa.
Sei que sou imortal,
Sei que a órbita do meu eu não pode ser varrida pelo compasso de um
carpinteiro,
Sei que não passarei como os círculos luminosos que as crianças
fazem à noite, com gravetos em brasa.
Sei que sou augusto.
Não perturbo meu próprio espírito para que se defenda ou seja
compreendido,
Vejo que as leis elementares nunca pedem desculpas,
(Reconheço que me comporto com um orgulho tão alto quanto o do
nível com que assento a minha casa, afinal).
Existo como sou, isso me basta,
Se ninguém mais no mundo está ciente, fico satisfeito.
E se cada um e todos estiverem cientes, satisfeito fico.
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Um mundo está ciente e esse é incomparavelmente o maior de todos para
mim, e esse mundo sou eu mesmo,
E se venho para o que é meu, ainda hoje ou dentro de dez mil anos, ou dez
milhões de anos,
Posso alegremente recebê-lo agora, ou esperá-lo com alegria igual.
Meus pés estão espigados e encaixados no granito,
Debocho daquilo que chamas de dissolução,
E conheço a amplitude do tempo.
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Terra do cinza límpido, das nuvens que são mais brilhantes e mais
claras em meu nome!
Terra angulada dos grandes precipícios — terra rica em flores de
macieira!
Sorria, teu amante está chegando.
Pródiga, tu me deste amor — assim sendo eu também te dou
amor!
Ó amor apaixonado e indizível.
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Eu molho a raiz de tudo o que cresceu.
Temias alguma escrófula após a persistente gravidez?
Pensavas que as leis celestiais precisariam ser aperfeiçoadas e
corrigidas?
Encontro de um lado o equilíbrio e do lado oposto um equilíbrio,
Uma doutrina maleável é tão segura quanto uma doutrina
estável,
Pensamentos e feitos do presente são nosso despertar e nosso início
prematuro.
Este minuto que me chega após os decilhões passados,
Não há nada melhor do que ele agora.
O que se comportou bem no passado ou se comporta bem no presente não é
por isso um assombro,
O assombro é sempre e sempre que possa haver um homem mau ou infiel.
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Este é o geologista, este trabalha com o escalpelo e este é um
matemático.
Cavalheiros, para vós sempre as primeiras honras!
Vossos fatos são úteis, mas não são o meu domínio,
Apenas cruzo com eles em uma área de meu domínio.
Minhas palavras são menos que lembranças de propriedades descritas,
E são mais as lembranças da vida oculta, e de liberdade e
desenredo,
E fazem pouco caso de eunucos e castrados, favorecendo homens e mulheres
totalmente equipados,
E batem o gongo da revolta, e acampam com fugitivos e com aqueles que tramam e
conspiram.
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E dos direitos daqueles submetidos aos outros,
Dos deformados, dos fúteis, dos apáticos, dos tolos, dos
desprezados,
Nevoeiro no ar, besouros rolando bolas de esterco.
Por mim, vozes proibidas,
Vozes de sexos e de desejos, vozes veladas e eu retiro o véu,
Vozes indecentes, por mim clarificadas e transfiguradas.
Não aperto meus dedos sobre a boca,
Cuido com delicadeza de meus intestinos, do mesmo modo com que cuido da
cabeça ou do coração,
A cópula não é mais digna para mim do que a morte.
Acredito na carne e nos apetites,
A visão, a audição, o tato são milagres, e cada parte e
fragmento de mim é um milagre.
Divino eu sou por dentro e por fora e tudo o que toco ou aquilo por que sou
tocado torna-se sagrado.
O cheiro dessas axilas é um perfume mais elevado do que a prece,
Esta cabeça é mais do que as igrejas, as bíblias, e todas as
crenças.
Se eu cultuar algo com especial intensidade esse algo será a extensão
de meu próprio corpo ou de qualquer parte dele.
Translúcido molde meu, serás tu!
Telhado e descanso que a sombra oferece, serás tu!
Arado firme e masculino, serás tu!
Qualquer coisa que vá para a minha lavoura serás tu!
Tu, meu rico sangue! Teu córrego lácteo são tiras pálidas da
minha vida!
Peito que se aperta a outros peitos, serás tu!
Meu cérebro serão tuas recônditas torções!
Raiz de cálamo lavado! Temerosa narceja do lago! Ninho de ovos duplos
vigiados! Serás tu!
Dança rústica misturada e indistinta de cabeça, barba,
músculo, serás tu!
Gotejo de seiva de ácer, fibra de másculo trigo, serás tu!
Sol tão generoso, serás tu!
Vapor que ilumina e faz sombra em minha face, serás tu!
Regatos e orvalhos suados, sereis vós!
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Ventos cujos genitais gotejam suavemente ao se roçarem contra mim, sereis
vós!
Vastos campos musculares, ramos de carvalho vivo, amantes vadios em meus caminhos
sinuosos, sereis vós!
Mãos que segurei, rosto que beijei, mortal que sempre toquei, sereis
vós!
Tenho loucura por mim, há tanto de mim, e tudo tão saboroso,
Cada momento — aconteça o que acontecer — me enche de
deleite.
Não posso dizer como meus tornozelos se torcem, nem a origem de meus menores
desejos,
Nem a causa da amizade que irradio, nem a causa da amizade que recebo em
troca.
Quando ando até o alpendre, paro para conjeturar sobre a realidade deste
fato:
Uma planta que cresce em minha janela me satisfaz mais do que a metafísica
dos livros.
Testemunhar a alvorada!
A luz débil enfraquece a sombra diáfana e imensa,
O ar tem um gosto bom para o meu paladar.
A maior parte de um mundo em movimento, em inocentes cambalhotas se erguendo
silenciosamente, gotejando com frescor.
Fugindo obliquamente acima e abaixo.
Algo que não posso ver ergue seus forcados libidinosos,
Mares de fluidos brilhantes inundam o céu.
A terra pelo céu acompanhada, o fechamento diário de sua
junção,
Desafio do leste erguido naquele momento sobre minha cabeça,
O insulto zombeteiro. Vê, então, se serás o Mestre!
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Também nos erguemos fascinantes e tremendos como o sol,
Encontramos o que é nosso, ó minha alma, na calmaria e no frescor da
alvorada.
Minha voz persegue o que meus olhos não alcançam,
Com um giro de minha língua abarco mundos e volumes de mundos.
A fala é gêmea de minha visão, ela é inigualável em sua
própria medida,
Ela me provoca para sempre, ela diz sarcasticamente,
Walt, conténs o bastante, por que não te abres para o
mundo?
Vem agora, não serei atormentado, concebes articulação em
demasia,
Não sabes, ó discurso, como os botões sob ti se fecham?
Esperando na escuridão, protegido pela geada,
A poeira retrocedendo perante os meus gritos proféticos,
Eu sublinhando causas para equilibrá-las finalmente,
Meu conhecimento são minhas partes vivas, ele mantém a conta do
significado de todas as coisas,
Felicidade (quem quer que me ouça deixe que se lance em busca dela neste
dia).
Meu mérito final recuso a ti, recuso-me a entregar o que de fato sou,
Abrange os mundos, mas nunca tentes me abranger,
Preencho o que tens de mais macio e de melhor simplesmente olhando para ti.
A escrita e a fala não me provam.
Carrego a plenitude das provas e tudo o mais em minha face,
Na quietude de meus lábios o céptico desconcerta-se inteiramente.
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Eu ouço todos os sons se propagando juntos, combinados, fundidos ou em
seqüência,
Sons da cidade e sons fora da cidade, sons do dia e da noite,
Jovens faladores com os que deles gostam, a risada estridente dos trabalhadores
durante as refeições,
A base irritada da amizade desfeita, os tons débeis dos doentes,
O juiz com as mãos presas à mesa, seus lábios pálidos
pronunciando uma sentença de morte,
Os altos brados dos estivadores descarregando os navios no cais, o refrão
dos levantadores de âncora,
O toque dos alarmes, o grito de "fogo!", o ronco dos motores rápidos e do
carro com mangueiras e tinidos premonitórios e luzes coloridas.
O apito a vapor, o rolamento sólido do trem que vem chegando,
A marcha lenta tocada à frente da associação, marchando dois a
dois,
(Eles vão recolher alguns corpos, o topo das bandeiras drapejado com
musselina negra).
Ouço o violoncelo (é o lamento do coração do rapaz),
Ouço a corneta de teclado que desliza rapidamente pelos meus ouvidos,
Ela causa uma agonia louca e doce que atravessa minhas entranhas e meu peito.
Ouço o coro, é a grande ópera,
Ah, isso sim é música! — isso se casa comigo.
Um tenor grande e novo como a criação me preenche,
O céu esférico de sua boca está jorrando em mim e me
realizando.
Ouço a soprano virtuosa (o que é este trabalho quando comparado ao
dela?)
A orquestra me faz rodopiar numa órbita mais larga que a do vôo de
Urano,
Faz surgir em mim tais ardores que não imaginava possuir,
Ela me faz navegar, mergulho meus pés descalços, eles são lambidos
pelas ondas indolentes,
Sou cortado por um granizo amargo e irado, perco o fôlego,
Macerado por melíflua morfina, minha traquéia sufocada em farsas da
morte,
Ao fim, solto-me uma vez mais para sentir o enigma dos enigmas,
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E aquilo que chamamos Ser.
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Depois, todos se uniram em pé sobre um promontório a me afligir.
As sentinelas abandonam todas as outras partes de mim,
Deixaram-me desamparado diante de um saqueador escarlate,
Todos eles vêm ao promontório para testemunhar e se unir contra
mim.
Sou entregue por traidores,
Falo abertamente, perdi minhas graças, eu e ninguém além de mim
sou o maior dos traidores,
Fui o primeiro a ir ao promontório, minhas próprias mãos me
carregaram até lá.
Tu, toque canalha! O que estás fazendo? Minha respiração está
apertada na garganta,
Abre tuas comportas, és demais para mim.
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Só aquilo que ninguém nega é real.)
Um minuto e uma gota de mim estabelecem meu cérebro,
Acredito que os torrões encharcados se tornarão amantes e luzes,
E um compêndio de compêndios é a carne de um homem ou de uma
mulher,
E um cimo e uma flor ali são o sentimento que eles têm um pelo
outro,
E eles estão para se ramificar, ilimitadamente, por força daquela
lição até que se torne onípara.
E até que um e todos nos deliciarão, e nós a eles.
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Em vão o alce se recolhe para as pastagens mais recônditas da
floresta,
Em vão o mergulhão navega para o norte extremo em Labrador,
Eu sigo rápido, galgo até o ninho na fissura do penhasco.
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Suas narinas se dilatam à medida que meus calcanhares o abraçam,
Seus membros bem modelados tremem de prazer quando corremos e voltamos.
Eu te uso apenas por um momento, e depois te renuncio, garanhão,
Que necessidade tenho de teus passos se eu mesmo galopo com eles?
Mesmo quando estou em pé ou sentado passo mais rápido do que tu.
med.00400.083.jpg forma de leque
e brotos delgados que nascem das calhas,
Sobre o caquizeiro no oeste, sobre o milho de longas folhas, sobre o delicado
linho de flores azuis,
Sobre o trigo-sarraceno branco e marrom, um beija-flor e uma cigarra, lá com
os outros.
Sobre o verde escuro do centeio que ondula e sombreia na brisa;
Escalando montanhas, galgando com cuidado, firmando-me em galhos baixos e
raquíticos,
Caminhando pela trilha gasta na grama, aberta entre as folhas do mato,
Onde a codorna está assobiando entre o bosque e o campo de trigo,
Onde o morcego voa na noite de sétimo mês, onde o grande besouro
dourado cai na escuridão,
Onde o arroio brota das raízes da velha árvore e corre para o
prado,
Onde o gado está, espantando as moscas com o rápido estremecimento de
seu couro,
Onde os panos de curar o queijo estão pendurados na cozinha, onde os
trasfogueiros cruzam a lareira, onde as teias caem como guirlandas dos
caibros;
Onde o bate-estaca colide, onde a máquina de impressão gira seus
cilindros,
Onde quer que o coração humano bata com espasmos terríveis sob as
costelas,
Onde o balão em forma de pêra flutua sem rumo (eu mesmo flutuo nele e
olho serenamente para baixo),
Onde a viatura da vida é puxada por uma corda, onde o calor incuba ovos de
um verde pálido na areia serrilhada,
Onde a baleia nada com seu filhote sem nunca deixá-lo só,
Onde o barco a vapor arrasta atrás de si sua longa flâmula de
fumaça,
Onde a barbatana do tubarão corta como um floco negro a superfície da
água,
Onde o brigue meio queimado está navegando em correntes desconhecidas,
Onde as conchas crescem em seu convés pegajoso, onde os corpos dos mortos se
decompõem;
Onde o pendão repleto de estrelas é carregado à frente dos
regimentos,
Aproximando-se de Manhattan pela ilha comprida,
Sob o Niagara, a catarata caindo como um véu sobre o meu semblante,
Sobre a soleira, sobre o bloco de madeira maciça para se montar nos cavalos
do lado de fora,
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Sobre a pista de corridas, ou aproveitando um piquenique, uma dança ou um
bom jogo de beisebol,
Em festivais masculinos, com troças sujas, licença irônica,
danças de tourada, bebedeira, risos,
No engenho de sidra, provando a doce mistura marrom, tomando o suco por um
canudo,
Na atividade de descascar maçãs, querendo um beijo para cada fruto
vermelho que encontro,
Em recrutamentos, festas na praia, em reuniões de vizinhos, na debulha do
milho, em mutirões;
Onde o tordo-dos-remédios faz soar seus deliciosos gorjeios, cacarejos,
gritos, choros,
Onde o monte de feno se ergue no terreiro, onde os talos secos estão
espalhados, onde a vaca reprodutora espera no curral,
Onde o touro avança para fazer seu trabalho masculino, onde o garanhão
pára a égua, onde o galo está montando na galinha,
Onde as novilhas pastam, onde os gansos mordiscam sua comida com um rápido
movimento da cabeça,
Onde as sombras do pôr-do-sol se estendem sobre a pradaria vasta e
solitária,
Onde as manadas de búfalo transformam numa chapada rastejante as milhas
quadradas longe e perto,
Onde vacila o beija-flor, onde o pescoço do longevo cisne está se
curvando e se enroscando,
Onde o martim-pescador voa perto da praia, onde ele ri seu riso quase humano,
Onde as colméias estão dispostas sobre um banco cinza no jardim,
semi-oculto pelas ervas altas,
Onde as perdizes de pescoço listrado se empoleiram, fazendo um círculo
no chão com suas cabeças para fora,
Onde os carros fúnebres entram pelos arcos dos portais do
cemitério,
Onde os lobos do inverno latem em meio às vastidões de neve e
árvores congeladas,
Onde a garça de coroa amarela vem à beira do brejo à noite e se
alimenta de caranguejinhos,
Onde a água espirrada pelos nadadores e mergulhadores refresca a tarde
quente,
Onde a fêmea do grilo faz soar sua flauta de cana cromática na nogueira
sobre o poço,
Por fileiras de cidreiras e pepinos com folhas de fios prateados,
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Pela salina ou pela clareira alaranjada, ou sob abetos cônicos,
Pelo ginásio, pelo salão enfeitado de cortinas, pelo escritório ou
sala de reunião;
Satisfeito com o nativo e satisfeito com o estrangeiro, satisfeito com o novo e
com o velho,
Satisfeito com a mulher simples tanto quanto com a que é linda,
Satisfeito com a quacre quando ela tira a touca e fala melodiosamente,
Satisfeito com o tom do coral da igreja caiada,
Satisfeito com as palavras fervorosas do suado pregador metodista, ditas com
seriedade no culto campestre;
Olhando as vitrines da Broadway a manhã inteira, apertando a carne do meu
nariz contra o vidro espesso,
Passeando na mesma tarde com o rosto voltado para as nuvens, ou por uma alameda,
ou ao longo da praia,
Meu braço esquerdo e meu braço direito em torno de dois amigos, e eu no
meio;
Chegando em casa com o menino cansado silencioso e de pele escura (atrás de
mim, ele cavalga no final do dia),
Longe dos povoados estudando pegadas de animais, ou de mocassim,
Ao lado do leito de hospital, estendendo um copo de limonada para um paciente
febril,
Perto do corpo no caixão quando tudo está quieto, examinando com uma
vela;
Viajando por todos os portos em busca de permutas e aventuras,
Correndo com a multidão moderna, ansioso e volúvel como qualquer
um,
Cheio de raiva contra alguém que odeio, pronto na minha loucura para
esfaqueá-lo,
Solitário à meia-noite no meu quintal, meus pensamentos longe de mim
por um bom tempo,
Atravessando as velhas colinas da Judéia com o Deus belo e gentil ao meu
lado,
Voando pelo espaço, voando pelo céu e pelas estrelas,
Voando entre os sete satélites e o largo anel e o diâmetro de oitenta
mil milhas,
Voando com os meteoros e suas caudas, atirando bolas de fogo como o resto,
Carregando a criança crescente que, por sua vez, carrega sua própria
mãe cheia na barriga,
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Esbravejando, aproveitando, planejando, amando, acautelando,
Recuando e preenchendo, aparecendo e desaparecendo,
Passo dia e noite por essas estradas.
Visito os pomares das esferas e espio o produto,
E olho para os quintilhões amadurecidos e os quintilhões verdes.
Vôo aqueles vôos de uma alma fluida e esfaimada,
Meu curso corre mais abaixo que os ruídos de todos os prumos.
Sirvo-me daquilo que é material e imaterial,
Nenhum vigia pode me barrar, nenhuma lei pode me evitar.
Ancoro meu navio por um instante apenas,
Meus mensageiros partem continuamente ou trazem suas conquistas para mim.
Vou caçar peles polares e a foca, saltando abismos com um cajado pontiagudo,
agarrando-me a cimos quebradiços e azuis.
Subo à borla no mastro de proa,
Ocupo meu lugar, tarde da noite, no cesto do corvo,
Navegamos pelo mar ártico, abundante é a luz que nos basta,
Através da clara atmosfera expando-me na beleza maravilhosa,
As enormes massas de gelo passam por mim e eu passo por elas, o cenário
é plano em todas as direções,
As montanhas de topo branco aparecem à distância, solto minha
imaginação na direção delas,
Estamos nos aproximando de um grande campo de batalha, no qual logo seremos
inseridos,
Atravessamos os colossais postos avançados do acampamento, passamos com
pés silenciosos e com cuidado,
Ou estamos entrando pelos subúrbios de uma vasta cidade em ruínas,
Os blocos e a arquitetura destruída, mais do que todas as cidades vivas do
globo.
Sou um mercenário, acampo junto às fogueiras dos invasores,
Expulso o noivo da cama e fico eu mesmo com a noiva,
Aperto-a a noite inteira às minhas coxas e a meus lábios.
Minha voz é a voz da esposa, o guincho junto ao corrimão da escada,
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Mandam vir o corpo do meu homem encharcado e afogado.
Entendo os grandes corações dos heróis,
A coragem do tempo presente e de todos os tempos,
Como o capitão viu o destroço lotado e desorientado do navio a vapor, e
a Morte perseguindo-o para a frente e para trás na tempestade,
Como ele se submeteu com garra e não recuou um centímetro sequer, e foi
fiel durante os dias e fiel durante as noites,
E escreveu com grandes letras numa lousa, Não desanimeis,
não vos abandonaremos;
Como ele os seguiu e os acompanhou durante três dias e não
desistiu,
Como salvou o grupo à deriva, por fim.
Como era a aparência das mulheres delgadas em suas roupas largas quando
foram embarcadas, retiradas dos túmulos que já estavam preparados para
elas,
Como as silenciosas crianças de rosto envelhecido e os doentes levantados de
suas camas, e os homens por barbear de lábios ásperos;
Tudo isso engulo, tem um bom sabor, gosto muito, torna-se parte de mim,
Eu sou o homem, sofri, estava lá.
O desdém e a calma dos mártires,
A mãe idosa, condenada como bruxa, queimada com o fogo da madeira seca, seus
filhos a tudo testemunhando,
O escravo perseguido que desiste na corrida, apóia-se na cerca, ofegante,
coberto de suor,
As fisgadas que ferem como agulhas suas pernas e seu pescoço, o tiro
assassino de chumbo grosso e as balas,
Tudo isso eu sinto ou sou.
Sou o escravo perseguido, estremeço com a mordida dos cães,
O inferno e o desespero caem sobre mim, os atiradores atiram e outra vez
atiram,
Aperto os paus da cerca, meu sangue goteja, diluído pela exsudação
da minha pele,
Tombo sobre as ervas e as pedras,
Os cavaleiros esporeiam seus cavalos arredios, aproximam-se,
Dirigem seu escárnio contra meus ouvidos aturdidos e me batem com
violência na cabeça, usando o cabo dos chicotes.
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As agonias estão entre as roupas que visto,
Não pergunto ao ferido como se sente, eu mesmo me torno o ferido,
Minhas dores se voltam lívidas para mim quando me apóio na bengala e
observo.
Sou o bombeiro esmagado com o esterno quebrado,
Paredes desabadas me enterraram em seus escombros,
O calor e a fumaça inspirei, ouvi os gritos dos meus camaradas,
Ouvi os golpes distantes de suas pás e picaretas,
Eles conseguiram abrir espaço entre as vigas, agora me erguem com
cuidado.
Estou deitado no ar noturno na minha camisa vermelha, o silêncio geral
é por minha causa,
Sem dor afinal, fico deitado, exausto mas não infeliz,
Pálidos e belos são os rostos em torno de mim, as cabeças despiram
seus capacetes,
A multidão ajoelhada se apaga na luz das lanternas.
Os distantes e os mortos ressuscitam,
Aparecem como o mostrador ou se movem como ponteiros de mim, eu mesmo sou o
relógio.
Sou um velho artilheiro, narro o bombardeio contra o meu forte,
Estou lá novamente.
Mais uma vez o longo rufar dos tambores,
Mais uma vez o ataque dos canhões, dos morteiros,
Mais uma vez aos meus ouvidos atentos, a reação dos nossos
canhões.
Eu participo, vejo e ouço tudo,
Os gritos, as maldições, os urros, os aplausos por um tiro bem
dado,
A ambulância passando lentamente, deixando um filete de sangue atrás de
si,
Trabalhadores examinando danos, fazendo reparos indispensáveis,
A queda de granadas pelo teto arrombado, a explosão em forma de leque,
O som de membros, cabeças, pedras, madeira, ferro, alto no ar.
Mais uma vez gorgoleja a boca do meu general moribundo, ele sacode a mão com
fúria,
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Sussurra através do sangue coagulado: Não se importem
comigo — dêem atenção às trincheiras.
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Um jovem que ainda não tinha dezessete anos agarrou seu assassino até
que dois outros viessem libertá-lo,
Os três ficaram todos feridos e cobertos com o sangue do menino.
Às onze horas começou a queima dos corpos;
Esta é a história do assassinato dos quatrocentos e doze jovens.
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Agora eu rio contente, pois escuto a voz do meu pequeno capitão,
Não arriamos nossa bandeira, ele grita solenemente,
aqui é que tem início nossa parte da luta.
Somente três canhões ainda atiram,
Um é apontado pelo próprio capitão para o mastro principal do
inimigo,
Dois bem abastecidos de metralha e lata silenciam os mosqueteiros e limpam os
conveses do inimigo.
As gáveas somente secundam o fogo dessa pequena bateria, especialmente a
gávea principal,
Elas se mantêm bravamente durante o desenrolar das ações.
Não há momento qualquer de repouso,
Os vazamentos são mais rápidos que as bombas, o fogo devora o navio em
direção ao paiol de pólvora.
Uma das bombas foi atingida por um disparo, há uma crença geral de que
estamos naufragando.
O pequeno capitão está sereno.
Ele não tem pressa, sua voz não é alta nem baixa,
Seus olhos nos fornecem mais luz do que nossos faróis de batalha.
Perto da meia-noite, ali sob os raios da lua, eles se rendem a nós.
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Pilhas disformes de corpos e corpos deixados sozinhos, partes de corpos sobre
mastros,
Cortes de cordame, cordame balançando, leves choques do impacto das ondas,
Armas negras e impassíveis, sujeira das caixas de pólvora, cheiro
forte,
Algumas estrelas grandes sobre as cabeças, brilhando em lúgubre
silêncio,
Delicadas inalações de brisa marítima, cheiro de grama com juncos
nos campos perto da praia, mensagens dos moribundos confiadas aos sobreviventes,
O sibilo da faca do cirurgião, os dentes cortantes da sua serra,
Um chiado, uma batida surda, um jorro de sangue que cai, um breve grito selvagem e
o gemido longo, apático e agudo,
Isso tudo dessa forma, isso tudo irreparável.
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Desejam que ele goste deles, que os toque, que fale com eles, que fique com
eles.
Comportamento sem lei, tal como são os flocos de neve, palavras simples como
a relva, cabelo despenteado, risos e ingenuidade.
Pés que andam devagar, feições comuns, modos comuns e
emanações,
Eles caem em novas formas da ponta de seus dedos,
Flutuam com o perfume de seu corpo ou seu hálito, voam de um relance de seus
olhos.
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Ao escravo dos campos de algodão ou aos limpadores de latrina me
inclino,
Em sua face direita deixo o meu beijo familiar,
E em minha alma juro que nunca o negarei.
Em mulheres prontas para a concepção, gero bebês maiores e mais
ágeis,
(Hoje estou atirando a essência de repúblicas muito mais
arrogantes.)
A qualquer um que esteja morrendo, corro para alcançá-lo e viro a
maçaneta da porta,
Viro os lençóis na direção do pé da cama,
Permito ao médico e ao padre que voltem para casa.
Pego o homem que cai e levanto-o com vontade irresistível,
Ó desesperado, aqui está o meu pescoço,
Por Deus, não podes cair! Solta todo o teu peso sobre mim.
Eu te dilato com um sopro tremendo,te faço boiar,
Todos os quartos da casa sinto com uma força armada,
Amantes de mim, estorvos dos túmulos.
Dorme — eu e eles vigiaremos a noite inteira,
Nem dúvida, nem doença ousarão colocar um dedo sobre ti,
Eu te abracei, e daqui em diante, eu te possuo.
E quando te levantares pela manhã, saberás que o que te digo é
verdade.
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Comprando desenhos de Osíris, Ísis, Belus, Brahma, Buda,
Em minha pasta tenho Manitu livre, Alá numa folha e o crucifixo gravado,
Com Odin, Mexitli, que tem a face horrenda, e todos os outros ídolos e
imagens,
Levando por eles tudo aquilo que valem e nenhum centavo a mais,
Admitindo que eles já estiveram vivos e que cumpriram a missão de seus
dias,
(Eles davam insetos para os pássaros implumes que agora têm de se
erguer, voar e cantar por si mesmos.)
Aceitando os esboços deíficos para que se sintam melhores em mim,
ofertando-os livremente em cada homem e mulher que vejo,
Descobrindo tanto quanto ou mais no construtor que edifica a casa,
Valorizando mais a ele que está lá, com as mangas arregaçadas,
orientando a marreta e o cinzel,
Sem fazer objeções a revelações especiais, considerando uma
espiral de fumaça ou os pêlos nas costas de minha mão, com a mesma
curiosidade sobre qualquer revelação,
Os rapazes dentro dos carros de bombeiro e nas cordas das escadas de
incêndio não são menos importantes para mim que os deuses das
guerras da Antiguidade,
Prestando atenção às suas vozes que ressoam pelo estrondo da
destruição,
Seus membros musculosos passando seguros sobre as ripas carbonizadas, com suas
testas brancas, saem incólumes e inteiros do calor das chamas;
Junto à esposa do mecânico com o seu bebê, em seu seio
intercedendo por toda pessoa que nasce,
Três foices na colheita zumbindo em seqüência de três anjos
vigorosos cujas camisas caem frouxas em suas cinturas,
O cavalariço de dentes salientes com seu cabelo vermelho redimindo pecados
passados e futuros,
Vendendo todas as posses, viajando a pé para contratar advogados para seu
irmão e sentando-se ao seu lado quando é julgado por fraude;
O que foi esparramado mais longe, esparramando-se por metros quadrados em volta
de mim, e nem assim enchendo os metros quadrados,
Nem o touro nem o besouro foram alguma vez adorados o suficiente,
O esterco e a sujeira são mais admiráveis do que se sonhava,
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O sobrenatural não é valorizado, eu espero o meu momento de ser um dos
seres supremos,
Um dia se prepara para mim em que farei tanto bem quanto o melhor e serei
igualmente prodigioso;
Pelas minhas massas de vida! Tornando-me já um criador,
Situando-me aqui e agora no útero emboscado das sombras.
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Muitos suando, arando, debulhando, e então recebendo por pagamento apenas os
farelos.
Alguns proprietários ociosos continuamente exigindo o trigo.
Esta é a cidade e eu sou um dos cidadãos,
Tudo o que interessa aos demais interessa a mim: a política, as guerras, os
mercados, os jornais, as escolas,
O prefeito e a câmara, os bancos, as tarifas, os navios a vapor, as
fábricas, as ações, as lojas, os imóveis e os bens
pessoais.
Os inúmeros manequins saltando de um lado para o outro em seus colarinhos e
fraques,
Estou ciente de quem são (positivamente não são minhocas nem
moscas),
Reconheço os clones de mim mesmo, o mais fraco e superficial é imortal
comparado a mim,
O que faço e digo, o mesmo espera por eles,
Todo pensamento que se debate em mim também se debate neles.
Conheço perfeitamente bem meu egotismo,
Conheço minhas linhas onívoras e não devo escrever menos,
E te pegaria, quem quer que sejas, para receberes comigo a coroa.
Não há palavras rotineiras nesta minha canção,
Mas abruptamente questiono, salto para além e ainda assim me aproximo;
Há este livro impresso e encadernado — mas e o impressor e o ajudante
do impressor?
As fotografias bem tiradas — mas e a tua esposa ou o teu amigo,
próximos e firmes em teus braços?
Há o navio negro blindado com ferro, suas armas poderosas posicionadas nas
torres — mas e o ânimo do capitão e dos engenheiros?
Há nas casas a louça, as provisões e os móveis — mas e
o anfitrião e a anfitriã e o que seus olhos exprimem?
Há o céu lá em cima — contudo e aqui, ou na casa ao lado, ou
do outro lado da rua?
Há os santos e os sábios na história — mas e tu?
Há sermões, crenças, teologia — mas e a incompreensível
mente humana?
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E o que é a razão? E o que é o amor? E o que é a vida?
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Como eles se contorcem rapidamente como raios, com espasmos e esguichos de
sangue!
Ficai em paz, linguados que sangram, de incrédulos e de apáticos
esfregões,
Tomo meu lugar entre vós, tal como o faço entre os demais,
O passado é o que vos empurra para adiante, e também a mim e a todos,
sempre do mesmo modo,
E aquilo que ainda não foi tentado, e aquilo que já foi, é para
vós, para mim e para todos, sempre do mesmo modo.
Eu não sei o que não foi tentado e o que já foi,
Mas sei que quando sua vez chegar ela será suficiente, e não
poderá falhar.
Cada um que passa é considerado, cada um que pára é considerado, e
nenhum deles poderá falhar.
Não falhará o jovem homem que morreu e foi enterrado,
Nem a jovem mulher que morreu e foi colocada ao lado dele,
Nem a pequena criança que espiou pelo vão da porta, e que recuou e
jamais foi vista novamente,
Nem o homem velho que viveu sem ter propósito, e sente-o com amargor pior
que o do fel,
Nem aquele que está no albergue de indigentes, tuberculoso, em virtude do
rum e da perturbação mental.
Nem os numerosos chacinados e destruídos, nem a ralé embrutecida,
rotulada de excremento da humanidade,
Nem os sacos que andam por aí com a boca aberta para receber comida,
Nem qualquer outra coisa na terra ou dentro dos túmulos antigos da
terra,
Nem qualquer coisa entre as miríades de esferas ou as miríades de
miríades de seres que as habitam,
Nem o presente, nem o menor farrapo conhecido.
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O relógio indica o instante — mas o que é indicado pela
eternidade?
Temos, pois, exaurido trilhões de invernos e verões,
Há trilhões adiante desses que se foram e outros trilhões mais
para frente.
Nascimentos nos trouxeram riqueza e variedade,
E outros nascimentos nos trarão riqueza e variedade.
Eu não chamo um de maior e outro de menor,
Aquele que realiza seu tempo e seu lugar é tal como outro qualquer.
A humanidade foi assassina e invejosa para contigo, meu irmão, minha
irmã?
Sinto muito por ti, ela não é assassina nem invejosa para comigo,
Todos têm sido gentis comigo, não tenho lamentações para
exprimir.
(Que tenho eu com as lamentações?)
Sou um clímax das coisas que já foram conquistadas e em mim está
guardado tudo aquilo que há de vir.
Meus pés batem no vértice do ápice dos degraus,
Em todos os degraus, bandos de eras e bandos maiores entre os meus passos,
Tudo que está abaixo foi devidamente percorrido, e ainda subo e subo cada
vez mais.
E, a cada lance de ascensão, os fantasmas sobem atrás de mim,
Ao longe, lá embaixo, vejo o primeiro Nada monumental, sei que eu
também estava lá,
Esperei ignoto e sempre, e dormi através das brumas letárgicas,
E aguardei meu tempo, e não me feri com o carbono fétido.
Por muito tempo fui abraçado fortemente, por muito e muito tempo.
Imensas foram as preparações para mim,
Fiéis e amigáveis os braços que me suportaram.
Os ciclos transportaram meu berço, remando e remando como alegres
barqueiros,
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Para me dar espaços, as estrelas se mantiveram apartadas em suas
próprias órbitas,
Elas enviaram influências para cuidar daquilo que iria me sustentar.
Antes que eu nascesse de minha mãe, gerações me guiaram,
Meu embrião nunca foi entorpecido, nada podia oprimi-lo.
Para ele, a nebulosa inteira sintetizou-se num orbe,
As camadas vagarosamente se acumularam para lhe servir de alicerce,
Vastos vegetais deram-lhe substância,
Dinossauros transportaram-no em suas bocas e o depositaram com cuidado.
Todas as forças foram empregadas consistentemente para completar-me e
deleitar-me,
Agora, neste exato lugar, eu me ergo com alma robusta.
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Abro minha escotilha à noite e vejo os sistemas borrifados, ao longe,
E tudo o que vejo multiplicado, até o limite do que posso decifrar,
tangencia a beira dos sistemas mais distantes.
Cada vez maior o raio em que se expande, expande-se sempre mais,
Para fora e para fora e para sempre para fora.
Meu sol tem o seu sol e em torno dele gira obedientemente,
Ele se une aos seus parceiros em um grupo de circuito superior,
E grupos maiores se seguem, fazendo com que pareçam pontinhos os maiores
dentre eles.
Não há interrupção e nunca pode haver
interrupção,
Se eu, tu e os mundos, e tudo que há embaixo ou acima de suas
superfícies, fôssemos neste momento reduzidos de novo a uma
pálida bóia, de nada adiantaria, a longo prazo,
Certamente alcançaríamos de novo o ponto evolutivo em que hoje
estamos,
E com certeza iríamos mais longe, e mais longe e ainda mais longe.
Alguns quatrilhões de eras, alguns octilhões de léguas
cúbicas, não ameaçam o instante nem o tornam impaciente,
Eles são apenas partes, qualquer coisa é apenas uma parte do todo.
Ainda que enxergues a distância, há espaços sem limites fora
dela,
Conta tanto quanto desejares, mas há tempo ilimitado em volta disso.
Meu encontro está marcado, ele é certo,
O Senhor estará lá e aguardará minha chegada em termos
perfeitos,
O grande Camarada, o verdadeiro amante por quem anseio estará lá.
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Não tenho cadeira, não tenho igreja, nem filosofia,
Não levo homem algum para o jantar, para a biblioteca, para a bolsa de
valores,
Mas cada homem e cada mulher entre vós eu conduzo ao cimo de um outeiro,
Minha mão esquerda abraça-os pela cintura,
Minha mão direita aponta para as paisagens de continentes e estradas
públicas.
Não eu, ninguém mais pode viajar aquela estrada em teu lugar,
Deves viajá-la com teus próprios passos.
Ela não é distante, ela está dentro do alcance,
Talvez estejas nela desde o teu nascimento e não saibas,
Talvez ela esteja em toda parte pela água e pela terra.
Põe tua mochila em teus ombros, filho amado, e eu farei o mesmo, e vamos
apressar nossa jornada,
Cidades maravilhosas e nações livres tomaremos no caminho.
Se te cansares, entrega-me ambos os fardos e descansa o fôlego de tua
mão em meus quadris,
E quando a hora chegar, tu hás de fazer o mesmo por mim,
Pois quando tivermos partido não repousaremos mais.
Hoje, antes do nascimento do sol, subi ao cimo de uma montanha e enxerguei o
céu povoado,
E disse para o meu espírito: Quando nos tornarmos os
guardiões desses orbes e de todo o prazer e do conhecimento que neles
há, estaremos, então, plenos e satisfeitos?
E meu espírito respondeu: Não, superaremos essa etapa
apenas para passar adiante e ir mais além.
Estás, também, fazendo-me perguntas e eu posso ouvir-te,
Respondo que não posso responder, pois é mister que encontres a
resposta por ti mesmo.
Senta-te por um instante, filho amado,
Aqui estão alguns biscoitos para comeres e aqui algum leite para
beberes,
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Mas assim que dormires e te vestires com roupas limpas, eu te darei um beijo de
despedida e abrirei o portão para que saias daqui.
Por tempo suficiente tens sonhado sonhos desprezíveis,
Agora, limpo a remela de teus olhos,
Deves habituar-te ao fascínio da luz e de todos os momentos de tua vida.
Por muito tempo, tu te agarraste timidamente a uma prancha na praia,
Agora quero que sejas um nadador ousado,
Para que mergulhes em alto mar, te ergas novamente, acenes para mim, grites e,
sorrindo, agites teus cabelos.
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Juro que jamais mencionarei outra vez o amor ou a morte dentro de uma casa,
E juro que jamais traduzirei a mim mesmo, exceto para aquele ou aquela que privar
da minha intimidade ao ar livre.
Se podes me compreender, sobe para o cume das montanhas ou segue para as
praias,
O inseto mais próximo é uma explicação, e uma gota ou o
movimento das ondas é uma chave,
O malho, o remo, o serrote corroboram minhas palavras.
Nenhuma sala ou escola fechada pode afinar-se comigo,
Mas os brutos e as criancinhas são nisso melhores do que eles.
O jovem mecânico é mais próximo de mim, ele me conhece bem,
O lenhador que carrega seu machado e seu cântaro carrega-me também o
dia inteiro,
O jovem agricultor na fazenda, arando os campos, sente-se bem ao som de minha
voz,
Os barcos que navegam acompanham as minhas palavras; viajo com pescadores e
marinheiros e os amo.
O soldado acampado ou marchando é meu,
Na noite que antecede a próxima batalha muitos me procuram, e eu não os
decepciono,
Naquela noite solene (pode ser a sua última) aqueles que me conhecem me
procuram.
Meu rosto se esfrega ao rosto do caçador quando ele está deitado na
solidão, embaixo do cobertor,
O condutor que pensa em mim não se importa com o sacolejo de sua
carroça,
A jovem mãe e a velha mãe me compreendem,
As moças e a esposa descansam suas agulhas por um instante e se esquecem do
lugar em que se acham,
Elas e todos recapitulariam o que eu lhes disse.
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E nada, nem Deus, é maior para um ser do que esse ser para si mesmo,
E quem quer que ande um estádio sem solidariedade caminha para seu
próprio funeral vestindo sua mortalha,
E eu ou tu sem um centavo no bolso podemos comprar a nata da terra,
E vislumbrar com um olho, ou apresentar um grão na sua vagem, confundindo o
conhecimento de todas as eras,
E não há negócio ou emprego em que um jovem, seguindo a carreira,
não se possa tornar um herói,
E não há objeto que seja tão delicado que não possa funcionar
como o centro em que se ligam todas as rodas que movem o Universo,
E digo para qualquer homem ou mulher, Deixe que sua alma esteja
tranqüila e íntegra perante um milhão de universos.
E digo para a humanidade, Não tenha curiosidade sobre
Deus,
Pois eu que sou curioso sobre todas as coisas não tenho curiosidade alguma
sobre Deus,
(Não há uma gama de termos grande o suficiente com a qual eu possa
dizer o quanto estou em Paz sobre Deus e sobre a morte.)
Ouço e observo Deus em todos os objetos e ainda assim não compreendo
Deus minimamente,
Nem posso compreender quem possa haver que seja mais maravilhoso do que eu.
Por que eu deveria ver Deus melhor do que este dia?
Eu vejo algo de Deus a cada hora das vinte e quatro horas do dia, e a cada
momento,
Nos rostos de homens e mulheres eu vejo Deus, e em minha própria face no
espelho,
Encontro cartas de Deus espalhadas pelas ruas e todas elas estão assinadas
por Ele,
E deixo-as ficar onde se encontram, pois sei que onde quer que vá,
Outras virão pontualmente para toda a eternidade.
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Para o seu trabalho sem vacilo vem o parteiro
Vejo a mão do idoso pressionando, recebendo, auxiliando,
E me reclino sobre o peitoril das portas flexíveis e requintadas,
E indico a saída e indico o alívio e a fuga.
E quanto a ti, Corpo frio, penso que serás um bom adubo, mas isso não me
ofende,
Sinto o perfume doce das rosas brancas que crescem,
Alcanço os lábios folhosos, alcanço os peitos polidos de
melão.
E quanto a ti, Vida, reconheço-te nos restos de muitas mortes,
(Sem dúvida eu mesmo já morri umas dez mil vezes antes.)
Eu vos ouço assobiando aí, ó estrelas do Céu,
Ó sóis — ó relva dos túmulos — ó
perpétuas transferências e promoções,
Se vós não dizeis nada, como eu posso dizer alguma coisa?
Do lago de águas turvas que jaz no meio da floresta outonal,
Da lua que desce as escarpas do crepúsculo murmurante,
Arremessai-vos, centelhas do dia e do anoitecer — arremessai-vos sobre os
caules negros que apodrecem no esterco.
Arremessai-vos à gemebunda algaravia dos galhos secos.
Subo da lua, subo da noite,
Percebo que o lampejo cadavérico são os raios do sol do meio-dia
refletidos,
E desemboco no que é estável e central, a partir de uma descendência
grande ou pequena.
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Balança sobre algo maior do que a terra em que balanço,
Para ele a criação é o amigo cujo abraço me desperta.
Talvez eu possa dizer mais. Perfis! Imploro por meus irmãos e irmãs.
Vedes, ó meus irmãos e minhas irmãs?
Não é o caos ou a morte — é a forma, a união, o plano
— é a vida eterna — é a Felicidade.
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Me arrasta para o vapor e para o crepúsculo.
Eu parto como o ar, agito minhas mechas brancas sob o sol fugitivo,
Derramo minha carne em remoinhos e deixo-a à deriva em saliências
rendilhadas.
Lego-me ao pó para crescer da relva que amo,
Se queres me ver novamente, procura-me grudado à sola de tuas botas.
Dificilmente saberás quem sou ou o que significo,
Mas hei de ser para ti boa saúde assim mesmo,
E filtrarei e darei fibra ao teu sangue.
Se não puderes me encontrar na primeira vez, mantém a esperança,
Não me achando em certo lugar, procura em outro,
Fico em alguma parte à tua espera.
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Desde o roedor faminto que me devora noite e dia,
Desde os momentos nativos, desde as dores acanhadas, cantando-as,
Pesquisando algo que ainda não pude descobrir, embora tenha diligentemente
procurado anos a fio,
Cantando a canção verdadeira da alma intermitente, ao acaso,
Renascido com a natureza grotesca ou entre os animais,
Disso, deles e aquilo que vai a título de informação com meus
poemas,
Do perfume das maçãs e dos limões, da poda dos pássaros,
Da umidade das florestas, da curvatura das ondas,
Das loucas investidas das ondas sobre a terra, eu então cantando,
Fazendo soar levemente a abertura, a tensão antecipando,
A bem-vinda proximidade, a visão do corpo perfeito,
O nadador nadando nu na banheira ou boiando sem movimentos em seu dorso deitado,
As formas femininas se aproximando, eu pensante, amante do corpo, tremendo de
dor,
A lista divina sendo feita para mim, para ti ou para qualquer um,
O rosto, os membros, o índice da cabeça aos pés, e aquilo que faz com
que ele se levante,
O delírio do místico, a loucura amorosa, o completo abandono,
(Chega perto e calado escuta o que agora sussurro para ti,
Eu te amo, ó tu que me tens por inteiro,
Ó tu e eu fugimos do mundo e sumimos inteiramente, livres e sem lei,
Dois falcões voando, dois peixes nadando no mar tão sem lei quanto nós
dois.)
A furiosa tempestade por mim atravessando, e eu tremendo apaixonadamente,
O juramento de inseparabilidade dos dois que se unem, da mulher que me ama e a quem
amo mais que a própria vida, esse juramento fazendo,
(Ó eu desejando arriscar tudo por ti,
Ó deixe-me estar perdido se necessário for!
Ó tu e eu! O que significa para nós o que os outros fazem ou pensam?
O que é tudo o mais para nós? Apenas sabemos que desfrutamos um ao outro e
nos exaurimos se necessário for.)
Desde o mestre, ao condutor entrego a nau,
O general me comanda, comanda a todos, dele recebemos permissão,
Desde o tempo, o programa apressando (tenho vadiado muito até agora)
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Desde o sexo, desde a urdidura e desde a textura,
Desde a privacidade, desde as lamentações solitárias,
Desde muitas pessoas próximas e, ainda assim as pessoas certas distantes,
Desde a maciez das mãos que escorregam sobre mim e a passagem dos dedos pelos
meus cabelos e minha barba,
Desde o longo beijo sustentado na boca ou nos seios,
Desde a pressão calorosa do corpo que me embriaga e embriaga qualquer homem
até desmaiá-lo pelo excesso,
Desde aquilo que o marido divino conhece, desde o trabalho da paternidade,
Desde a exultação, a vitória e o alívio, desde o abraço do
companheiro de cama durante a noite,
Desde os poemas de ação dos olhos, das mãos, dos quadris e dos
seios,
Desde a pegada do braço que treme,
Desde a curva flexionada e o abraço,
Desde o movimento de tirar a coberta flexível que nos cobre de um lado a
outro,
Desde aquele que não deseja me ver partindo, e eu que também não
desejo partir,
(Será um instante apenas, ó delicado ser que me aguarda, e eu
retornarei,)
Desde a hora das estrelas brilhantes e orvalhos gotejantes,
Desde a noite um momento em que vou emergindo fugaz,
Celebro-te, ato divino, e vós, filhos preparados,
E vós, corajosos leões.
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E se aqueles que desafiam os vivos são tão maus quanto os que desafiam
os mortos?
E se o corpo não faz o mesmo tanto quanto a alma faz?
E se o corpo não for a própria alma, o que é a alma?
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A luta dos lutadores, dois garotos aprendizes, bem crescidos, sensuais, de boa
natureza, nativos, saindo pelo descampado ao fim do dia de trabalho,
Os casacos e os bonés jogados ao chão, o abraço de amor e a
resistência,
O golpe por cima e o golpe por baixo, o cabelo caindo sobre os olhos e
atrapalhando a visão;
A marcha dos bombeiros que vestem suas fardas, o jogo másculo de
músculos por entre suas calças limpas e cinturões,
O retorno tranqüilo do incêndio, a pausa quando a sirene toca, de
repente, outra vez, e a escuta em estado de alerta,
As atitudes naturais, perfeitas, variadas, a cabeça inclinada, o
pescoço inclinado e a conta;
É isso que amo — e me entrego, passando livremente, estou no seio da
mãe com a criança de colo,
Nado com os nadadores, luto com os lutadores, marcho alinhado com os bombeiros, e
pauso, e escuto, e conto.
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Ao vê-lo saindo com seus cinco filhos e muitos netos para uma caçada ou
pescaria, dizíamos que ele era o mais belo e vigoroso do grupo,
Desejávamos por muito tempo estar com ele, desejávamos nos sentar ao
lado dele no barco, de modo que pudéssemos tocar uns aos outros.
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Ondulando dentro do produtivo dia de desejos,
Perdido na divisão do dia de carne doce e envolvente.
Eis o núcleo — depois é a vez da criança nascer da mulher, o
homem nasce da mulher,
Eis o banho da origem, eis o batismo do pequeno e do grande e a saída de
novo.
Não vos envergonheis, mulheres, vosso é o privilégio de conter os
outros e de dar a eles a saída,
Vós sois os portões do corpo, e sois o portão da alma.
A fêmea contém todas as qualidades e as tempera,
Ela ocupa seu posto e se move com em perfeito equilíbrio,
Ela é todas as coisas devidamente veladas, ela é ambos, o passivo e o
ativo,
Ela existe para conceber tanto filhas como filhos, e filhos como filhas.
Assim como na Natureza, vejo minha alma refletida,
Assim como vejo através de um nevoeiro, Uma de inexprimível plenitude,
saúde e beleza,
Vejo sua cabeça inclinada e seus braços cruzados sobre seus seios, a
Fêmea eu vejo.
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O corpo do homem é sagrado e o corpo da mulher é sagrado,
Não importa quem ele seja, é um ser sagrado — é ele o pior
de um grupo de operários?
É um dos imigrantes que, com expressão melancólica no rosto, acaba
de desembarcar no cais?
Cada um deles pertence a esta terra, ou a qualquer outra parte, tanto quanto os
bem-nascidos, tanto quanto vós,
Cada um tem seu lugar na procissão.
(Tudo é uma procissão,
O universo é uma procissão que se move em medida perfeita.)
Sabeis tanto que podeis chamar o menos preparado de ignorante?
Supondes que tendes direito a uma boa compreensão das coisas, e ele e ela
não têm direito algum?
Pensais que a matéria se fez una e coesa a partir de seu movimento difuso e
que o solo está na superfície e as águas correm e a
vegetação brota
Apenas para vós? E não para ele ou para ela?
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Sentidos apurados, olhos iluminados para a vida, garra, vontade,
Tórax musculoso, espinha e pescoço maleáveis, carne rija,
braços e pernas bem proporcionados,
E lá dentro muitas outras maravilhas.
Lá dentro o sangue a correr,
O mesmo antigo sangue! O próprio sangue em sua vermelha jornada!
Aqui o coração bate, fazendo circular o sangue, aqui residem todas as
paixões, desejos, conquistas, aspirações,
(Pensais que tudo isso inexiste só por não ser assunto de discursos nos
auditórios e salões de conferências?)
Este não é apenas um homem, é aquele que será o pai daqueles
que serão pais por sua vez,
Nele está a gênese de estados populosos e repúblicas
prósperas,
A partir dele há vidas imortais e incontáveis com incontáveis
encarnações e alegrias.
Como sabeis quem surgirá das gerações que surgirão das
gerações deste homem pelos séculos?
(De quem vós mesmos descobriríeis que descendeis, se acaso pudésseis
traçar uma linha retroativa pelos séculos dos séculos?)
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Eles não se encontram escondidos e não podem, em verdade,
esconder-se.
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Conexões, válvulas do coração, válvulas do palato,
sexualidade, maternidade,
Feminilidade, e tudo o que é uma mulher, e o homem que vem da mulher,
O útero, os seios, os mamilos, leite materno, lágrimas, risada,lamentos,
olhares amorosos, perturbações amorosas e ereções,
A voz, a articulação, a linguagem, o sussurro, o grito,
Comida, bebida, pulso, digestão, suor, sono, o ato de andar, de nadar,
O equilíbrio sobre os quadris, os saltos, a reclinação, o abraço,
a envergadura do braço e o aperto,
As alterações contínuas do molejo da boca, e em torno dos olhos,
A pele, a queimadura do sol, sardas, cabelo,
A curiosa sensação de quem toca a carne nua do corpo com sua mão,
O ciclo da respiração, a inspiração e a expiração,
A beleza da cintura, descendo aos quadris, e desse ponto descendo para os
joelhos,
As geléias finas e vermelhas dentro de ti ou de mim, os ossos e o tutano que
há nos ossos,
A estranha consciência da saúde;
Ó eu digo que esse não é apenas o poema das partes do corpo, mas
também o da alma,
Ó eu digo que estas partes são a alma!
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Essas estão contidos no sexo como partes de si mesmas, como justificativas de
si mesmas.
Sem sentir-se envergonhado, o homem de quem gosto conhece e declara as
delícias de seu sexo,
Sem sentir-se envergonhada, a mulher de quem gosto conhece e declara as
delícias do seu.
Agora me despeço das mulheres impassíveis,
Ficarei com aquela que me aguarda e com aquelas mulheres de sangue quente e
suficientes para mim,
Vejo que elas me compreendem e não me negam,
Vejo que elas me merecem, serei o marido robusto daquelas mulheres.
Elas não são nem um til a menos do que sou,
Elas têm seus rostos queimados pelo brilho do sol e pelo sopro dos ventos,
Seus corpos são dotados de divina elasticidade e potência,
Elas sabem nadar, remar, andar a cavalo, lutar, atirar, correr, golpear, recuar,
avançar, resistir, defender a si mesmas,
Elas são definitivas em seus direitos — são calmas, claras, seguras
de si mesmas.
Trago-vos para junto de mim, vós, mulheres,
Não posso deixar-vos ir, eu seria bom para vós,
Sou por vós e sois por mim, não apenas em nosso benefício, mas em
benefício de outros,
Engendrados em vós dormem grandes heróis e poetas,
Eles se recusam a acordar ao toque de qualquer outro homem que não seja
eu.
Sou eu, mulheres, faço o meu caminho,
Sou severo, ríspido, grande, indissuasivo, mas vos amo,
Não vos firo mais do que julgais necessário,
Derramo em vós a semente para gerar os filhos e filhas bem preparados para
estes Estados, aperto-vos com músculos rudes e vagarosos,
Abraço com eficácia, não dou ouvidos a exigências,
Não ouso parar até que deposite em vós aquilo que por tanto tempo
esteve acumulado em mim.
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Através de vós, eu dreno os rios enclausurados de mim mesmo,
Em vós envolvo mil anos de porvir,
Em vós enxerto o enxerto do que é mais amado por mim e pela
América,
As gotas que destilo sobre vós devem gerar garotas impetuosas e
atléticas, novos artistas, músicos, e cantores,
Os bebês que procrio convosco se tornarão bebês procriadores por sua
vez,
Demandarei homens e mulheres perfeitos, saídos de meus investimentos
amorosos,
Espero que eles interpenetrem-se com outras, como eu e vós nos interpenetramos
agora,
Eu hei de contar os frutos de suas chuvas efusivas, tal como eu conto os frutos da
chuva efusiva que vos dou agora,
Hei de esperar pelas colheitas amorosas do nascimento, da vida, da morte, da
imortalidade, que planto tão amorosamente neste momento.
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Braços e mãos de amor, lábios de amor, dedão fálico de amor,
seios de amor, barrigas unidas e pressionadas uma na outra com amor,
Terra de casto amor, vida que é apenas a vida após o amor,
O corpo de meu amor, o corpo da mulher que amo, o corpo do homem, o corpo da
terra,
Ares macios da manhã que sopram de sudoeste,
A abelha selvagem, peluda, que zune e expressa os seus anseios subindo e descendo,
que aborda a moça flor plenamente desabrochada e curva-se sobre ela com pernas
firmes e amorosas, toma a sua vontade de possuí-la, e se aperta trêmula e
com força até estar inteiramente saciada;
A floresta orvalhada através das primeiras horas do dia,
Dois que dormem à noite, deitados próximos um do outro, um com o braço
oblíquo atravessado em torno e abaixo da cintura do outro,
O perfume das maçãs, aromas de ramonas esmagadas, menta, cascade
vidoeiro,
As saudades do menino, o brilho e a tensão no momento em que ele me confessa o
teor de seus sonhos,
A folha seca girando em seu redemoinho e caindo paralisada e satisfeita no
chão,
Os espinhos disformes que se avistam, as pessoas, os objetos, com os quais me
aguilhoam,
O espinho furador de mim mesmo, aguilhoando-me tanto quanto se pode aguilhoar
alguém,
Os irmãos sensíveis, esféricos, subpostos, de quem apenas os
tentáculos privilegiados podem ser íntimos no lugar em que estão,
O curioso vagante tem a sua mão vagando pelo corpo inteiro, a tímida
retirada da carne onde os dedos verdadeiramente param e cingem a si mesmos,
O líquido límpido dentro do jovem homem,
A corrosão irritada, tão reflexiva e tão dolorosa,
A tormenta, a maré irritável que não se acomodará,
A semelhança dos mesmos eu sinto, a semelhança do mesmo nos outros,
O jovem homem que se excita e se excita, a jovem mulher que se excita e se
excita,
O jovem homem que desperta no meio da noite, a mão quente procurando reprimir
aquilo que o dominaria,
A noite amorosa do místico, a estranha angústia quase bem-vinda, as
visões, o suor,
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O pulso que bate pela palma das mãos, cujos dedos tremulam envolventes, o rapaz
que tem o rosto vermelho,
envergonhado, nervoso;
A salmoura sobre mim vem do mar, meu amante, quando me deito desnudo e ardente,
A folia dos bebês gêmeos que engatinham na grama sob o sol, a mãe em
momento algum desvia seu olhar vigilante sobre ambos,
O tronco da nogueira, as cascas das nozes e as nozes que amadurecem ou já
maduras, as nozes graúdas,
A continência dos vegetais, dos pássaros, dos animais,
Minha vileza conseqüente; eu deveria esquivar-me ou achar-me indecente, enquanto
os pássaros e os animais nunca se esconderam nem jamais se acharam
indecentes,
A grande castidade da paternidade, para equiparar-se à grande castidade da
maternidade,
O voto da procriação eu já fiz, minhas filhas adâmicas e
novas,
A cobiça que me devora dia e noite com fome roedora, até que eu me enjoe
daquilo com que hei de produzir meninos para me substituir quando eu passar,
O alívio por inteiro, o repouso, o contentamento,
E esse bando arrancado de mim ao acaso,
Já cumpriu sua missão — eu o lanço sem cuidado para cair em
qualquer parte.
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Ó retornar ao Paraíso! Ó tímido e feminino!
Ó atrair-te para mim, colocando em ti, pela primeira vez, os lábios de um
homem determinado.
Ó o quebra-cabeças, ó o nó sumamente atado, ó o poço
fundo e obscuro, desamarrado inteiramente e iluminado!
Ó a corrida onde o espaço nos basta e onde o ar é o bastante
afinal!
Ser libertado de convenções e compromissos prévios, eu dos meus e tu
dos teus!
Encontrar um novo impensado, algo que está na indiferença, com o melhor
da Natureza!
Tirar a mordaça da boca de alguém!
Ter o sentimento de que hoje ou em qualquer dia eu me basto a mim mesmo!
Ó algo não provado! Algo em êxtase!
Escapar inteiramente das garras e das âncoras do outro!
Avançar livremente! Amar firmemente! Arrojar-se despreocupadamente com
perigo!
Cortejar a destruição com insultos, com convites!
Subir, saltar para os céus do amor indicado para mim!
Elevar-se mais longe com a minha alma inebriada!
Perder-se, se necessário for!
Alimentar o que resta da vida com uma hora de plenitude e liberdade!
Com uma hora breve de loucura e de alegria.
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Mas quanto a mim e quanto a ti, o mar irresistível nos separa,
Se por uma hora pode nos manter dessemelhantes, por outro lado não nos pode
conservar distintos para sempre;
Não sejas impaciente — um interregno — sabe tu que saúdo o
ar, o oceano e a terra,
Todos os dias no crepúsculo, pelo amor de ti, meu amor.
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Somos dois sóis resplendentes, mantemos o equilíbrio planetário e
estelar de nós mesmos, somos dois cometas,
Andamos a esmo com nossas garras, em nossas quatro patas, nas florestas, perseguimos
as presas,
Somos duas nuvens de manhã e, à tarde, avançando sobre as
cabeças,
Somos mares que se misturam, somos duas daquelas ondas vibrantes, rolando uma sobre a
outra e nos molhando mutuamente,
Somos o que a atmosfera é, transparente, receptiva, antecipada,
impermeável,
Somos neve, chuva, frio, escuridão, somos cada produto e influência do
globo,
Viemos circulando e circulando até chegarmos em casa novamente, nós
dois,
Anulamos tudo menos a liberdade, tudo menos a nossa própria alegria.
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Estou com aqueles que acreditam em delícias licenciosas, compartilho das orgias
dos jovens à meia-noite,
Danço com os dançarinos e bebo com os beberrões,
Os ecos fazemos soar com nossos gritos indecentes, escolho uma pessoa rasteira para
ser o meu amigo mais querido,
Ele há de ser sem lei, rude, analfabeto, há de ser alguém condenado
pelos outros por seus feitos,
Não mais estarei apartado, por que deveria eu me exilar de meus
companheiros?
Ó tu, que evitas as pessoas, pelo menos eu não te evito,
Avanço para o centro de onde estás, serei teu poeta,
Serei mais para ti do que para qualquer outro.
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Coração do meu amor! A ti também ouvi murmurando baixinho,quando um
dos pulsos se achava em torno de minha cabeça,
Ouvi o teu pulsar, quando eu ainda escutava, vindo de todas as coisas, o som de
pequenos sinos na noite passada, embaixo de meus ouvidos.
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por tempo
suficiente tenho sufocado e engasgado.
Lâminas emblemáticas e caprichosas, eu vos abandono, pois agora para nada
mais servir-me-eis,
Direi o que terei de dizer por si mesmo,
Auscultarei a mim mesmo e a meus camaradas somente, jamais exprimirei um brado
novamente, exceto o deles,
Erguerei com ele reverberações imortais através dos Estados,
Darei um exemplo para os amantes que terá forma e vontade permanente,
através dos Estados,
Através de mim, as palavras hão de ser ditas para fazer a morte
hilariante,
Dá-me o teu tom, portanto, ó morte, para que a ele eu possa
harmonizar-me,
Dá-me o que tu és, pois vejo que agora me pertences acima de tudo, e
estão dobrados, inseparavelmente juntos, vós, amor e morte,
Nem mais permitirei que me estorves com aquilo que eu chamava de vida,
Pois agora sou comunicado de que és a substância essencial,
Que te escondes nestas formas mutáveis da vida, por boas razões, e que elas
existem, mormente para ti,
Que tu para além delas avanças para ficar, a real realidade,
Que atrás da máscara da materialidade esperas pacientemente, não
importa por quanto tempo,
Que tu irás um dia, talvez, tomar o controle de tudo,
Que irás, talvez, dissipar este inteiro show de aparências,
Que talvez sejas a razão de ser de tudo, ainda que não dures tanto,
E todavia durarás por muito tempo.
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O caminho é suspeito, o resultado é incerto, destrutivo talvez,
Terias de desistir de tudo o mais, eu, sozinho, esperaria ser o teu único e
exclusivo modelo,
O teu noviciado ainda assim seria longo e exaustivo,
A inteira teoria de tua vida, e todas as relações estabelecidas com a
vida ao teu redor, teriam de ser abandonadas,
Assim sendo, deixa-me partir agora antes que venhas a te preocupar mais, tira a tua
mão de cima de meu ombro,
Abandona-me e segue o teu caminho.
Ou então por uma ação furtiva em algum bosque por
experiência,
Ou atrás de uma pedra ao ar livre,
(Pois, nos cômodos cobertos de uma casa, não apareço só nem em
companhia de alguém,
E, nas bibliotecas, jazo mudo, um palerma, ou não nascido, ou morto),
Mas possivelmente estarei contigo sobre uma alta montanha, garantindo primeiro que
nenhuma pessoa em nossa volta, a
milhas de distância, se aproxime sem que saibamos,
Ou possivelmente contigo navegando no mar, ou nas praias do mar, ou em alguma ilha
silenciosa,
Aqui permito que ponhas teus lábios sobre os meus,
Com o beijo do camarada de longa convivência ou o beijo do marido novo,
Pois sou o novo marido e sou o camarada.
Ou se preferires, pressionando-me debaixo de tuas roupas,
Onde poderei sentir as palpitações de teu coração, ou descansar
sobre o teu quadril,
Carrega-me quando fores adiante, em terra ou no mar,
Pois assim, tocando-te apenas, é o suficiente, é o melhor,
E assim, tocando-te, eu dormiria em silêncio e seria levado para sempre.
Mas estas folhas, iludindo-te, colocam-te em perigo,
Pois não as compreenderás, nem a mim,
Elas hão de iludir-te de pronto e adiante mais ainda; certamente
iludir-te-ei,
Mesmo quando julgares ter me apanhado, inquestionavelmente,contempla!
Já podes ver que escapei de ti.
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Pois não foi pelo seu conteúdo que escrevi este livro,
Nem será pela leitura que o assimilarás,
Nem me conhecem melhor aqueles que me admiram e gloriosamente me elogiam,
Nem os candidatos de meu amor (com exceção de um poucos)serão
vitoriosos,
Nem meus poemas farão apenas o bem, pois farão igualmente o mal, ou
até mais,
Pois tudo é inútil sem aquilo que podes imaginar muitas vezes sem
alcançar aquilo a que me referi;
Assim sendo, liberta-me e segue o teu caminho.
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Agora, ao longo das margens do lago, agora fazendo um pouco de magia, sem sentir medo
da água,
Agora pelas cercas da estrada de ferro do correio, onde as velhas pedras ali jogadas,
colhidas nos campos, se acumularam,
(Flores silvestres e vinhas e a erva daninha sobem pelas pedras e as encobrem
parcialmente, para além delas eu passo)
Longe, longe na floresta, ou vagueando mais tarde no verão, antes de pensar
sobre onde vou,
Solitário, sentindo o cheiro da terra, parando aqui e ali em silêncio,
Sozinho eu ia refletindo: contudo, bem cedo uma tropa se reúne em minha
volta,
Alguns andam ao meu lado e alguns vêm atrás de mim, e alguns se
abraçam aos meus braços e ao pescoço,
Eles, os espíritos de amigos queridos, mortos ou vivos, mais espessos vêm,
uma grande multidão, e eu estou no meio deles,
Colhendo, doando, cantando, vagueio por ali com eles,
Arrancando algumas coisas por penhor, jogando na direção de quem quer que
esteja perto de mim,
Aqui, lilás, com um galho de pinheiro,
Aqui, tirado do meu bolso, algum musgo vivo que puxei de um carvalho na Flórida
e que estava pendurado, se arrastando pelo chão,
Aqui, algumas folhas de cravo e de loureiro, e uma mão cheia de salvas,
E aqui o que eu agora tiro das águas, vagueando ao redor do lago,
(Ó eu vi aqui pela última vez aquele que suavemente me ama e volta
novamente para nunca mais se separar de mim,
E esta, ó que ela seja doravante o sinal dos camaradas, esta raiz de
cálamo,
Permutem-na entre si, jovens! E que ninguém a devolva!)
E ramos de bordo e galhos de laranja selvagem e castanha,
E talos de groselha e ameixeiras, e o cedro aromático,
Estes eu cerquei com uma espessa nuvem de espíritos,
Andando a esmo, apontando ou tocando quando passo, ou lançando- os
frouxamente,
Indicando para cada um o que deve ter, dando algo a cada um;
Mas o que puxei das águas ao longo das margens do lago, aquilo que guardei,
Eu o distribuirei, mas apenas para aqueles que amam tal como sou capaz de amar.
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Com que freqüência penso que nem eu mesmo conheço, que homem algum
conhece, nada disso.)
Talvez ao aparentar-me o que são (tal como de fato eles parecem ser), de meu
ponto de vista atual que poderá ser provado (tal como obviamente eles seriam),
nada do que parecem ser, ou nada de qualquer modo, de pontos de vista inteiramente
alterados;
Para mim, eles e os que se assemelham a eles são curiosamente respondidos pelos
meus amantes, meus amigos queridos,
Quando aquele a quem amo viaja comigo ou se senta por um longo período segurando
as minhas mãos,
Quando o ar súbito, o impalpável, o sentido que escapa às palavras e
à razão nos cercam e nos penetram,
Então sou encarregado com uma sabedoria não dita e indizível, fico
silente, não preciso de mais nada,
Não posso responder à pergunta da aparência ou da identidade além
do túmulo,
Mas ando ou sento com indiferença, estou satisfeito,
Aquele que me segura as mãos me satisfaz inteiramente.
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E ainda assim nas bases do pensamento de Sócrates vejo claramente — e
nas bases dos ensinamentos do Cristo, o divino eu constato,
O terno amor entre o homem e seu semelhante — a afeição do amigo
pelo amigo,
Dos bem casados marido e esposa — entre as crianças e seus pais,
De cidade a cidade e de nação a nação.
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E mais, quando eu me diverti, ou quando meus planos foram realizados, ainda assim eu
não me senti feliz,
Mas no dia em que me levantei da cama, na alvorada, com perfeita saúde,
renovado, cantando, inalando o maduro sopro do outono,
Quando vi a lua cheia no Oeste crescer pálida e desaparecer na luz da
manhã,
Quando vaguei sozinho pela praia e despido me banhei, rindo com as águas
frescas, e avistando o nascer do sol,
E quando pensei sobre o fato de que meu amigo querido, meu amante, já estava
viajando para me encontrar, ó então, senti-me feliz,
Ó então, cada sopro de minha respiração tinha um gosto mais doce,
e durante todo aquele dia a minha comida foi mais nutritiva e o dia maravilhoso passou
tão bem,
E o próximo veio com a mesma alegria, e na noite do próximo veio o meu
amigo,
E naquela noite, quando tudo estava em silêncio, ouvi as águas rolarem
vagarosamente, continuamente, sobre o litoral,
Ouvi o sibilo apressado do líquido nas areias, dirigindo-se para mim,
sussurrando para me congratular,
Pois aquele a quem mais amo estava dormindo ao meu lado, embaixo da mesma coberta, na
noite fresca,
No silêncio dos raios lunares outonais, sua face estava inclinada em minha
direção,
E seus braços caíam levemente em torno de meu peito — e naquela noite
eu estava feliz.
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Mas quando tive notícias da união dos amantes, quando soube o que ocorre
com eles,
De que modo eles, pela vida, através dos perigos e do rancor, não mudaram,
por longo tempo,
Pela juventude, pela meia idade e pela idade avançada, quão resolutos,
quão afetuosos e fiéis foram eles,
Então fico pensativo — saio apressadamente, cheio da mais amarga
inveja.
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(Eu amava uma pessoa ardentemente e meu amor não era recompensado,
Contudo, foi com base nessa circunstância que escrevi estas
canções.)
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Ouço a dança espanhola com as castanholas na sombra da castanheira, no
ritmo da rabeca e do violão,
Ouço os ecos incessantes do Tâmisa,
Ouço ardentes canções francesas pela liberdade,
Ouço do remador italiano a recitação musical de antigos
poemas,
Ouço os gafanhotos na Síria quando atacam os grãos e as folhas no
avanço de suas nuvens terríveis,
Ouço o copta jejuar até o crepúsculo, meditativo, caindo no seio
de negra, venerável e vasta mãe que é o Nilo,
Ouço a voz alegre da condutora de mulas mexicana e o som dos sinos da
mula,
Ouço o almuadem árabe chamando do telhado da mesquita,
Ouço os padres cristãos nos altares de suas igrejas e, em resposta,
ouço a voz do baixo e do soprano,
Ouço o grito do cossaco e a voz dos marinheiros indo para o mar em
Okotsk,
Ouço a respiração ofegante que vem do comboio de escravos, quando
os escravos marcham em frente, quando os grupos de robustos bandidos passam em
grupos de dois e três, atados uns aos outros, com correntes nos pulsos e
correntes nos tornozelos,
Ouço os judeus fazendo a leitura de seus relatos e salmos,
Ouço os mitos rítmicos dos gregos e as poderosas lendas dos
romanos,
Ouço a história da vida divina e da morte sangrenta do Cristo, Deus
maravilhoso,
Ouço os ensinamentos do hindu ao seu discípulo dileto, os amores, as
guerras, os adágios, transmitindo com segurança, nos seus dias, tudo
aquilo que poetas escreveram há três milênios.
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Vejo a curiosa e rápida mudança entre luz e sombra,
Vejo terras distantes, tão reais e próximas de seus habitantes quanto
as minhas terras são para mim.
Vejo águas em abundância,
Vejo picos de montanhas, vejo as serras dos Andes onde elas se enfileiram,
Vejo claramente o Himalaia, Chian Shahs, Altays, Ghauts,
Vejo os pináculos gigantes do Elbruz, Kazbek, Bazardjusi,
Vejo os Alpes Estirenos e os Alpes de Karnac,
Vejo os Pireneus, os Bálcãs, os Cárpatos e para o norte os
Dofrafields, e em pleno mar o monte Hecla,
Vejo o Vesúvio e o Etna, as montanhas da Lua e as Montanhas Vermelhas de
Madagascar,
Vejo os desertos da Líbia, da Arábia e o Asiático,
Vejo imensos e terríveis icebergs árticos e antárticos,
Vejo os oceanos superiores e os inferiores, o Atlântico e o Pacífico,
o mar do México, o mar brasileiro e o mar do Peru,
As águas do Industão, o mar da China e o golfo da Guiné,
As águas do Japão, a bela baía de Nagasaki, de terras presas
entre as montanhas,
A extensão do litoral Báltico, do Cáspio, da Bothnia, da
Bretanha e a baía de Biscay,
O Mediterrâneo banhado pela claridade do sol, de ilha em ilha,
O mar branco e o mar em torno da Groenlândia.
Contemplo os marinheiros do mundo,
Alguns estão em meio a tempestades, alguns estão em meio à noite
fazendo a ronda, vigilantes,
Alguns naufragando indefesos, alguns com doenças contagiosas.
Contemplo os veleiros e os navios a vapor do mundo, alguns agrupados nos
portos, alguns fazendo suas viagens,
Alguns contornam o Cabo das Tormentas, alguns o Cabo Verde, outros os cabos
Guardafui, Bon ou Bojador,
Outras a cabeceira Dondra, outros passam pelo estreito de Sunda, outros pelo
Cabo Lopatka, outros o estreito de Behring,
Outros o Cabo Horn, outros navegam pelo Golfo do México, ou ao longo de
Cuba ou do Haiti, outros a baía do Hudson ou a baía do Baffin,
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Outros passam pelo estreito de Dover, outros entram pelo Wash, outros no
estuário de Solway, outros circundam o Cabo Clear, outros o Land's End,
Outros atravessam o Zuyder Zee ou o Scheld,
Outros vêm e vão pelo Gibraltar ou pelo Dardanelo,
Outros avançam asperamente através das trilhas do inverno
nórdico,
Outros descem ou sobem o Obi ou o Lena,
Outros o Níger ou o Congo, outros o Indo, o Burampooter e Camboja,
Outros aguardam, com seus barcos a vapor, prontos para zarpar dos portos da
Austrália,
Aguardam em Liverpool, Glasglow, Dublin, Marselha, Lisboa, Nápoles,
Hamburgo, Bremen, Bordeaux, Haia, Copenhague,
Aguardam em Valparaíso, Rio de Janeiro, Panamá.
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Vejo os lugares em que se sucederam os sacerdotes da Terra, oráculos,
sacrifícios, brâmanes, sábios, lamas, monges, muftis,
exortadores,
Vejo por onde os druidas caminhavam nos bosques de Mona, vejo o visco e a
verbena,
Vejo os templos das mortes dos corpos dos deuses, vejo os antigos
signatários.
Vejo o Cristo comendo o pão em sua última ceia, entre os jovens e os
idosos,
Vejo onde o moço forte e divino, o Hércules, labuta fiel e longamente
antes de morrer,
Vejo o lugar da vida inocente e rica e o destino desafortunado do maravilhoso
filho noturno, o Baco repleto de membros,
Vejo Kneph, florescendo, vestido de azul, com a coroa de plumas em sua
cabeça,
Vejo Hermes, insuspeito, morrendo, bem amado, dizendo ao povo Não chorem por mim,
Esta não é a minha verdadeira pátria, vivi exilado
de minha pátria verdadeira, agora retorno para lá,
Retorno para a esfera celestial para onde todos irão quando
chegar a sua vez.
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Vejo as estepes da Ásia,
Vejo os túmulos da Mongólia, vejo as tendas de kalmucks e
baskirs,
Vejo as tribos nômades com manadas de bois e vacas,
Vejo os planaltos entalhados por ravinas, vejo as florestas e os desertos,
Vejo o camelo, o corcel selvagem, a betarda, a ovelha de rabo gordo, o
antílope e a raposa cavando sua toca.
Vejo as terras altas de Abissínia,
Vejo os rebanhos de cabras se alimentando e vejo as figueiras, os tamarindos,
as tâmaras,
E vejo os campos de trigo e os espaços de verdura e de ouro.
Vejo o vaqueiro brasileiro,
Vejo o boliviano subindo o monte Sorata,
Vejo o wacho cruzando as planícies, vejo o seu galope incomparável
sobre o cavalo levando o laço nos braços,
Vejo por sobre os pampas a perseguição ao gado selvagem em seus
esconderijos.
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Vejo Teerã, vejo Muscat e Medina e o deserto que as separa, vejo as
caravanas sofrendo para ir em frente,
Vejo o Egito e os egípcios, vejo as pirâmides e os obeliscos,
Vejo as histórias entalhadas, registradas pelos reis conquistadores, pelas
dinastias, cortadas em lajes de pedra de moer ou em blocos de granito,
Vejo em Memphis as tumbas de múmias contendo múmias embalsamadas,
embrulhadas em linho, deitadas ali por muitos séculos,
Vejo o tebano caído, os olhos grandes e redondos, o pescoço pendendo
para o lado, as mãos cruzadas sobre o peito.
Vejo todos os lacaios da Terra, trabalhando,
Vejo todos os prisioneiros nas prisões,
Vejo todos os corpos humanos defeituosos,
Os cegos, os surdos, os mudos, os idiotas, os corcundas, os lunáticos,
Os piratas, os ladrões, os traidores, os assassinos, os escravocratas da
Terra,
As crianças indefesas, os homens e mulheres indefesos.
Vejo os homens e as mulheres por toda a parte,
Vejo as serenas fraternidades de filósofos,
Vejo a engenhosidade de minha raça,
Vejo os resultados da perseverança e da indústria de minha
raça,
Vejo classes sociais, cores, barbáries, civilizações, caminho
entre elas, misturo-me a elas, indiscriminadamente,
E saúdo todos os habitantes da Terra.
med.00400.160.jpg
Tu, resoluto austríaco! Tu, lombardo! Huno! Boêmio! Fazendeiro da
Síria!
Tu, vizinho do Danúbio!
Tu, operário do Reno, do Elba ou do Weser! Tu, operária
também!
Tu, da Sardenha! Tu, da Bavária! Suábio! Saxão! Romeno!
Búlgaro!
Tu, romano! Napolitano! Tu, grego!
Tu, pequeno matador na arena de Sevilha!
Tu, montanhês residindo sem lei no Taurus ou no Cáucaso!
Tu, bokh de rebanhos eqüinos assistindo a tuas
éguas e teus garanhões pastando!
Tu, persa de corpo modelar cavalgando em velocidade máxima em tua sela,
acertando flechas no alvo!
Tu, chinês, e tu, chinesa da China! Tu, tártaro da Tartária!
Tu, mulher da terra, subordinada aos teus trabalhos!
Tu, judeu peregrinando em tua idade avançada em meio a tantos riscos para
erguer-se uma vez em solo Sírio!
Tu, outro judeu, esperando em todas as terras por teu Messias!
Tu, amável armênio, meditando nas margens de algum riacho do
Eufrates! Tu, perscrutando em meio às ruínas de Nínive!
Tu, subindo no monte Ararat!
Tu, peregrino de pés feridos bendizendo o brilho longínquo dos
minaretes de Meca!
Vós, xeques caminhando pelo trecho que vai de Suez a Bab-el-mandeb
soberanos sobre vossas famílias e tribos!
Tu, cultivador de oliveiras guardando teus frutos nos campos de Nazaré,
Damasco ou Lago Tiberíade!
Tu, comerciante tibetano na vastidão do interior ou pechinchando nas lojas
de Lassa!
Tu, homem japonês, ou tu, mulher japonesa! Tu, que vives em Madagascar,
Ceilão, Sumatra, Bornéu!
Todos vós, dos continentes da Ásia, África, Europa,
Austrália, indiferentemente de lugar!
Todos vós, nas incontáveis ilhas dos arquipélagos que há no
mar!
E vós, dos séculos vindouros quando me ouvirdes!
E vós, de cada um dos locais que não especifiquei, mas a quem incluo
igualmente!
Saúde para vós! Boa vontade para vós todos, enviados por mim e
pela América!
Cada um de nós inevitável,
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Cada um de nós sem limites — cada um com o seu direito sobre a
Terra,
Cada um de nós recebendo os conteúdos eternos da Terra,
Cada um de nós aqui tão divino quanto qualquer um.
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Salut au monde!
Cidades nas quais penetram a luz ou o calor, eu mesmo as penetro,
Todas as ilhas para as quais os pássaros voam em seu roteiro, eu mesmo
vôo em meu roteiro para elas.
Na direção de todos vós, em nome da América,
Eu ergo nas alturas a mão perpendicular, faço o sinal,
Para que permaneça visível após mim, para sempre,
Para todos os abrigos e lares da humanidade.
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Acredito que muito do que é invisível também esteja aqui.
Aqui está a profunda lição da receptividade, não a da
preferência nem a da negação,
O negro com sua cabeça lanífera, o criminoso, o enfermo, o
analfabeto, não são discriminados,
O nascimento, a procura apressada por um médico, o passo lento do mendigo,
a tontura do bêbado, a festa alegre de mecânicos,
O jovem foragido, a carruagem do rico, o almofadinha, o casal fugidio,
O homem que madruga na feira, o carro fúnebre, a entrada da mobília
na vila, o regresso da cidade,
Eles passam, eu passo também, qualquer coisa passa, nada é
interditado,
Nada deixa de ser aceito, nada deixará de ser querido para mim.
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Tudo me parece maravilhoso,
Posso repetir e repetir para homens e mulheres: vós fizestes tanto bem a
mim e eu faria o mesmo por vós,
Recrutarei para mim e para vós na medida em que avanço,
Derramar-me-ei entre os homens e as mulheres na medida em que avanço,
Lançarei nova alegria e aspereza entre eles,
E se alguém me negar, isso não me incomodará,
Quem quer que me aceite, ele ou ela, há de ser abençoado e há de
abençoar-me.
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funcionar em absoluto abaixo da vastidão das nuvens e ao longo das
paisagens e das correntes que fluem.
Aqui está a concepção,
Aqui está um homem contado — ele concebe aqui o que está
nele,
O passado, o futuro, a majestade, o amor — se eles estão vazios de
ti, estás vazio deles.
Apenas o núcleo de cada objeto pode nutrir;
Onde está ele, que remove as cascas por ti e por mim?
Onde está ele, que desfaz estratagemas e envelopes por ti e por mim?
Aqui está a adesividade, ela não foi talhada previamente, ela é
oportuna.
Sabes o que significa ser amado por estranhos?
Sabes o que dizem aqueles olhos que se voltam para ti?
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Agora ela flui para nós, estamos dela carregados certamente.
Aqui se ergue o fluido e o caráter que se prende a nós,
O fluido e o caráter que se prende a nós dão o frescor e a
doçura do homem e da mulher
(As ervas da manhã não germinam mais frescas e doces todos os dias, a
partir de suas raízes, do que eles germinam frescos e doces continuamente
de si mesmos.)
Em direção ao fluido e ao caráter que se prende a nós,
aparece o suor do amor dos jovens e dos idosos,
Deles cai destilado o charme que ri da beleza e de tudo o que se
obtém,
Na direção deles as náuseas fazem estremecer com saudades do
contato.
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Allons! Com poder, liberdade, a terra, os elementos,
Saúde, desafio, alegria, auto-estima, curiosidade;
Allons! De todas as fórmulas!
De vossas fórmulas, ó padres materialistas com olhos de morcego.
O cadáver bolorento bloqueia a passagem — o enterro não pode
mais esperar.
Allons! Contudo esteja alerta!
Aquele que viaja comigo precisa do melhor sangue,
tendões,resistência,
Ninguém pode vir ao tribunal até que tenha plena coragem e
saúde,
Não venhas para cá se já usaste o melhor de ti,
Só podem vir os que tenham seus corpos doces e determinados.
Ninguém que esteja doente, nenhum bebedor de rum ou portador de
doença venérea pode entrar aqui.
(Eu e o meu não convencemos por argumentos, sorrisos, rimas,
Convencemos pela nossa presença.)
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majestosos
— são as mais grandiosas mulheres,
Desfrutadores das calmarias marítimas e das tempestades marítimas,
Marinheiros de muitos navios, andarilhos de muitas milhas em terra,
Habituès de muitos países distantes, Habituès de moradias distantes,
Confiantes nos homens e nas mulheres, observadores das cidades, trabalhadores
solitários,
Aqueles que param para contemplar os topetes, os botões, as conchas do
mar,
Dançarinos de festas de casamento, beijadores de noivas, carinhosos
ajudantes de crianças, condutores de crianças,
Soldados de revoltas, guardadores de túmulos abertos, abaixadores de
caixão,
Viajantes de estações consecutivas, através dos anos, os anos
curiosos, cada um emergindo daquele que o precedeu,
Viajantes com seus companheiros, a saber suas próprias etapas diversas,
Cavalos marchadores para adiante desde os dias primevos latentes e não
imaginados,
Viajantes alegres com sua própria juventude, viajantes com sua masculinidade
de barba bem feita,
Viajantes com sua feminilidade, ampla, insuperável, satisfeita,
Viajantes com sua própria masculinidade ou feminilidade de idade
avançada e sublime,
Idade avançada, calma, expandida, ampla com a orgulhosa largura do
universo,
Idade avançada, fluindo livremente com a deliciosa liberdade da morte que se
aproxima.
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Não vendo possessão alguma, mas sendo capaz de possuir tudo,
desfrutando de tudo sem labuta ou investimento, abstraindo a
festa e, contudo, sem abstrair uma única partícula dela,
Tomando o melhor da fazenda do fazendeiro e da elegante vila do homem rico, e
das castas bênçãos do casal recém-casado, e dos frutos dos
pomares e das flores dos jardins,
Tomando para teu uso aquilo que há nas pequenas cidades quando passas por
elas,
Carregando prédios e ruas contigo, mais tarde, onde quer que vás,
Colhendo os gênios dos homens em seus cérebros à medida que os
encontre, colhendo o amor de seus corações,
Conduzindo teus amantes contigo pela estrada, por tudo aquilo que os deixas
para trás de ti,
Conhecendo o próprio universo como uma estrada, tantas quantas sejam as
estradas, como estradas para as almas viajantes.
Tudo se fraciona pelo progresso das almas,
Toda a religião, tudo o que é sólido, as artes, os governos
— tudo o que era ou é aparente sobre o globo ou qualquer globo, cai
em nichos ou esquinas perante a procissão das almas ao longo das grandes
estradas do universo.
Do progresso das almas dos homens e das mulheres, ao longo das grandes estradas
do universo, todo o outro progresso é o símbolo e a
sustentação necessários.
Para sempre vivas, para sempre adiante,
Altivas, solenes, tristes, retiradas, confusas, loucas, turbulentas,
frágeis, insatisfeitas,
Desesperadas, orgulhosas, amorosas, doentes, aceitas pelos homens, rejeitadas
pelos homens,
Elas vão! Elas vão! Eu sei que elas vão! Mas não sei para
onde vão,
Mas eu sei que elas vão na direção do melhor — na
direção de algo grandioso.
Quem quer que sejas, avança! Sejas homem ou mulher, avança!
Não deves ficar dormindo e brincando aí em tua casa, ainda que a
tenhas construído para ti.
Fora do confinamento na escuridão! Fora de detrás das cortinas!
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É inútil protestar, tudo conheço e exponho!
Olho através de ti e vejo-te tão mal como todos os outros,
Através do riso, da dança, do jantar, da ceia, das pessoas,
Dentro dos vestidos e dos ornamentos, dentro daquelas faces lavadas e
aparadas,
Contemplo um segredo silencioso de abominação e desespero.
Em nenhum marido, em nenhuma esposa, em nenhum amigo pode- se confiar para
ouvir a confissão,
Outro ser, um duplo de cada um, se esquiva e se esconde sempre mais,
Sem forma e sem palavras através das ruas das cidades, polidos e
afáveis nas salas de estar,
Nos vagões das estradas de ferro, em barcos a vapor, nas assembléias
públicas,
Lares para as casas dos homens e mulheres, nas mesas, no quarto de dormir, em
toda parte,
Espertamente enfeitados, com a fisionomia sorridente, eretos, com a morte
debaixo das costelas, com o inferno debaixo do crânio,
Debaixo da casimira fina e das luvas, debaixo dos laços e das flores
artificiais,
Mantendo-se dentro dos costumes, não falando uma única sílaba de
si mesmo,
Falando de qualquer outra coisa, mas jamais de si mesmo.
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cada um
desintegrado e, contudo, sendo parte do esquema,
As similaridades do passado e aquelas similaridades do futuro,
As glórias penduradas como contas nas minhas menores visões e em tudo
o que ouço, na calçada das ruas e nas pontes sobre os rios,
A corrente descendo tão rapidamente, levando-me a nado para longe,
Os outros que devem me seguir, os laços que existem entre eu e eles,
A certeza dos outros, a vida, o amor, a visão, o ato de ouvir os
outros.
Outros entrarão pelos portões da balsa e cruzarão de margem a
margem,
Outros assistirão a rapidez do transbordamento da maré,
Outros verão os navios de Manhattan ao norte e a oeste e as
elevações do Brooklyn para o sul e para o leste,
Outros verão as ilhas grandes e pequenas;
Dentro de cinqüenta anos, outros vão ter essa visão quando
fizerem a travessia, o sol nascido há meia hora,
Dentro de cem anos, ou mesmo dentro de centenas de anos, outros vão ter
essa visão,
Desfrutarão o pôr-do-sol, a água que entra pelo transbordamento
da maré, o retorno do mar no refluxo da maré.
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Contemplei as gaivotas de doze meses, vi-as nas alturas, flutuando com asas
imóveis, oscilando seus corpos,
Vi como o amarelo reluzente acendia uma parte de seus corpos,deixando o resto
na sombra mais completa,
Vi como voavam em círculos, vagarosamente, bordejando gradualmente o
continente para o sul,
Vi o reflexo do céu de verão nas águas,
Senti meus olhos deslumbrarem-se com a beleza do percurso dos raios de sol,
Olhei para os finos raios centrífugos de luz, que incidiam como
círculos em minha cabeça, refletidos na água iluminada pelo
sol,
Olhei para a névoa nas montanhas em direção ao sul e ao
sudoeste,
Olhei para o vapor esvoaçante como lã tingida de violeta,
Olhei na direção da baía inferior para observar as naus que
chegavam,
Vi sua chegada, vi que estavam a bordo aqueles que estavam próximos de
mim,
Vi as velas brancas das escunas e corvetas, vi os barcos nos ancoradouros,
Os marinheiros manejando o cordame ou pendurados nos mastros,
Os mastros cilíndricos, o movimento pendular das armações, as
bandeiras esguias a serpentear,
Os grandes e os pequenos barcos a vapor, os pilotos em suas cabinas,
A esteira branca deixada pela passagem do navio, a rapidez trêmula do giro
do timão,
As bandeiras de todas as nações, o seu arriamento ao
pôr-do-sol,
As projeções curvilíneas na borda das ondas ao crepúsculo,
as conchas, a crista brincalhona e brilhante das ondas,
A linha do horizonte cada vez mais imersa na escuridão, as paredes
cinzentas dos prédios de granito dos armazéns nas docas,
Pelo rio, vultos sombrios, o grande rebocador a vapor tendo um batel de cada
lado, o barco de feno, as barcaças morosas,
Na margem próxima os fogos das chaminés das fundições
queimando nas alturas e fulgurantes noite adentro,
Lançando seu estalido de preto, contrastado com vermelho selvagem, e a luz
amarela sobre o telhado das casas, e nos corredores das ruas.
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Os homens e mulheres que vi estavam todos próximos de mim,
Outros também — outros que se viraram para me ver porque olhei para
frente para vê-los
(Esse tempo virá, embora eu pare por aqui neste dia e nesta noite.)
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Em mim o olhar de traição, a palavra frívola, o desejo
adúltero, sem que eu os quisesse,
Em mim rejeições, ódios, adiamentos, maldade, preguiça, sem
que eu os quisesse,
Fui um com os demais, com os dias e a sorte dos demais,
Fui chamado pelo meu nome mais íntimo, por vozes altas e claras de jovens
homens, quando eles me viram chegando ou passando por eles,
Senti seus braços em meu pescoço quando parei, ou o contato de seus
corpos que se deixaram cair, sobre mim quando me sentei,
Vi muitos que amei nas ruas ou nas balsas ou nas assembléias públicas
e, contudo, nunca lhes disse uma única palavra,
Vivi a mesma vida com os demais, dei as mesmas velhas gargalhadas, atormentado,
dormindo,
Participei da peça que ainda procura, no passado, o ator ou a atriz,
O mesmo velho papel, o papel que é aquele que fazemos existir, tão
grandioso quanto o desejamos,
Ou tão pequeno quanto o queremos, ou ambos: grandioso e pequeno.
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O que pode ser mais sutil do que isso que me ata à mulher ou ao homem que
olham para mim?
O que me funde em ti neste momento e derrama o meu significado em ti?
Nós os compreendemos, não é verdade?!
Aceitaste aquilo que te prometi sem questionar, não é verdade?
Aquilo que o estudo não levaria a aprender — aquilo que a
pregação não poderia conseguir é conseguido, não é
verdade?!
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Avante, navios da baía inferior! Passai para cima ou para baixo, escunas
de velas brancas, corvetas, barcaças!
Ostentai-vos, bandeiras de todas as nações! Arriai-vos pontualmente
no pôr-do-sol!
Queimai os vossos fogos, chaminés das fundições! Lançai
sombras negras sobre o anoitecer! Lançai luzes vermelhas e amarelas sobre
os telhados das casas!
As aparências, agora ou de agora em diante, indicam o que és,
Tu, necessário filme, continua envolvendo a alma,
Sobre o meu corpo por mim, e sobre o teu corpo por ti, pendurai- vos, aromas
divinos,
Prosperai, cidades — trazei vosso frete, trazei os vossos
espetáculos, rios amplos e suficientes,
Expandi-vos, tornando-se talvez aquilo que nada pode superar em
espiritualidade,
Guardai os vossos lugares, objetos que não encontrarão nada mais
duradouro do que si.
Já esperastes, sempre esperastes, vós, mudos, maravilhosos
ministros,
Nós vos recebemos com um senso de liberdade, finalmente, e nos tornamos
insaciáveis de agora em diante,
Não mais sereis capazes de nos despistar ou de negar-vos a nós,
Usamo-vos e não vos lançamos fora — plantamo-vos
permanentemente dentro de nós,
Não nos aprofundamos em vós — amamo-vos — também
há perfeição em vós,
Forneceis vossas partes rumo à eternidade,
Grandes ou pequenas, vós ofereceis vossas partes para a alma.
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Diga-lhe que me envie os sinais.
E eu paro diante do jovem face a face e pego a sua mão direita na minha
mão esquerda e sua mão esquerda na minha mão direita,
E respondo para o seu irmão e para os homens, e respondo para aquele que
responde por todos, e envio estes sinais.
A ele que todos aguardam, a ele a quem todos cedem, sua palavra é decisiva
e final,
A ele a quem eles aceitam, nele se banharam, nele se percebem em meio à
luz,
A ele que é submergido por eles e que os submerge.
Mulheres maravilhosas, as nações mais justas, as leis, as paisagens,
o povo, os animais,
A terra profunda e seus atributos e o oceano inquieto (assim eu narro a minha
romanza matinal.)
Todos os prazeres e as propriedades e dinheiro, e tudo aquilo que o dinheiro
comprará,
Nas melhores fazendas, são outros os que labutam e plantam e é ele
que, inevitavelmente, colhe,
Nas cidades mais nobres e mais caras, são outros os que preparam o terreno
e constroem e é ele quem lá reside,
Nada é por alguém que não seja para ele, próximos e
distantes os navios em alto mar são para ele,
As perpétuas demonstrações e as marchas em terra são para
ele, se são de fato para alguém.
Ele acrescenta algo na atitude deles,
Ele tira o hoje de si mesmo com plasticidade e amor,
Ele estabelece seus próprios tempos, reminiscências, parentes,
irmãos e irmãs, associações, empregos, políticos, de
modo que os demais nunca o envergonham mais tarde, nem ele julga que os
comanda.
Ele é o Respondente,
Tudo o que pode ser respondido ele responde, e o que não pode ser
respondido ele mostra como não pode ser respondido.
Um homem é um chamado e um desafio,
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(É em vão que se esquiva — ouves a chacota e o riso? Ouves os
ecos irônicos?)
Livros, amigos, filósofos, padres, ação, prazer, orgulho,
palpitações altas e baixas na busca de dar satisfação,
Ele indica a satisfação e indica a eles também aquele ritmo de
palpitações.
Qualquer que seja o sexo, qualquer que seja a estação ou o lugar, ele
pode continuar, renovado e gentil, e seguro de dia e à noite,
Ele possui a senha dos corações, para ele a resposta das mãos
que se intrometem a girar a maçaneta.
Seu acolhimento é universal, o fluxo da beleza não é mais
bem-vindo ou universal do que ele é,
A pessoa a quem ele favorece durante o dia ou com quem ele dorme à noite
é abençoada.
Toda existência tem a sua linguagem, tudo tem um idioma e uma
língua,
Ele inclui todas as línguas na sua e a entrega aos homens, e qualquer
homem traduz, e qualquer homem igualmente se traduz,
Uma parte não se contrapõe à outra, ele é o elo entre
ambas, ele pode compreender de que modo elas se unem.
Ele fala sem diferenciar-se e de modo semelhante Como
estás amigo?, ao Presidente em sua recepção,
E diz Adeus, meu irmão, ao bóia-fria que
capina no campo de açúcar,
E ambos o compreendem e sabem que seu discurso está correto.
Ele se move com perfeita agilidade nos corredores do Capitólio,
Anda entre os congressistas, e um deputado diz ao outro, Ali
vai um de nossos novos pares .
Então os mecânicos tomam-no por um mecânico,
E os soldados supõem que ele seja um soldado, e os marinheiros acreditam
que ele singrou os mares,
E os escritores tomam-no por um escritor, e os artistas por um artista,
E os operários percebem que ele poderia trabalhar com eles e
amá-los,
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Não importa qual seja a profissão, ele é potencialmente adequado
a ela ou nela já atuou,
Não importa de que nação falemos, ele há de encontrar ali
os seus irmãos e suas irmãs.
Os ingleses acreditam que ele vem para a colônia Britânica,
Ao judeu ele aparenta ser um judeu, um russo para o russo, costumeiro e
próximo, saído do nada.
Todos para os quais ele olha na cafeteria dos viajantes atribuem a ele a sua
própria nacionalidade,
Os italianos e os franceses têm certeza, o alemão tem certeza, o
espanhol tem certeza, o cidadão cubano tem certeza que ele é seu
concidadão,
O engenheiro, o taifeiro dos grandes lagos, ou no Mississippi ou em St.
Lawrence ou em Sacramento, ou ao som do Hudson ou do Paumanok, todos o
reconhecem como igual.
Os cavalheiros de sangue perfeito reconhecem o seu sangue perfeito,
Aquele que insulta, a prostituta, a pessoa com raiva, o pedinte, se vêem
projetados nele e ele estranhamente se transforma neles,
Eles não são piores, eles mal conhecem a grandeza que existe dentro
de si.
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(Nem todo o século, nem mesmo o intervalo de cada cinco séculos
contém esse dia, com todos os seus nomes.)
Os cantores das horas sucessivas dos séculos podem ter nomes ostensivos,
mas o nome de cada um deles é de um dos cantores,
O nome de cada um é: olho cantor, ouvido cantor, cabeça cantora, doce
cantor, cantor da noite, cantor de salão, cantor do amor, cantor do destino
ou de algo mais.
Todo esse tempo e em todos os tempos, espere pelas palavras dos poemas
verdadeiros,
As palavras dos poemas verdadeiros não são aquelas que simplesmente
agradam,
Os verdadeiros poetas não são os seguidores da beleza, mas os
augustos mestres da beleza;
A grandeza dos filhos é a exsudação da grandeza das mães e
dos pais,
As palavras dos poemas verdadeiros são a coroa e o aplauso final da
ciência.
Instinto divino, amplitude da visão, a lei da razão, saúde,
rudeza do corpo, capacidade de se retirar,
Alegria, pele morena, doçura do ar, essas são algumas das palavras
dos poemas.
Os marinheiros e os viajantes subjazem aos autores de poemas, os
Respondentes,
O construtor, o geômetra, o químico, o anatomista, o frenologista, o
artista, todos esses subjazem ao autor de poemas, o Respondente.
As palavras dos verdadeiros poemas dão-te mais do que poemas,
Elas são a matéria-prima para que possas fazer tu mesmo poemas,
religiões, política, guerra, paz, comportamento, história,
ensaios, vida diária e tudo o mais,
Elas põem em equilíbrio as categorias, as cores, as raças, os
credos, e os sexos,
Elas não procuram a beleza, elas são procuradas,
Para sempre as tocando, ou próxima delas, segue a beleza, cheia de
desejos, ansiosa, doente de amor.
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Elas preparam para a morte e, contudo, não são o fim, ao
contrário, a partida,
Elas não conduzem ninguém ao seu término ou para a sua
satisfação e contentamento,
Aqueles que são conduzidos por elas são conduzidos para o
espaço, de modo que assistam ao nascimento das estrelas, para que aprendam
os seus significados,
Para lançá-los com fé absoluta, para arrebatar os anéis
intermináveis e nunca mais se aquietarem.
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Todos os personagens, movimentos, crescimentos, uns poucos notados, miríades
não observadas,
Através das ruas de Mannahatta eu ando, reunindo essas coisas,
Em rios interiores, à noite, na superfície lustrosa dos nós do
pinho, no abastecimento de madeira em barcos a vapor,
Luz solar durante o dia no vale do Susquehanna, e no vale do Potomac e
Rappahannock, e nos vales de Roanoke e Delaware,
Nas florestas selvagens do norte, feras predadoras assombrando as montanhas
Adirondack, ou contornando as águas do rio Saginaw para beber,
Numa enseada solitária, um merganso perdido do bando pousa na água
balançando-se em silêncio,
Nos celeiros das fazendas, os bois nos estábulos, seu trabalho de colheita
completado, descansando de pé, muito cansados,
Bem longe, no gelo ártico, a morsa deita-se preguiçosamente enquanto seus
filhotes brincam ao redor,
O falcão navegando por onde homem algum já navegou, o mais longínquo
oceano polar, cristalino, aberto, além das massas de gelo,
Montanha branca flutuante colhendo tudo o que está à sua frente, onde o
navio se arroja na tempestade,
Em terra firme, o que se faz nas cidades quando os sinos tocam juntos à
meia-noite,
Os sons também alcançam florestas primitivas, o uivo do lobo, o grito da
pantera, e a rouquidão do alce,
No inverno, embaixo da superfície de gelo azul do lago Moosehead, e no
verão, visível, através das águas claras, a truta grande
nada.
Nas latitudes mais baixas, em ares mais quentes, nas Carolinas, o grande urubu
negro circula vagarosamente no alto, acima dos topos das árvores,
Abaixo, o cedro vermelho abarrotado de tylandria, os pinhos
e ciprestes crescendo na areia branca que se espalha ao longe e é plana,
Barcos repentinos descendo o grande Pedee, trepadeiras, parasitas com suas flores
coloridas e frutas vermelhas envolvendo árvores imensas,
A folhagem longa e ondulante derramando-se sobre o carvalho americano até o
chão, balançando sem ruídos pela ação do vento,
O acampamento dos carroceiros da Geórgia ao anoitecer, as fogueiras gigantes
em torno das quais brancos e negros cozinham e comem,
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Trinta ou quarenta grandes carroças, mulas, gado, cavalos, alimentando-se no
cocho,
As sombras, os brilhos, sob as folhas do velho Sicômoro, as chamas com
fumaça negra de madeira escura que sobe em espiral;
Pescadores do sul pescando, os estuários e as angras da costa da Carolina do
Norte, a pescaria de sável, a pescaria de arenque, as grandes redes de
arrastão, nas praias, as máquinas de reboque movidas a cavalo, as casas
onde se limpam, curam e empacotam os peixes,
No interior da floresta repleta de pinheiros, o gotejar da terebintina das
incisões feitas nas árvores, aqueles que trabalham com a terebintina,
Há os negros trabalhando com boa saúde, em todas as direções, a
terra está coberta com a palha dos pinheiros;
No Tennessee e no Kentucky, escravos ocupados no abastecimento de carvão na
forja, ao lado do brilho da fornalha, ou na remoção das cascas do
milho,
Na Virgínia, o filho do plantador retorna depois de um longo tempo de
ausência, acolhido alegremente e beijado pela idosa ama de leite mulata,
Nos rios, os barqueiros ancorados firmemente na caída da noite, em seus
barcos, debaixo do abrigo das margens elevadas,
Alguns dos homens mais jovens dançam ao som do banjo ou da rabeca, outros
sentam-se nas amuradas fumando e conversando;
No final da tarde o pássaro-das-cem-línguas, o mímico americano,
cantando no Grande Pântano Desolador,
Há as águas esverdeadas, o cheiro resinoso, a alga abundante, o cipreste,
o zimbro;
Para o Norte, jovens soldados de Mannahatta que, à noite, retornam para casa,
vindos de uma excursão, e na boca do cano de suas espingardas estão flores
e mais flores que lhes foram ofertadas por mulheres;
Crianças a brincar ou, no colo de seu pai, um menino que cai no sono (como
seus lábios se movem! Quanto sorriso há em seu sono!)
O batedor cavalga seu cavalo nos planaltos, a oeste do Mississippi, ele sobe num
outeiro e lança um olhar ao redor,
Vida da Califórnia, o mineiro barbado, vestido em seus trajes rudes, a leal
amizade da Califórnia, o ar doce, os túmulos que aqueles que passam
solitários encontram à margem da estrada;
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Para o sul, no Texas, o campo de algodão, as cabanas dos negros, condutores
conduzindo mulas, os fardos de algodão empilhados nas margens e nos
embarcadouros;
Tudo abraçando, arremessando ao longe e na amplidão, a Alma da
América,
Com iguais hemisférios, um Amor, uma Dilação ou Orgulho;
Em arriere, o diálogo de paz com os aborígines
iroqueses, o cachimbo sagrado, o cachimbo da paz, a arbitragem, e o endosso,
O cacique soprando a fumaça primeiramente em direção ao sol e depois
em direção à terra,
O drama da dança do escalpelo ordenada com faces pintadas e
exclamações guturais,
A exibição da festividade guerreira, a marcha longa e dissimulada,
A fila indiana, o vaivém das engenhocas, o ataque surpresa e o massacre dos
inimigos;
Todos os atos, cenas, pessoas, atitudes destes Estados, reminiscências,
instituições,
Todos estes Estados sólidos, cada milha quadrada do território destes
Estados sem a exceção de uma única partícula;
Eu satisfeito, perambulando por alamedas e campos do interior, campos de
Paumanok,
Observando o vôo em espiral de duas borboletas amarelas embaralhando-se,
subindo alto no ar,
A andorinha que se arremessa, o destruidor de insetos, o viajante do outono indo
para o sul, mas retornando para o norte no início da primavera,
O rapaz ao fim do dia conduzindo o rebanho bovino e gritando para que as vacas
não se retardem para pastar na beira da estrada,
O cais da cidade em Boston, Filadélfia, Baltimore, Charleston, New Orleans,
San Francisco,
A partida dos navios quando os marinheiros se erguem no cabrestante;
Fim do dia — eu em meu quarto — o pôr-do-sol,
O sol de verão que se põe, brilhando pela abertura de minha janela,
mostrando o enxame de moscas, suspenso, balançando-se no ar no centro do
quarto, arremessando-se de lado a lado, subindo e descendo, lançando sombras
ligeiras como se fossem manchas na parede oposta ao brilho do sol;
A atlética matrona americana falando em público para multidões de
ouvintes,
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Machos, fêmeas, imigrantes, mestiços, a abundância, a
individualidade dos Estados, cada um com suas qualidades
— os fazedores de dinheiro,
Fábricas, máquinas, as forças mecânicas, o guindaste, a
alavanca, a roldana, todas as certezas,
A certeza de espaço, aumento, liberdade, futuro,
No espaço as espórades, as ilhas espalhadas, as estrelas — em solo
firme, as terras, minhas terras,
Ó terras! Todas tão amadas por mim — o que sois (independentemente
do que sois), eu as cito ao acaso nestas
canções, integro-as a elas, o que quer que sejam,
Caminhando para o sul, eu grito, com asas que se agitam morosamente, ao lado de
miríades de gaivotas preparando-se
para o inverno, ao longo da costa da Flórida,
Em outras paragens excitantes, as margens do Rio Arkansas, o Rio Grande, o Nueces,
o Brazos, o Tombigbee, o Rio Vermelho, o
Saskatchawan ou o Osage, eu com as águas da fonte rindo,
pulando e correndo,
Para o Norte, nas areias, em alguma baía rasa do Paumanok, eu com grupos de
garças brancas andando sobre as poças d'agua
para encontrar minhocas e plantas aquáticas,
Retirando-me, cantando em triunfo, o rei das aves, superando o anúncio do
corvo, por diversão — e eu cantando em triunfo.
O bando migrante de patos selvagens descendo no outono para se refrescar, o bando
se alimentando, as sentinelas externas do
bando fazendo seu turno com cabeças eretas, vigiando,
revezadas por outras sentinelas de tempos em tempos
— e eu revezando com os outros,
Nas florestas canadenses o alce, grande como um boi, encurralado por
caçadores, erguendo-se desesperadamente em suas patas
traseiras e mergulhando com suas patas dianteiras, os cascos
afiados como facas — e eu, mergulhando sobre os
caçadores, encurralado e desesperado,
Em Mannahatta, ruas, cais, navios, armazéns e os incontáveis
operários trabalhando nas oficinas,
E eu também de Mannahatta, cantando isso — e não menos em mim do
que no todo de Mannahatta,
Cantando a canção Desses, de minhas terras sempre unidas — meu
corpo não é mais inevitavelmente unido do que elas, parte a
parte, e composto de mil contribuições distintas numa só
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identidade, não mais do que as minhas terras estão inevitavelmente unidas
e feitas NUMA IDENTIDADE;
Nascimentos, climas, a relva das grandes planícies pastoris,
Cidades, empregos, morte, animais, produtos, guerra, bem e mal — esses sou
eu,
Esses fornecendo, em todas as suas particularidades, a velha feuillage para mim e para a América, como posso fazer menos que
passar-lhes a chave da união, de passar-te o mesmo?
Quem quer que sejas! Como posso oferecer-te algo além de folhas divinas, para
que tu te tornes aceitável como eu sou?
O que posso fazer senão, como aqui cantando, convidar-te para que colhas os
incomparáveis buquês da feuillage destes
Estados?
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O odor intenso da terra ao amanhecer e durante toda a tarde.
Ó prazeres dos cavaleiros e das amazonas!
A sela, o galope, a pressão sobre o assento, o sereno acariciando os ouvidos
e os cabelos.
Ó alegrias do bombeiro!
Ouço as sirenes na calada da noite,
Ouço os sinos, os gritos, passo pela multidão, corro!
A visão das chamas enlouqueceu-me de prazer.
Ó alegria do lutador forte e moreno, sobressaindo-se bem no centro da arena
em perfeitas condições, consciente de sua força, sedento por
encontrar seu oponente.
Ó alegria daquela vasta e poderosa compaixão que apenas a alma humana
é capaz de gerar e oferecer em fluxos contínuos e ilimitados.
Ó alegria da mãe!
A atenção, a resistência, o amor precioso, a angústia, a vida
cedida pacientemente.
Ó alegria do aumento, do crescimento, da recuperação,
A alegria de acalmar e pacificar, a alegria do acordo e da harmonia.
Ó retornar ao lugar em que nasci,
Ouvir os pássaros cantarem uma vez mais,
Perambular em volta da casa e pelo celeiro e cruzando os campos mais uma vez,
E através do pomar e ao longo das picadas antigas mais uma vez.
Ó ter sido criado nas baías, lagoas, riachos ou ao longo da costa,
Continuar ali e trabalhar ali toda a minha vida,
O cheiro salgado e a maresia, a praia, as ervas marítimas expostas na
água rasa,
O trabalho do pescador, o daquele que pesca enguias e do que pesca mariscos;
Eu venho com meu ancinho e minha pá de marisco, venho com meu arpão de
enguia,
Está na hora da vazante da maré? Reúno-me ao grupo de cavadores de
marisco nos pântanos,
Eu me divirto e trabalho com eles, brinco no meu trabalho com a índole de um
jovem;
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No inverno, levo meu balde de enguia e minha lança de enguia e viajo a
pé sobre o gelo — tenho um pequeno machado com o qual faço buracos
no gelo,
Contempla-me bem vestido indo adiante alegremente ou retornando à tarde, com
a minha descendência de rapazes fortes me acompanhando,
Minha descendência de rapazes crescidos e não tão crescidos, que
não adoram estar com outras pessoas tanto quanto adoram estar comigo,
De dia trabalham comigo e à noite dormem comigo.
Em outra ocasião, quando o clima está quente, em um barco, recolho as
armadilhas de lagosta que estavam submergidas com o peso de pedras pesadas, (sei
onde ficam as bóias,)
Ó doçura da manhã do quinto mês sobre as águas quando
estou remando pouco antes do amanhecer em direção às
bóias,
Puxo obliquamente as armadilhas de vime, as lagostas verde-escuras estão
desesperadas, mexendo suas garras, e quando eu as tiro da água, coloco
cavilhas de madeira nas juntas de suas pinças,
Vou para todos os lugares, uns após os outros, e depois remo de volta para a
praia,
Lá, dentro de um enorme caldeirão com água fervente, as lagostas
deverão ser fervidas até que sua coloração se torne
escarlate.
Outras vezes, pescando cavalas,
Vorazes, loucas pelo anzol, próximas da superfície, elas parecem povoar
as águas, milhas afora;
Outra vez pescando bodião na baía de Chesapeake, é minha uma das
faces morenas da tripulação;
Outra vez puxando para fora da água a enchova em Paumanok, apóio-me no
peso de meu corpo,
Meu pé esquerdo está sobre a amurada, meu braço direito lança
para longe os rolos de corda fina,
Sob os meus olhos o movimento rápido e o arrojo de cinqüenta outros
barcos leves, meus companheiros.
Ó navegando nos rios,
A viagem de descida pelo St. Lawrence, o cenário soberbo, os barcos a
vapor,
A navegação dos navios, as Mil Ilhas, as balsas de madeira ocasionais e
os balseiros com seus longos e pesados remos de impulsão,
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As pequenas cabanas sobre as balsas, e as nuvens de fumaça que delas sobem
quando os balseiros cozinham o jantar à noite.
(Ó algo pernicioso e medonho!
Algo distante de uma vida frágil e respeitosa!
Algo não testado! Algo em um transe!
Algo que se desatou das âncoras e vai avançando livremente.)
Ó trabalhar nas minas ou forjando o aço,
Na fundição de peças, a fundição ela mesma, o teto rude
e alto, o espaço amplo e sombrio,
A fornalha, o líquido quente entornado e corrente.
Ó recapitular as alegrias do soldado!
Sentir a presença de um corajoso oficial de comando — sentir a sua
compaixão!
Testemunhar a sua calma — ser aquecido pelos raios de seu sorriso!
Ir para a batalha — ouvir o toque das cornetas e a batida dos tambores!
Ouvir o som da artilharia — enxergar o brilho das baionetas e os canos dos
mosquetes sob o sol!
Contemplar os homens que caem e morrem sem reclamar!
Sentir o gosto selvagem do sangue — ser tão diabólico!
Tripudiar sobre os ferimentos e as mortes do inimigo.
Ó alegrias do baleeiro! Eu faço meu velho cruzeiro novamente!
Sinto o movimento do navio sob mim, sinto as brisas do Oceano Atlântico a me
refrescar,
Ouço uma vez mais o grito que desce do mastro central, baleia à vista!
Novamente jogo o cordame e vou observar com os outros — nós descemos,
loucos de excitação,
Salto para dentro do bote baixado, remamos na direção de nossa
presa,
Aproximamo-nos dissimulados e em silêncio, vejo a massa montanhosa,
letárgica, se aquecendo,
Vejo o arpoador de pé, vejo a arma lançada de seu braço
vigoroso;
Ó de repente uma vez mais em alto mar a baleia ferida pára, depois nada
para barlavento, reboca-me,
Novamente eu a vejo subir para respirar, remamos para perto dela outra vez,
Vejo quando uma lança atirada atravessa a sua lateral, acertando-a com
profundidade, sendo virada dentro do ferimento,
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Novamente nós nos afastamos, vejo-a remexer-se outra vez, a vida a está
deixando rapidamente,
Quando ela se ergue, espirra sangue, vejo-a nadar em círculos cada vez
menores, cortando a água com movimentos ligeiros, vejo-a morrer,
Ela dá um salto convulsivo no centro do círculo e então cai
estirada na espuma sangrenta.
Ó antiga virilidade em mim, minha mais nobre alegria!
Meus filhos e netos, meus cabelos brancos e minha barba,
Minha largueza, minha calma, minha majestade, nessa longa jornada de minha
vida.
Ó amadurecida alegria da feminilidade! Ó felicidade afinal!
Tenho mais de oitenta anos de idade, sou a mãe mais venerável,
Como a minha mente é lúcida — como todas as pessoas querem se
aproximar de mim,
Que atrações há maiores do que essas? O que floresce mais do que a
juventude?
Que beleza é essa que desce sobre mim e se ergue de meu ser?
Ó alegrias do orador!
Encher o peito, fazer soar o trovão da própria voz de seu tórax e
sua garganta,
Fazer com que as pessoas se enfureçam, chorem, odeiem, tenham desejos,
conheçam a si mesmas,
Liderar a América — subjugar a América com uma grande
língua.
Ó alegria de minha alma apoiando-se em si mesma, recebendo identidade por
meio da matéria e amando-a, observando suas características e
absorvendo-as,
Minha alma refletida de volta para mim a partir delas, da visão, da
audição, do tato, da razão, da articulação, da
comparação, da memória, e tudo o mais,
A vida real dos meus sentidos e da minha carne transcendendo os meus sentidos e a
minha carne,
Meu corpo feito de elementos materiais, minha visão dada através de
meus olhos materiais,
Está provado para mim, muito além de qualquer sofisma, que não
são meus olhos materiais que finalmente enxergam,
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Nem é meu corpo material que finalmente ama, anda, ri, grita, abraça,
procria.
Ó alegrias do fazendeiro!
O de Ohio, o de Illinois, o de Wisconsin, o do Canadá, o de Iwoa, o de
Kansas, o de Missouri, o de Oregon, as alegrias de todos eles!
Erguer-se no raiar do dia e avançar lepidamente para trabalhar,
Arar a terra no outono para que haja colheitas no inverno,
Arar a terra na primavera para a plantação do milho,
Preparar os pomares, enxertar as árvores, juntar as maçãs no
outono.
Ó banhar-me na piscina ou num bom lugar do litoral.
Espirrar a água! Andar com os tornozelos dentro da água, ou correr nu
pela praia.
Ó perceber o espaço!
A plenitude de todas as coisas, a inexistência das fronteiras,
Emergir e ser do céu, do sol e da lua e das nuvens que voam, ser um com
eles.
Ó a alegria de ser homem!
De não me submeter servilmente a ninguém, não acatar a
ninguém, a nenhum tirano conhecido ou desconhecido,
Andar com uma postura ereta, com um passo elástico e cadenciado,
Lançar olhares intensamente calmos ou com olhos faiscantes,
Falar com uma voz sonora e cheia, de dentro de um peito largo,
Confrontar com a sua personalidade todas as outras personalidades da terra.
Conheces acaso as excelentes alegrias da juventude?
Alegrias dos companheiros queridos que têm palavras agradáveis e faces
sorridentes?
Alegria do dia do raio de luz feliz, alegria das brincadeiras amplas e
arejadas?
Alegria da música suave, alegria do salão de festas e dos
dançarinos?
Alegria do banquete farto, da bebedeira homérica?
E ainda assim, ó minha alma suprema!
Conheces acaso os prazeres da reflexão?
Alegrias do coração livre e solitário, do coração brando
e desalentado?
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Alegrias da caminhada solitária, do espírito humilde e contudo
orgulhoso, o sofrimento e a luta,
Os momentos de agonia, os de êxtase, alegrias dos solenes devaneios de dia e
de noite?
Alegrias do pensamento sobre a Morte, sobre as grandes dimensões de Tempo e
Espaço?
Alegrias proféticas de melhores e mais elevados ideais de amor, a esposa
divina, o companheiro doce, eterno e perfeito?
Alegrias todas tuas, ser imortal, alegrias que são dignas de ti, ó
alma.
Ó enquanto eu viver para reinar sobre a vida e não para ser um
escravo,
Para abraçar a vida como um poderoso conquistador,
Sem fumos, sem tédio, sem novas reclamações ou críticas
desdenhosas,
Para essas leis orgulhosas do ar, da água e do solo que atestam que minha
alma interior é impregnável,
E que nada que esteja fora de minha consciência jamais poderá me
comandar.
Pois não canto apenas pelas alegrias da vida, repito — mas também
pela alegria da morte!
O belo toque da Morte, que acalma e entorpece por alguns momentos, por tantas
razões,
Descarto o meu corpo como se fosse um excremento para que seja queimado ou para
que se torne pó, ou seja enterrado,
O meu corpo verdadeiro, sem dúvida, fica comigo para a vida que se dá
em outras esferas,
Meu corpo evacuado, nada mais dele é meu, retorna para a
purificação, para outras cerimônias, no eterno ciclo da terra.
Ó atrair mais do que pela atração!
Como isso funciona não sei — ainda assim contemplo! Esse algo que
não obedece a coisa qualquer,
Ele é ofensivo, nunca defensivo — e contudo que estupendo
magnetismo.
Ó luta contra grandes disparidades, o enfrentamento de inimigos sem
temor!
Estar totalmente só perante eles e compreender o quanto se é capaz de
suportar!
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Estar face a face com a rivalidade, a tortura, a prisão, o ódio
popular!
Subir ao cadafalso, avançar para a mordaça das armas com perfeita
indiferença!
Ser, realmente, um Deus!
Ó navegar para o mar em um navio!
Deixar para trás esta terra firme insuportável,
Deixar essa mesmice cansativa das ruas, das calçadas e das casas,
Deixar-te, ó terra sólida e inamovível, e ingressar em um
navio,
E navegar, navegar, navegar!
Ó transformar a vida daqui em diante em um poema de novas alegrias!
Dançar, bater palmas, exultar, bradar, pular, saltar, rolar, flutuar!
Ser um marinheiro do mundo, preso a todos os portos,
Ser um navio eu mesmo (enxergar de fato essas velas que abro para o sol e para o
vento),
Um barco ligeiro e dilatado, cheio de ricas palavras, cheio de alegrias.
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A beleza dos jovens lenhadores e dos lenhadores maduros, com suas faces claras e
barbadas,
A beleza da independência, a partida, ações que perduram,
O desprezo da América por estátuas e cerimônias, a
impaciência sem limites para com as restrições,
O afrouxamento do caráter, a insinuação por meio de tipos
aleatórios, a solidificação;
O açougueiro no matadouro, as mãos a bordo das escunas e corvetas, o
balseiro, o pioneiro,
Os lenhadores no seu campo de inverno, o amanhecer na floresta, listras de neve
nos galhos das árvores, a quebra de um deles de quando em quando.
O som alegre e claro da voz de alguém, a canção feliz, a vida
natural nas florestas, o dia de trabalho forte,
O brilho da fogueira à noite, o gosto doce do jantar, a conversa, a cama
feita de ramos de árvores e de pele de urso;
O construtor de casas trabalhando nas cidades ou em qualquer parte,
A preparação da madeira: ajustar, riscar, serrar, entalhar,
O levantamento das vigas, o encaixe em suas posições, a sua
regularização,
A colocação dos caibros verticais pelas cavilhas nos encaixes, de
acordo com a preparação,
As batidas de marreta e de martelo, a postura dos trabalhadores, seus membros
curvados,
Dobrando-se, levantando-se, montando sobre as vigas, espetando alfinetes, presos
aos postes com fivelas,
Um braço em torno da placa de madeira, o outro braço esgrimindo o
machado,
Os homens no chão pressionando as tábuas para que sejam pregadas,
Suas posturas fazendo com que suas armas desçam em seus coldres,
Os ecos soando através dos prédios vazios;
O imenso armazém sendo construído na cidade, em estágio
adiantado,
Os seis homens responsáveis pelo vigamento, dois no meio e dois em cada
ponta, carregando com cuidado em seus ombros uma pesada treliça para montar
um sistema de vigas entrelaçadas,
A enorme fila de pedreiros com espátulas em suas mãos direitas,
erguendo rapidamente a comprida parede lateral, duzentos pés de um lado a
outro,
A subida e descida das costas flexíveis, o ruído contínuo das
espátulas batendo nos tijolos,
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Um após o outro, cada tijolo é colocado mecanicamente pelos homens em
seus devidos lugares e assentado com um soco do cabo das espátulas,
As pilhas de materiais, a argamassa nas tábuas de argamassa e o constante
abastecimento feito pelo responsável do cocho;
Os marceneiros fazendo longarinas no pátio da obra, as filas lotadas de bem
crescidos aprendizes,
O balanço de seus machados, que vão tirando pequenos quadrados de um
tronco, até que ele assuma a forma de um mastro,
O estalo rápido e enérgico do metal que atinge obliquamente o
pinheiro,
Os pedacinhos de madeira que voam em grandes flocos e lascas,
O movimento dos jovens braços morenos e dos quadris em suas roupas
frouxas,
O construtor de embarcadouros, pontes, cais, sacadas, flutuadores, diques de
proteção contra as águas do mar;
O bombeiro da cidade, o fogo que irrompe subitamente no quarteirão
próximo e repleto de gente,
Os carros de bombeiro chegando, os gritos roucos, os passos ágei e
arriscados,
O comando forte por meio dos megafones, as quedas na linha de incêndio, os
braços que sobem e descem forçando a água,
Os jatos azuis e brancos, finos, espasmódicos, a aproximação
difícil dos ganchos e das escadas para o seu trabalho,
A queda e o corte dos materiais condutores, ou através do próprio
chão de tábuas quando o fogo arde embaixo dele,
A multidão com seus rostos brilhantes assistindo a tudo, o clarão e as
sombras densas que se seguem;
O forjador em sua fornalha e aquele que manipula o ferro logo após,
Aquele que faz os machados grandes e pequenos, e o soldador e o montador,
O selecionador assoprando o metal frio e testando a qualidade de corte da
lâmina com seu dedão,
Aquele que faz o acabamento no cabo e o prende firmemente ao bocal;
As procissões sombrias dos retratos dos usuários do passado
também,
Os primeiros mecânicos, os pacientes, os arquitetos e engenheiros,
Os longínquos edifícios assírios e os edifícios de Mizra,
Os litores romanos precedendo os cônsules,
Os antigos guerreiros europeus com o seu machado em combate,
O braço erguido, o barulho das pancadas nas cabeças com capacete,
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O lamento de morte, a queda de um corpo flácido, a correria dos amigos e
inimigos para o local da queda,
O cerco aos vassalos revoltosos determinados a obter sua liberdade,
As ameaças para que se rendam, as baterias sobre os portões do castelo,
o armistício e as negociações,
O saque de uma antiga cidade em seu tempo,
O estouro dos mercenários e fanáticos entrando, desordenadamente e em
tumulto,
O bramido, as chamas, o sangue, a embriaguez, a loucura,
Os bens livremente roubados das casas e dos templos, os gritos das mulheres
agarradas por bandidos,
A malícia e a gatunagem dos agregados do exército, homens correndo,
idosos desaparecendo,
O inferno da guerra, as crueldades das religiões,
A lista de todos os feitos executivos e as palavras justas e injustas,
O poder da personalidade justa ou injusta.
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Uma grande cidade é aquela que contém os melhores homens e
mulheres,
Se ela só tiver algumas cabanas rotas ainda assim é ela a maior
cidade do mundo inteiro.
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Onde a cidade dos amigos mais leais se ergue,
Onde a cidade da castidade dos sexos se ergue,
Onde a cidade dos pais mais saudáveis se ergue,
Onde a cidade das mães com os melhores corpos se ergue,
Ali se ergue a maior das cidades.
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cujas relíquias permanecem na América Central,
Serviu aos Templos álbicos, nas florestas ou nos planaltos, com colunas
não entalhadas e os druidas,
Serviu às rachas artificiais, vastas, altas, silenciosas, nas montanhas
cobertas de neve da Escandinávia,
Serviu àqueles que, em tempo imemorial, fizeram em paredes de granito
pinturas primitivas do sol, da lua, das estrelas, dos navios, das ondas do
oceano,
Serviu aos caminhos de ataque dos godos, serviu às tribos pastoris e aos
nômades,
Serviu ao distante celta, serviu aos intrépidos piratas do
Báltico,
Serviu, antes que a quaisquer daqueles, aos homens veneráveis e
inofensivos da Etiópia,
Serviu para a fabricação dos lemes das galés do prazer e das
galés de guerra,
Serviu a todas as grandes obras na terra e a todas as grandes obras no mar,
Para as idades medievais e antes das idades medievais,
Serviu não apenas aos vivos daqueles dias e aos de agora, mas serviu
também aos mortos.
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Vejo o sangue do machado sendo inteiramente lavado,
Ambos, a lâmina e o cabo estão limpos,
Eles não mais fazem jorrar o sangue dos nobres europeus, eles não
mais pressionam os pescoços das rainhas.
Vejo o carrasco retirar-se e tornar-se inútil,
Vejo o patíbulo vazio e bolorento, não vejo mais qualquer machado
sobre ele,
Vejo o brasão poderoso e amigo do poder de minha própria raça, a
mais nova, a mais ampla raça.
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Residentes em cabanas entre as montanhas californianas ou pelos pequenos lagos,
ou em Colúmbia,
Residentes do sul nas margens do Gila ou Rio Grande, encontros amigáveis,
os personagens e a diversão,
Residentes ao longo do St. Lawrence, ou no norte do Canadá, ou abaixo em
Yellowstone, residentes das costas e do interior,
Pescadores de foca, baleeiros, marinheiros do ártico rompendo as passagens
através do gelo.
As formas surgem!
Formas de fábricas, arsenais, fundições, mercados,
Formas de trilhos duplos das estradas de ferro,
Formas dos dormentes das pontes, amplas estruturas, vigas mestras, arcos,
Formas das frotas de barcaças, reboques, embarcações de lagos e
canais, embarcações de rios,
Estaleiros e diques secos ao longo dos mares do leste e do oeste e em muitas
baías e aldeias,
As sobrequilhas feitas de carvalho americano, as pranchas de pinho, os mastros,
as raízes de lariço para os joelhos,
Os navios singrando a seus destinos, as bancadas dos patíbulos, o trabalho
dos homens ocupados fora e dentro da embarcação,
As ferramentas esparramadas, a grande sonda e a pequena sonda, enxó,
cavilha, linha, esquadro, cinzel, e plaina.
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comido
prazerosamente pelo casto marido, satisfeito após o seu dia de
trabalho.
As formas surgem!
A forma do assento do prisioneiro na sala da corte e a dele ou a dela que se
senta ali,
A forma do balcão de bar no qual se apóiam o jovem bebedor de rum e o
velho bebedor de rum,
A forma dos degraus envergonhados e nervosos, pisados pelos passos
sorrateiros,
A forma do sofá dissimulado e o do insalubre casal adúltero,
A forma da mesa de jogo com seu poder diabólico de ganhos e perdas,
A forma do patíbulo para o assassino condenado e sentenciado, o assassino
com a face desfigurada e braços manietados,
O delegado próximo com seus assistentes, a multidão silenciosa de
lábios brancos, a oscilação da corda.
As formas surgem!
Formas de portas concedendo muitas saídas e entradas,
A porta que dá passagem ao amigo prejudicado, vermelho e apressado,
A porta que admite boas e más notícias,
A porta por onde o filho saiu de casa confiante e vaidoso, ausência,
doente, alquebrado, com a inocência perdida, sem meios.
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Ela os recebe tal qual a lei da Natureza os recebe, ela é forte,
Ela também é uma lei da Natureza — não há lei mais
forte do que ela.
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Faze o mesmo nas paredes dos teus castelos alemães, franceses e
espanhóis e nas coleções italianas,
Para que se possa conhecer uma esfera melhor, mais nova e mais dinâmica, um
domínio amplo, não experimentado te espera, e pede por ti.
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As linhas das tropas sombrias dos Cruzados à meia-noite, aceleradas ao
amanhecer,
Amadis, Tancredo, absolutamente terminados, Carlos Magno, Rolando, Oliver,
findos,
Palmerin, ogro, se foram, desapareceram as torres que as águas do Usk
refletiam,
Arthur desaparecido com todos os seus cavaleiros, Merlin e Lancelot e Galahad,
todos terminados, dissolvidos inteiramente como uma exalação;
Passados! Passados! Para nós, para sempre passado, aquele mundo que foi um
dia tão poderoso, agora nulo, inanimado, mundo fantasmagórico,
Mundo de encantos bordado, mundo estranho, com todas as suas lendas
deslumbrantes, seus mitos,
Seus reis e castelos orgulhosos, seus sacerdotes e senhores bélicos e
damas elegantes,
Passaram para a abóbada de sua câmara mortuária, enterrados com
coroa e armadura,
Proclamados nas páginas púrpuras de Shakespeare,
E cantados nas rimas doces de Tennyson.
Digo que vejo, meus amigos, se não vedes, a ilustre emigrante (embora a
mesma de seus dias, transformada durante a considerável jornada
percorrida),
Vinda diretamente para este encontro, com vigor, abrindo um caminho para si
mesma, avançando através da confusão,
Pela batida surda das máquinas e pelo apito estridente e incessante do
vapor,
Nem um pouco engolida pelo cano de escoamento, gasômetros, fertilizantes
artificiais,
Sorrindo e contente com a intenção palpável de permanecer,
Ela está aqui, instalada em meio aos utensílios da cozinha!
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Não temas, ó Musa! Pois recebes novos caminhos e novos dias em torno
de ti,
Confesso candidamente uma falsificação: falsa raça, de um novo
aspecto,
E contudo é ainda a mesma antiga raça humana, a mesma por dentro e
por fora,
As faces e os corações são os mesmos, os sentimentos são os
mesmos, os mesmos anelos,
O mesmo antigo amor, a beleza e o uso dos mesmos.
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As bandeiras dos Estados e de todas as terras,
Uma geração de altivos, belos, contudo inferiores palácios que
há de se reunir.
Em algum lugar no interior de seus muros há de surgir tudo aquilo que faz
evoluir a vida humana para a perfeição,
Testado, ensinado, avançado, visivelmente exibido.
Não apenas todo o mundo das profissões, do comércio, dos
produtos,
Mas cada um dos trabalhadores do mundo aqui para ser representado.
Aqui hás de registrar em uma operação graciosa,
Em cada estado no movimento prático da turba, os rios da
civilização,
Os materiais aqui hão de ter suas formas alteradas diante de teus olhos
como que por mágica,
O algodão há de ser colhido em quase todos os campos,
Há de ser seco, limpo, descaroçado, embalado, fiado e transformado em
tecido diante de ti,
Hás de ver mãos no trabalho em todos os antigos processos e em todos
os novos processos,
Hás de ver os diversos grãos e que a farinha é produzida e,
então, o pão é cozido por padeiros,
Hás de ver os metais brutos da Califórnia e de Nevada sendo
processados repetidamente até tornarem-se barras preciosas,
Hás de assistir ao impressor preparando os tipos, e aprender o que é
um componedor,
Hás de registrar, deslumbrado, a máquina impressora com seus
cilindros girando, emitindo as folhas impressas rápida e
consistentemente,
A fotografia, o fac-símile, o relógio, o alfinete, o prego, hão
de ser fabricados diante de ti.
Dentro de um salão vasto e silencioso, um museu faustoso há de
ensinar-te as lições infinitas dos minérios,
Em outro, as plantas, as vegetações, hão de ser ilustradas
— e, em outro, animais, a vida animal e sua evolução.
Uma construção faustosa há de ser a casa da música,
Outras haverá para outras artes — aprendendo as ciências, todas
hão de estar aqui,
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Nenhuma delas há de ser desprezada, todas hão de estar aqui honradas,
apoiadas, exemplificadas.
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Os prazeres insalubres, as dissipações extravagantes de uns
poucos,
Com perfumes, calor e vinho, debaixo dos candeeiros estonteantes.
Para vós, irmãs reverentes e sãs,
Ergo uma voz por temas muito mais esplêndidos, por poetas e pela arte,
Para exaltar o presente e o real,
Para ensinar ao homem comum a glória de sua caminhada cotidiana e de seus
negócios,
Para cantar em canções que o exercício e a vida química
jamais devem ser confundidos,
Para o trabalho manual de cada um e de todos: arar, capinar, cavar,
Plantar e cultivar a árvore, a amora, os vegetais, as flores,
Garantindo que todo homem realmente faça algo e toda mulher também;
Usar o martelo e a serra (serrar em direção ao veio ou com o corte
transversal),
Cultivar um turno para a carpintaria, o reboco, a pintura,
Trabalhar como alfaiate, costureira, enfermeira, cavalariço, carregador,
Inventar um pouco, algo engenhoso, para facilitar o trabalho de lavar roupas, a
culinária, a limpeza,
E não considerar que seja uma desgraça colocar a mão na massa
nessas tarefas.
Digo que te trago, Musa, para o aqui e para o agora,
Todas as ocupações, deveres longínquos e próximos,
Faina, faina salutar e suor, infinita, incessante,
O antigo, os fardos de afazeres antigos, interesses, prazeres,
A família, os parentes, as crianças, marido e esposa,
Os confortos da casa, a casa em si e todos os seus pertences,
A comida e os preparativos para preservá-la, a química usada para esse
fim,
Homens e mulheres de quaisquer tipos, médios, fortes, completos, de sangue
doce, a personalidade perfeita e longeva,
E o auxílio à sua vida presente, para que tenham saúde e
felicidade e a preparação de sua alma,
Para a vida eterna que virá.
Com as conexões mais recentes, as obras, as interfaces do transporte
mundial,
A força do vapor, as grandes linhas expressas, o gás, o
petróleo,
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Esses triunfos de nosso tempo, o cabo delicado que atravessa o
Atlântico,
A estrada de ferro do Pacífico, o canal de Suez, o Monte Cenis e os
túneis Gothard e Hoosac, a ponte do Brooklyn,
Essa terra toda riscada de trilhos de aço, com as linhas dos navios a vapor
cortando todos os mares,
Nosso próprio traçado circular, o globo que eu mesmo trago.
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Esgrimindo o dia inteiro seus machados.
Contempla, nos lagos, teus timoneiros em seus postos, teus remadores,
E como o pó se estorce sob aqueles braços musculosos!
Ali, aos pés da fornalha, e ali, aos pés da bigorna,
Contempla os teus robustos ferreiros manejando seus malhos,
Com o braço erguido tão sólido, com o braço erguido que se
vira e cai com prazeroso estrépito,
Qual comoção de risos.
Registra o espírito da invenção em toda parte, tuas patentes
repentinas,
Tuas oficinas incessantes, fundições, erguidas ou se erguendo,
Contempla, das chaminés, o modo como o fluxo das altas chamas sobe.
Registra tuas fazendas intermináveis, norte, sul,
Teus estados que são teus filhos ricos, no leste e no oeste,
Os produtos variados de Ohio, da Pensilvânia, do Missouri, da Geórgia,
do Texas e dos demais Estados,
Tuas plantações ilimitadas, a relva, o trigo, o açúcar, o
óleo, o milho, o arroz, o cânhamo e o lúpulo.
Todos os teus celeiros repletos, o infinito trem de carga e o armazém
transbordante,
Tuas uvas amadurecidas em tuas vinhas, as maçãs em teus pomares,
Tua madeira incalculável, carne bovina, carne suína, batatas,
carvão, ouro e prata,
O inexaurível ferro de tuas minas.
Tudo teu, ó sagrada União!
Navios, fazendas, lojas, celeiros, fábricas, minas,
Cidade e Estado, Norte, Sul, cada item e o acúmulo deles,
A ti dedicamos, Mãe respeitável!
Protetora absoluta, tu! Bastião de tudo!
Bem sabemos que enquanto tu concedes a cada um e a todos generosa como Deus),
Sem ti, nem todos nem cada um, nem terra, nem casa,
Nem navio, nem mina, nem este dia pode ser garantido,
Nem coisa alguma, nem dia algum pode ser garantido.
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Vida perene e robusta de mim com seus prazeres, em meio à chuva e sob muitos
sóis de verão,
E as neves brancas e a noite e os ventos selvagens;
Ó grandes, pacientes e ásperas alegrias, os prazeres fortes de minha
alma desprezados pelo homem
(Pois sabei que carrego uma alma adequada a mim, também tenho
consciência, identidade,
E todas as rochas e montanhas têm, e toda a Terra.)
Alegrias da vida se adequando a mim e aos meus irmãos,
Nosso tempo chegou ao fim.
Não nos rendemos com pesar, irmãos majestosos,
Nós que de modo grandioso vivemos nosso tempo;
Com o calmo contentamento da Natureza, com imenso e tácito deleite,
Acolhemos com alegria aqueles que forjamos no passado,
E entregamo-lhes o campo.
Por eles predissemos longamente,
Por uma raça mais esplêndida, eles também, grandiosamente, vivem o
seu tempo,
Por eles renunciamos, neles seremos os reis da floresta!
Neles estarão esses céus e esses ares, os picos dessas montanhas,
Shasta, Nevadas,
Esses imensos precipícios, essa amplitude, esses vales, o longínquo
Yosemite,
Para estarmos neles absorvidos, assimilados.
Então, para um esforço mais elevado,
Ainda mais orgulhoso, mais extático se ergueu o canto,
Como se os herdeiros, as divindades do Oeste,
Unindo-se à língua mestra, tomassem parte do coro.
Não abatida em virtude dos fetiches da Ásia,
Nem vermelha pelo antigo matadouro dinástico da Europa,
(Área de assassinatos e tramóias dos tronos que ainda guarda o cheiro
da guerra e dos patíbulos por toda parte.)
Mas vindo das longas e inofensivas agonias da Natureza, construídas
pacificamente desde então,
Estas terras virgens, terras do litoral Ocidental,
Para o novo o homem culminando, para ti, o novo império,
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Tu, que por longo tempo foste prometido, a ti nós juramos, a ti
homenageamos.
Vós, volições profundas e ocultas,
Tu, virilidade espiritual, propósito de tudo, equilibrada em ti está a
lei que manda dar e não receber,
Tu, feminilidade divina, amante e fonte de tudo, procedência da vida e do
amor e de tudo o que deriva da vida e do amor,
Tu, essência moral invisível de todos os vastos elementos da
América, (era após era trabalhando para a morte tanto quanto para a
vida.)
Tu, que algumas vezes conhecida, quase sempre anônima, de fato moldou e deu
forma ao Novo Mundo, ajustando-o ao Tempo e ao Espaço,
Tu, vontade nacional camuflada jazendo em teus abismos, recôndita mas sempre
alerta,
Tu, propósitos do presente e do passado, persistentemente perseguidos,
talvez inconscientes de si mesmos,
Inamovível perante todos os erros do passado, que para ti são apenas
perturbações da superfície;
Vós, germens vitais, universais, imorredouros, subjacentes a todos os credos
e às artes e aos estatutos e às literaturas,
Erguei aqui vossos lares para sempre, estabelecei-vos aqui, nessas áreas
inteiras, terras do litoral Ocidental,
Nós juramos por ti e te homenageamos.
Quanto ao homem de ti, de tua raça característica,
Que ele possa aqui crescer robusto, doce, gigantesco, que se eleve a uma altura
proporcional à da Natureza,
Possa ele aqui escalar os espaços vastos, puros e abertos, não cercados
por paredes ou telhados,
Que ele possa, aqui, rir com a tempestade ou com o sol, ser alegre, habituar-se
pacientemente,
Possa ele aqui concentrar-se em si mesmo, desdobrar-se (não se espelhar em
fórmulas alheias), e aqui sentir o seu tempo,
Cair na hora devida, socorrer, esquecido ao final,
Desaparecer, servir.
Assim, no litoral norte,
Ao eco do chamado do condutor e do tinido das correntes, ao som
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da música
dos machados dos lenhadores,
A queda do tronco e dos galhos, o estrondo, o grito agudo abafado, o gemido,
Tais palavras articuladas pela sequóia, como vozes extáticas, antigas e
sussurrantes.
Os cem anos de duração, as dríades invisíveis, cantando,
retirando-se,
Deixando todos os seus esconderijos nas florestas e nas montanhas
Dos limites da cachoeira até Wahsatch, ou de longe, em Idaho ou Utah,
Até às divindades modernas, de agora em diante cedendo seu lugar,
O coral e as indicações, a visão da humanidade vindoura, as
colonizações, tudo isso aparecendo,
Nas florestas de Mendocino percebi.
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Promessa para ser cumprida, nosso tipo comum, a raça.
A nova sociedade afinal, harmonizada à natureza,
No homem teu, mais do que nos picos de tuas montanhas ou nas firmes árvores
imperiais,
Na mulher tua, mais, muito mais do que em todo o teu ouro ou em tuas vinhas, e
até mesmo no teu ar vital.
Renovação que chega, para um novo mundo de fato, mas que por muito
tempo foi preparado,
Vejo o gênio da modernidade, filho do real e do ideal,
Limpando o solo para a ampla humanidade, a América verdadeira, herdeira de
um passado tão grandioso,
Para edificar um futuro ainda maior.
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Se deres presentes para teu irmão ou para teu amigo mais querido, quererei
presentes tão bons quanto os de teu irmão ou eu amigo mais caro,
Se teu amante, marido, esposa, for acolhido de dia ou à noite, também
devo receber pessoalmente o mesmo acolhimento,
Se te tornares um degenerado, criminoso, doente, tornar-me-ei o mesmo por amor a
ti,
Se te lembrares de teus feitos estúpidos e ilegais, pensas que não
poderei me lembrar de meus próprios feitos estúpidos e ilegais?
Se à mesa farreares, farrearei no lado oposto da mesa,
Se encontrares um estranho nas ruas e o amares ou a amares, sabe que também
me encontro com estranhos na rua com freqüência e os amo.
Por que pensas assim sobre ti mesmo?
És tu aquele que ao pensar sobre si mesmo se diminui?
Acaso consideras o Presidente alguém maior do que tu és?
Ou pensas que o rico seja alguém melhor do que tu? Ou que o erudito é
mais sábio que tu?
(Porque tens os cabelos grisalhos ou espinhas no rosto, ou porque certa vez te
embriagaste ou agiste como um ladrão,
Ou pelo fato de estares doente ou reumático, ou por seres uma
prostituta,
Ou porque és frígida ou impotente, ou porque não és
acadêmico e nunca viste teu nome impresso,
Pensas, então, que és de algum modo menos imortal?)
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A filha, e ela é tão boa quanto o filho.
A mãe, e ela é exatamente tal qual o pai.
Geração de ignorantes e pobres, garotos aprendizes de
negócios,
Jovens camaradas trabalhando em fazendas e velhos camaradas trabalhando em
fazendas,
Marinheiros, mercadores, guardas costeiros, imigrantes,
Todos esses vejo, porém mais próximos e mais distantes vejo,
Ninguém há de me escapar e ninguém há de querer me
escapar.
Trago o que muito necessitas e, contudo, sempre tens,
Não o dinheiro, namorados, roupa, comida, erudição, mas algo
igualmente bom,
Não envio um agente ou um médium, não ofereço
representações de valor, mas ofereço o próprio valor.
Há algo que vem agora e perpetuamente,
Não é aquilo que está impresso, preconizado, discutido, pois se
trata de algo que se furta à discussão e à impressão,
Não é algo para ser colocado em um livro, não está neste
livro,
É para ti, não importando quem sejas, não está mais distante
de ti do que a tua capacidade de escutar e de ver,
Está indicado pelos mais próximos, os mais comuns, os mais prontos,
é sempre provocado por eles.
Talvez leias em muitas línguas e nada tenhas lido sobre isso,
Talvez leias a mensagem presidencial e nada leias sobre isso ali,
Nada há sobre isso nos relatórios do Departamento de Estado ou do
Tesouro Nacional, ou nos jornais diários ou semanais,
Ou no censo ou nos dados do imposto de renda, nos preços em
circulação, ou em quaisquer contas de aplicação em
ações.
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E não é algo que possa por sorte terminar bem para nós, e pela
falta de sorte terá de ser um fracasso para nós,
E não é algo que possa ser ainda retratado em uma determinada
contingência.
A luz e a sombra, o curioso sentido do corpo e da identidade, a ganância que
com perfeita complacência devora todas as coisas,
O infinito orgulho e a expansão do homem, alegrias e tristezas
indizíveis,
O assombro que está implícito na vida de cada outro ser que se admira,
e o assombro que enche cada minuto do tempo para sempre,
O que tens considerado sobre tudo isso, companheiro?
Tens reconhecido tudo isso para os teus negócios ou para o teu trabalho no
campo? Ou para os lucros de tua loja?
Ou para que alcances uma posição social? Ou para preencher a
necessidade de lazer de um cavalheiro ou de uma dama?
Já percebeste que a paisagem tomou substância e forma para que pudesse
ser pintada em um quadro?
Ou que os homens e as mulheres poderiam se tornar tema de um livro ou ser
cantados em uma canção?
Ou que a atração da gravidade e as grandes leis e harmoniosas
combinações e os fluidos do ar são os sujeitos das savanas?
Ou a terra marrom e o mar azul para os mapas e cartas de navegação?
Ou as estrelas para que sejam inseridas em constelações e recebam nomes
elegantes?
Ou que o crescimento das sementes se dá para os gráficos evolutivos da
agricultura, ou a própria agricultura existe para esse fim?
Velhas instituições, estas artes, bibliotecas, lendas,
coleções e as práticas desenvolvidas nas manufaturas, iremos
nós cotá-las tão alto?
Iremos cotar o nosso dinheiro e os nossos negócios tão alto? Não
faço objeção,
Atribuo a eles os mais altos valores — mas então, a uma criança
nascida de uma mulher e de um homem atribuo um valor que vai além de toda a
atribuição de valor.
Julgamos ser grande a nossa União e que a nossa Constituição
é grandiosa,
Não digo que não sejam grandes e boas, pois são,
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Passo os meus dias a amá-las tanto quanto tu as amas,
Então estou apaixonado por ti e por todos os meus companheiros sobre a face
da terra.
Consideramos as bíblias e as religiões divinas — não digo
que não sejam,
Digo que todas elas cresceram a partir de ti e que ainda podem surgir de ti,
Não são elas que geram a vida, tu és aquele que gera a vida,
As folhas não nascem mais a partir das árvores (nem as árvores a
partir da terra) do que as religiões nascem de ti.
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Não são os violinos e as cornetas, não é o oboé e a
percussão, nem a pauta musical do cantor barítono que canta sua doce
romanza, nem a do coro masculino, nem a do coro feminino,
Ela é mais próxima e mais distante do que todos eles.
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A calafetagem de ferro, a caldeira de cimento fervente e o fogo sob a
caldeira,
O fardo de algodão, o gancho do estivador, a serra e o cavalete do serrador,
o molde do moldador, a faca do açougueiro, a serra de gelo, e todo o trabalho
feito com gelo,
O trabalho e as ferramentas do armador, o fabricante de chave, o fabricante de
velas, o fabricante de blocos,
Mercadorias de gutta-percha, papel machê, tinturas, escovas, a
fabricação de pincéis, implementos de vidraceiro,
A caldeira para derreter cola e folhear, os ornamentos do estilista, o vaso de
decantação e os vidros, as guias de torno e o ferro liso,
O furador e a correia de cotovelo, a medida de quartilho e a de quarto, o
balcão e o banquinho, a caneta de pena ou de metal, a fabricação de
todos os tipos de ferramentas cortantes,
A cervejaria, a fermentação, o malte, as tinas, tudo o que é feito
pelos fermentadores, os fabricantes de vinho, os fabricantes de vinagre,
As roupas de couro, a fabricação de carruagens, a fabricação
de caldeiras, a ação de torcer as cordas, a destilação, a
pintura de sinais, a queima da cal, a colheita do algodão, a
galvanização, a ação de estereotipar,
As máquinas de aduela, as máquinas de aplainar, as máquinas de
colher, as máquinas de arar, as máquinas de aparar, os vagões do
vapor,
O carreto do carreteiro, o ônibus, o pesado carroção,
A pirotecnia, a queima de fogos de artifício coloridos à noite, as
figuras decorativas no céu e os jorros,
O bife e a banca do açougueiro, o matadouro do açougueiro, o
açougueiro em suas roupas de abate,
O cercado de porcos vivos, o martelo de abate, o gancho de porco, a banheira de
escaldo, o ato de estripar, o cutelo de açougueiro, o malho do embalador e a
grande quantidade de trabalho no inverno para embalar a carne de porco,
Os esforços para obter farinha, a moagem do trigo, do centeio, do milho, do
arroz, os barris e as metades do barril e os quartos de barril, as barcaças
lotadas, as pilhas altas nos embarcadouros e nos cais,
Os homens e o trabalho dos homens nas balsas, nos trilhos de trem, a guarda
costeira, os barcos pesqueiros, os canais;
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A rotina das horas de tua vida ou da vida de qualquer homem, a oficina, o
quintal, a loja, a fábrica,
Essas demonstrações, todas próximas de ti durante o dia e à
noite — homens trabalhando!
Não importa quem sejas, és a vida diária!
Nisso e neles, a parte dos mais pesados — nisso e neles muito mais do que
estimaste (e muito menos também),
Neles as realidades para ti e para mim, neles os poemas para ti para mim,
Neles, tu não estás — tu e tua alma contêm todas as coisas,
além das estimativas,
Neles o bom desenvolvimento — neles todos os temas, sinais,
possibilidades.
Não afirmo que aquilo que enxergas além seja fútil, não te
aconselho a parar,
Não digo que as lideranças que julgaste grandes não o sejam,
Mas afirmo que nenhuma delas conduz para algo maior do que esses aqui.
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o móvel
de apoio,
Quando posso tocar o corpo dos livros de dia e de noite e quando eles também
tocam meu corpo,
Quando uma universidade convence tanto quanto uma mulher e uma criança
sonolentas convencem,
Quando o ouro cunhado na câmara mortuária sorri como a filha do
vigia,
Quando as procurações estão jogadas em cadeiras da
oposição e se tornam minhas companheiras amistosas,
Tenciono alcançá-las com minha mão e fazer delas o que faço
de homens e mulheres como vós.
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Uma presença saudável, um gesto amistoso ou de comando, são
palavras, ditados, significados,
O charme que está nos simples olhares de certos homens e mulheres são
ditos e significados também.
A engenhosidade das almas está nessas inaudíveis pal do que as
palavras audíveis.
Aperfeiçoamento é uma das palavras da Terra,
A Terra não se atrasa nem se apressa,
Ela tem latentes em si todos os atributos, o potencial de crescimento, os
efeitos, desde o princípio,
Ela não tem apenas metade da beleza, defeitos e excrescência aparecem
tanto quanto a perfeição.
A Terra não segura seus dons, ela é generosa o bastante,
As verdades da Terra estão guardadas para sempre, mas tampouco se
encontram escondidas,
Elas são calmas, sutis, não podem ser transmitidas por meio de
impressos,
Elas se encontram saturadas em todas as coisas, transmitindo-se com vontade
impulsiva,
Transmitindo um sentimento e um convite, eu me expresso e me expresso ainda
mais,
Não falo, contudo se não me ouves para que sirvo?
Para suportar, para aperfeiçoar; na ausência disso, que utilidade
tenho?
(Nasce tu, nascei vós!
Acaso apodrecereis o fruto que está aí, dentro de vós?
Agachar-vos-eis e asfixiar-vos-eis aí dentro?)
A Terra não discute,
Não é patética, não cria tramas,
Não grita, não se apressa, não procura persuadir, não
ameaça, não faz promessas,
Não discrimina, não comete falha concebível,
Nada fecha, nada recusa, a ninguém exclui,
Faz conta de todos os poderes, objetos, estados, não exclui
ninguém.
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A Terra não se expõe, nem recusa se expor, mostrar o que possui em
suas entranhas,
Nas entranhas estão os sons ostensivos, o coro augusto dos heróis, o
gemido dos escravos,
A persuasão dos amantes, as maldições, a palpitação
dos moribundos, o riso dos jovens, o sotaque dos vendedores,
Nas entranhas, essas palavras possessivas que nunca falham.
Para os filhos da terra as palavras da grande mãe emudecida e
eloqüente nunca falham,
As palavras verdadeiras não falham, para o movimento elas não falham,
para a reflexão elas não falham,
Também o dia e a noite não falham, e a jornada que fazemos não
falha.
Das irmãs intermináveis,
Dos incessantes cotilhões de irmãs,
Das irmãs centrípetas e centrífugas, as irmãs mais velhas e
as mais novas,
A bela irmã que conhecemos dança com as demais.
Com suas costas largas na direção de todos os que a contemplam,
Com o fascínio da juventude e o fascínio da idade,
Senta-se ela, aquela a quem amo tal como às demais, senta- seus olhos
voltam-se para trás,
Observa-a rapidamente quando se senta, sem convidar ninguém, sem negar
ninguém,
Segurando um espelho dia e noite, incansavelmente, diante de sua própria
face.
Vistas de perto ou vistas a distância,
Aparecendo devidamente em público as vinte e quatro horas de cada dia,
Devidamente se aproximam e passam com seus companheiros o companheiro,
Não olham com uma expressão própria, mas com a expressão
daqueles que estão com elas,
Das expressões das crianças ou das mulheres ou dos homens,
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Da expressão aberta dos animais ou das coisas inanimadas,
Das paisagens ou das águas ou das refinadas aparições no
céu,
Das nossas expressões, minha e tua, retribuindo-as com fidelidade,
Todos os dias aparecendo em público, sem falha, mas jamais duas vezes com
as mesmas companhias.
Abraçando o homem, abraçando todos, continua a Terra nos trezentos e
sessenta e cinco dias sem oferecer resistência, girando em torno do
Sol;
Abraçando todos, acalmando-os, oferecendo auxílio, seguindo de perto
os trezentos e sessenta e cinco que sucedem os primeiros, tão certos e
necessários quanto eles.
Tropeçando continuamente, nada temendo,
Brilho do Sol, tempestade, frio, calor, para sempre resistindo, passando,
carregando,
Herdando ainda a realização e a determinação da alma,
Penetrando e dividindo ainda o fluido vácuo que a circunda e se
sobrepõe a ela,
Nenhuma dificuldade retarda o seu avanço, nenhuma âncora a ancora, em
rocha alguma se afia,
Rápida, alegre, satisfeita, não despojada, nada perdendo,
Pronta para prestar contas estritas a todos, a qualquer momento,
O navio divino navega pelo mar divino.
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O ensinamento é para o professor e retorna principalmente para ele,
O assassinato é para o assassino e retorna principalmente para ele,
O roubo é para o ladrão e retorna principalmente para ele,
O amor é para o amante e retorna principalmente para ele,
O presente é para aquele que dá e retorna principalmente para ele
— isso não pode falhar,
A oração é para aquele que ora, a performance é para o ator
e para a atriz, não para a audiência,
E homem algum compreende qualquer grandeza ou bondade, exceto a sua
própria ou as indicações delas.
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Quando decido contar o melhor, descubro que não posso,
Minha língua é ineficaz em suas articulações,
Minha respiração não será obediente aos seus
órgãos,
Torno-me um homem mudo.
O melhor da Terra não pode ser dito de qualquer forma, tudo ou qualquer
coisa é o melhor,
Não é aquilo que imaginaste, é algo mais barato, mais
fácil, mais próximo,
As coisas não são soltas de onde estavam presas anteriormente,
A Terra é tão positiva e direta quanto era antes,
Fatos, religiões, aperfeiçoamentos, políticas, negócios
são tão reais quanto antes,
Mas a alma também é real, ela também é positiva e
direta,
Não foi a racionalidade, nem as provas que a estabeleceram,
Um crescimento inegável a estabeleceu.
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Por ela a mística evolução,
Não apenas a justificação do bem, o que chamamos de mal
também se justifica.
Saindo de trás de suas máscaras, não importando as
conseqüências,
Do enorme caule que se inflama, da arte e da malícia e das
lágrimas,
Emerge a saúde e a alegria, a alegria universal.
Saindo do corpo volumoso, o mórbido e o superficial,
Saindo da maioria ruim, as diversificadas, incontáveis fraudes dos
homens e dos Estados,
Elétrico, anti-séptico também, clivando e inundando tudo,
Apenas o bom é universal.
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Tendendo ao ideal.
As fés conhecidas de outras terras, as grandezas do passado,
Não são para ti, pois são grandezas de ti mesma,
Fés divinas e amplitudes, absorvendo compreendendo tudo,
Todas apropriadas a todas.
Todas, todas pela imortalidade,
O amor, tal como a luz, silenciosamente envolve todos,
Os aperfeiçoamentos da natureza abençoando todos,
Os botões, frutos das eras, pomares divinos e certos,
Formas, objetos, crescimentos, humanidades, amadurecendo para as imagens
espirituais.
Concede-me, ó Deus, que eu cante aquele pensamento,
Dá-me, dá a ele ou a ela a quem amo essa fé
insaciável,
Em Tua imagem, tudo quanto guardares, não o negues a nós,
A crença nos teus planos guardada no Tempo e no Espaço,
Saúde, paz, salvação universal.
Será um sonho?
Não, mas a ausência dele é o sonho,
E se ele falha o conhecimento e a riqueza da vida são apenas um
sonho,
E o mundo inteiro é apenas um sonho.
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Ó vós, jovens, jovens do Oeste,
Tão impacientes, tão ativos, cheios de orgulho viril e amizade,
Vejo-vos claramente, jovens do Oeste, vejo-vos avançar com os que vão
à frente,
Pioneiros! Ó pioneiros!
As raças antigas estancaram?
Elas definham e terminam seu treinamento, cautelosamente, em terras de
além-mar?
Nós assumimos a tarefa eterna e o fardo e a lição,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Todo o passado deixamos para trás,
Nós emergimos sobre um mundo mais novo e poderoso, mundo variado,
O mundo que capturamos é novo e forte, mundo de trabalho e de marcha,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Nossos determinados destacamentos enviamos,
Descendo os precipícios, através das gargantas, para o alto das
íngremes montanhas,
Conquistando, tomando posse, ousando, aventurando-nos na medida em que
avançamos para o desconhecido,
Pioneiros, ó pioneiros!
Derrubamos florestas primitivas,
Alcançamos as nascentes dos rios, incomodamos e perfuramos profundamente a
entranha das minas,
Pesquisamos a vasta superfÍcie, sublevamos os solos virgens,
Pioneiros, ó pioneiros!
Somos os homens do Colorado,
Dos gigantescos picos, das grandes serras e dos altos platôs,
Da mina e da ravina, das trilhas de caça chegamos,
Pioneiros! Ó pioneiros!
De Nebraska, de Arkansas,
Raça do centro do país nós somos, do Missouri, com o sangue
continental em nossas veias,
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Todas as mãos dos companheiros aplaudindo, todos os do Sul, todos os do
Norte,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Ó raça incansável e irresistível!
Ó amada raça em tudo! Ó meu peito arde de terno amor por
todos!
Ó eu choro e contudo exulto, estou embevecido de amor por todos,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Ergue a poderosa mãe soberana,
Agitando no alto a delicada senhora, sobre todas as senhoras estreladas
(curvem-se todas as cabeças)
Ergue a senhora guerreira e cheia de garras, inflexível, impassível,
armada soberana,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Vede, filhos meus, filhos resolutos,
Aqueles enxames que avançam sobre a nossa retaguarda, jamais devemos
ceder-lhes a vez ou hesitar,
Eras passadas, fantasmagoricamente em milhões de rostos franzidos, às
nossas costas urgindo,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Avançam mais e mais as formações robustas,
Sempre prontas para as conquistas, com as vagas dos mortos rapidamente
preenchidas,
Através da batalha, através da derrota, movendo-se ainda assim e
nunca parando,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Ó morrer em meio ao avanço!
Há alguns entre nós que possam cair e morrer? A hora é
chegada?
Então, no calor da marcha nós, os mais capazes, morremos, e logo e
com certeza somos substituídos,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Todos os pulsos do mundo,
Ao cair batem por nós, com a batida do movimento do Oeste,
Solitários ou unidos, avançando constantemente para o front, tudo por
nós,
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Pioneiros! Ó pioneiros!
Carros alegóricos variados com tudo o que a vida
contém,
Todas as formas e espetáculos, todos os operários em seu
trabalho,
Todos os homens do mar e os homens da terra, todos os mestres com seus
escravos,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Todos os infelizes que amam em silêncio,
Todos os prisioneiros nas prisões, todos os bons e todos os maus,
Todos os que se alegram, todos os que se entristecem, todos os que vivem, todos
os que morrem,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Eu também com minha alma e meu corpo,
Nós, esse trio curioso, colhendo, andando sem rumo em nossa jornada,
Através dessas praias, entre as sombras, com as aparições que
nos apertam,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Contemplai! O orbe que se atira como bola de boliche!
Contemplai, os orbes irmãos em sua volta, todos esses sóis e planetas
agrupados,
Todos os dias fascinantes, todas as noites místicas com sonhos,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Esses são nossos, eles estão conosco,
Todos pelo trabalho primário de que se necessita, enquanto os seguidores
embrionários aguardam mais atrás,
Seguimos nós no rumo da procissão hodierna, abrindo as rotas para a
jornada,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Ó vós, filhas do Oeste!
Ó vós, filhas jovens e mais velhas! Ó vós, mães, e
vós, esposas!
Nunca tereis de vos dividir, em nossas fileiras mover-vos-eis unidas,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Trovadores latentes nas pradarias!
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(Bardos amortalhados de outras terras, podeis descansar, fizestes vosso
trabalho.)
Logo ouço vossos gorjeios, logo vos levantareis e caminhareis no meio de
nós,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Não aos doces deleites,
Não às almofadas e aos chinelos, não ao pacífico e ao
estudioso,
Não às amizades por interesses financeiros, não, para nós,
a diversão dos domesticados,
Pioneiros! Ó pioneiros!
Os glutões festejadores festejam?
Os corpulentos dorminhocos dormem? Eles trancam suas portas e passam o
ferrolho?
Ainda assim seja nossa a dieta dura, e o cobertor sobre o chão duro,
Pioneiros! Ó pioneiros!
A noite já caiu?
Foi a viagem há pouco terminada muito fatigante? Paramos desencorajados
balançando nossas cabeças na jornada?
Contudo na hora que passou deixei-vos em vossas picadas para que pudésseis
parar um pouco distraídos.
Pioneiros! Ó pioneiros!
Até ao som da trombeta,
Ao longe, ao longe a alvorada chama! — ouvi! Quão alto e claro
ouço-a soprar,
Depressa! Para a vanguarda do exército! — depressa!
Lançai-vospara os vossos postos,
Pioneiros! Ó pioneiros!
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problemas, loucuras, trajes, crimes se dissipam e fogem de ti,
Teus verdadeiros corpo e alma aparecem diante de mim,
Eles se destacam, além dos afazeres, além do comércio, oficinas,
trabalho, fazendas, roupas, a casa, compras, vendas, refeições,
bebidas, sofrimento, morte.
Quem quer que sejas, agora eu imponho as minhas mãos sobre ti para que
sejas meu poema,
Sussurro com meus lábios, próximo ao teu ouvido,
Tenho amado muitas mulheres e homens, mas amo-te mais do que qualquer um.
Ó tenho sido demorado e bobo,
Deveria ter ido diretamente ao teu encontro, há muito tempo,
Não deveria ter segredado nada além de ti, não deveria ter
cantado nada além de ti.
Deixarei tudo para trás e virei e farei os hinos de ti,
Ninguém te compreendeu até agora, mas eu te compreendi,
Ninguém até agora fez justiça contigo, nem mesmo tu foste j
imperfeição em ti,
Todos querem te subjugar, sou o único que jamais consentirá em
subjugar-te,
Sou o único que não impõe sobre ti qualquer mestre, dono,
apostador, Deus, a não ser aquele Deus que aguarda implícito em ti
mesmo.
Pintores pintam seus grupos numerosos, destacando entre todos a figura
central,
Da cabeça da figura central sai uma auréola de luz dourada,
Mas pinto miríades de cabeças e nenhuma delas fica sem a sua
auréola de luz dourada,
De minhas mãos, do cérebro de todos os homens e mulheres ela brota,
num eterno fluxo radiante.
Ó eu poderia cantar tantas grandezas e glórias a teu respeito!
Não sabes quem és, dormes sobre ti mesmo durante tua vida
inteira,
Tuas pálpebras têm estado fechadas a maior parte do tempo,
Tudo o que fizeste já retorna em forma de escárnio,
(Tua frugalidade, conhecimento, orações, se não retornam na
forma de escárnio, que retorno eles têm?)
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Tu não és o escárnio,
Por trás dele e dentro dele vejo-te escondido,
Procuro-te no lugar em que ninguém mais te procura,
O silêncio, a escrivaninha, a noite, a rotina com que te acostumas, se
esses te escondem de ti mesmo e dos outros, não te escondem de mim,
O rosto barbeado, o olho inconstante, a compleição impura, se esses
são obstáculos para os outros, não são obstáculos para
mim,
O adorno atrevido, a atitude deformada, a bebedeira, a cobiça, a morte
prematura, tudo isso ponho de lado.
Não há qualquer dom nos homens e nas mulheres que não se
apresente em ti,
Não há qualquer virtude, qualquer beleza no homem ou na mulher, que
não seja tão boa quanto as que estão em ti,
Não há garra nem resistência nos outros, que não sejam as
mesmas que estão em ti,
Nenhum prazer aguarda os demais que não seja igual ao prazer que te
aguarda.
Quanto a mim, nada concedo a ninguém exceto aquilo que cuidadosamente
concedo a ti,
Não canto as canções da glória de ninguém, nem a de
Deus, antes de cantar as canções de tua glória.
Quem quer que sejas! Reclame o que é teu a qualquer risco!
Esses espetáculos do Leste e do Oeste são mansos comparados
contigo,
Esses imensos prados, esses rios intermináveis, tu és tão imenso
e interminável quanto eles,
Essas fúrias, elementos, tempestades, fenômenos da natureza, agonias
de aparente dissolução, tu és o mestre ou a mestra sobre todos
eles.
No teu direito implícito de ser mestre ou mestra da natureza, dos
elementos, da dor, da paixão, da dissolução.
Os que não podem voar caem de teus tornozelos, encontras uma
auto-suficiência infalível,
Velho ou jovem, macho ou fêmea, rude, baixo, rejeitado pelos outros, o que
quer que sejas proclama-o,
Através do nascimento, da vida, da morte, do funeral, os meios são
fornecidos, nada é escasso,
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Através da raiva, das perdas, da ambição, da ignorância, do
tédio, aquilo o que és toma sua forma.
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Mas lembra-te da pequena voz que ouvi gemendo e aguarda com perfeita
confiança, não importa quanto tempo,
E de hoje em diante, triste e convincente, mantenho a causa dada, para todas
as terras,
Envio estas palavras a Paris com meu amor,
E imagino que alguns cantores de lá as compreenderão,
Pois imagino que haja ainda música latente na França, torrentes de
música,
Ó já posso ouvir o azáfama dos instrumentos, eles logo
estarão afogando todos quantos poderiam interrompê-los,
Ó acredito que o vento do leste traz uma marcha triunfal e livre,
Ele alcança este lado, ele me faz inflar de prazerosa loucura,
Correrei para transpô-lo em palavras, para justificá-lo,
E ainda cantarei uma canção para ti, ma
femme.
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Não louvo o homem eminente, estando em sua frente censuro aquele que se
julga ter o mais alto valor.
(Quem és tu? E quais são as culpas secretas de toda a tua vida?
Ficarás de lado a tua vida? Cavocarás e conversarás a tua vida
inteira?
E quem és tu, segredando por hábito, anos, páginas,
línguas, reminiscências,
Inadvertido hoje de que não sabes como falar apropriadamente uma
única palavra?)
Que outros exterminem espécies, eu jamais extermino espécies,
Eu as inicio por meio de leis incansáveis, tal como faz a natureza,
continuamente novas e modernas.
Nada concedo por dever,
O que outros concedem por dever concedo na forma de impulsos vivos,
(Devo doar as ações do coração como um dever?)
Que outros disponham de questões, não disporei de nada, pois
levanto questões irrespondíveis,
Quem são esses que vejo e toco e o que se sabe sobre eles?
Que tal esses desejos meus que me atraem para tão perto por meios
frágeis diretos e indiretos?
Dirijo-me ao mundo para desacreditar o julgamento de meus amigos, mas
ouçam os meus inimigos, tal como eu mesmo faço,
Encarrego-te de rejeitar para sempre aqueles que me exporiam, pois não
posso me expor,
Encarrego-te de que não haja teorias ou escolas fundadas a partir de
mim,
Encarrego-te de que deixes tudo livre, tal como eu deixei tudo livre.
Após mim, perspectiva!
Ó vejo que a vida não é curta, mas imensuravelmente longa,
Ando pelo mundo, de agora em diante, casto, equilibrado, acordando cedo, um
cultivador que tem constância,
Em todas as horas o sêmen dos séculos e a imobilidade dos
séculos.
Devo seguir essas contínuas lições do ar, da água, da
terra,
Percebo que não tenho tempo a perder.
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Esses tais, e os que são tão perfeitos quanto eles, eu canto
— tomo as cintilações que eles emanam e com elas enfeito estas
canções;
Teus cantos, ó ano inteiramente matizado de bem e de mal — ano de
presságios!
Ano de cometas e meteoros efêmeros e estranhos!
À medida que adejo sobre ti, apressadamente, para logo cair e passar, o
que é este canto,
O que sou eu mesmo, senão um de teus meteoros?
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Nós nos postamos em meio ao tempo, sem começo e sem fim,
colocamo-nos em meio ao mal e ao bem,
Tudo gira em nossa volta, há tanto breu quanto luz,
O próprio sol gira com seu sistema planetário em nossa volta,
O sol do sol, e o desse outro também, tudo gira em nossa volta.
Quanto a mim (rasgado, tempestuoso, em meio a estes dias veementes),
Tenho a idéia de todos, e sou todos e acredito em todos,
Acredito que o materialismo é verdadeiro e que o espiritualismo é
verdadeiro, não rejeito parte alguma.
(Esqueci-me de alguma parte? Qualquer coisa no passado?
Vem em busca de mim, quem quer que sejas e o que quer que sejas, até
que eu te dê reconhecimento.)
Respeito Assíria, China, Teutônia e os hebreus,
Adoto cada teoria, mito, deus e semideus,
Aceito a verdade que está nos velhos contos, na Bíblia, nas
genealogias, sem exceção,
Afirmo que todos os dias passados foram o que eles deveriam ter sido,
E que eles, de modo algum, poderiam ter sido melhores do que foram,
E que o hoje é o que ele precisa ser, e o que a América
é,
E que o hoje e a América não poderiam ser melhores do que
são.
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Os países ali, com suas populações, os milhões em massa
estão curiosamente aqui,
Os mercados populosos, os templos com seus ídolos enfileirados nas
laterais ou ao fundo, em bronze, brâmane e lama,
Mandarim, agricultor, mercador, mecânico e pescador,
A jovem cantora e a jovem dançarina, as pessoas extáticas, os
imperadores isolados,
O próprio Confúcio, os grandes poetas e heróis, os
guerreiros, as castas, todos,
Se agrupando, vindo de todas as direções, dos montes Altai,
Do Tibet, dos rios longínquos dos quatro ventos da China,
Das penínsulas do sul e das ilhas semicontinentais, da
Malásia,
Essas e tudo o que pertence a elas se apresenta de forma palpável para
mim, e é capturado por mim,
E eu sou capturado por elas e amistosamente abraçado por elas,
Até aqui eu canto todas elas, Liberdade! Para elas e para ti.
Pois eu também, erguendo minha voz, uno-me às fileiras dos carros
alegóricos,
Sou o cantor, canto alto sobre o carro alegórico,
Canto o mundo sobre o meu mar ocidental,
Canto, copioso, as ilhas que estão além, densas como as estrelas
no céu,
Eu canto o novo império, maior do que qualquer império anterior,
como numa visão ele me aparece,
Eu canto a América, a soberana, eu canto uma supremacia maior,
Eu canto mil cidades que ainda florescerão no tempo naqueles grupos de
ilhas,
Meus barcos a vela e barcos a vapor varando por entre os
arquipélagos,
Minhas estrelas e faixas agitadas no vento,
Abrindo o comércio, o sono das idades tendo completado seu trabalho,
raças renascidas, renovadas,
Vidas, trabalhos retomados — o objeto que não conheço
— mas o antigo, o asiático renovado tal como deve ser,
Começando desde hoje, tendo o mundo à sua volta.
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Assim, amanhã, do outro lado a rainha da Inglaterra envia o seu filho
mais velho para ti.
O sinal está se invertendo, o orbe está cercado,
O anel está fechado, a jornada está feita,
A tampa da caixa está apenas perceptivelmente aberta e, contudo, o
perfume se derrama copiosamente para fora da caixa.
Jovem Liberdade! Com a venerável Ásia, a mãe de todos,
Sê atenciosa com ela agora e sempre, quente Liberdade, pois tu és
tudo,
Curva teu pescoço orgulhoso para a distante mãe que agora te
envia mensagens sobre os arquipélagos,
Curva teu pescoço orgulhoso bem baixo uma vez, jovem Liberdade!
Estiveram os filhos vagando para oeste por tanto tempo? Foi tão
extensa a caminhada?
Duraram tempo demais as eras sombrias que emergiram no oeste vindas do
Paraíso?
Foram os séculos estabelecendo as coisas, firmemente desse modo?
Sem que tu o soubesses, por razões desconhecidas?
Eles estão justificados, estão realizados, e devem agora
também se voltar para outras estradas, em tua direção,
Eles agora devem também marchar, obedientes, para o leste em teu nome,
Liberdade!
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Uma vez em Paumanok,
Quando o perfume dos lilases estava no ar e a grama do quinto mês estava
crescendo,
Acima desse litoral, sobre algumas roseiras bravas,
Vi dois visitantes emplumados do Alabama, os dois juntos,
Em seus ninhos, quatro ovos verde-claros com manchinhas marrons,
E todos os dias o pássaro macho ficava de lá para cá, bem
próximo, ao alcance,
E todos os dias o pássaro fêmea abaixava-se em seu ninho,
silenciosa, com seus olhos brilhantes,
E todos os dias eu, um rapaz curioso, sem nunca me aproximar demais, sem
nunca incomodá-los,
Cuidadosamente perscrutava, absorvia, traduzia.
Brilha! Brilha! Brilha!
Derrama o teu calor, grande sol!
Enquanto nos aquecemos, nós dois juntinhos.
Nós dois juntinhos!
Os ventos sopram no sul ou os ventos sopram no norte,
O dia vem branco, ou a noite vem preta,
No lar, ou nos rios e montanhas distantes do lar,
Cantando o tempo todo, sem perceber o tempo,
Enquanto nós dois ficamos juntinhos.
Até que, de repente,
Talvez morta (mistério para o seu amor),
Numa certa manhã, o pássaro fêmea não pousou no
ninho,
Nem voltou naquela tarde, nem na próxima,
Nem nunca mais apareceu.
E desse dia em diante, em todos os verões, ao som do mar,
E à noite, sob a luz da lua cheia, em clima mais calmo,
Sobre o avanço rouco do mar,
Ou voando de uma sarça para a outra, durante o dia,
Passei a ver e a ouvir, a intervalos, aquele que restou, o pássaro
macho,
O visitante solitário do Alabama.
Sopra! Sopra! Sopra!
Sopra com força, vento marítimo do litoral de Paumanok;
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Eu aguardo e aguardo até que sopres o meu amor de volta para mim.
Sim, quando as estrelas cintilavam,
A noite inteira, no topo de um poste fincado no brejo,
Quase na altura em que as ondas se esbatem,
Sentava-se o gracioso cantor solitário, fazendo chorar.
Ele chamou continuamente seu par,
E derramou os significados que eu, entre todos os homens, conheço,
Sim, meu irmão, eu conheço,
E mesmo que nem tudo carregasse sentido, tratei de entesourar cada nota,
Mais de uma vez, sem ser notado, deslizei até a praia,
Em silêncio, evitando ser atingido pelos raios da lua, misturando-me
às sombras,
Lembro-me das formas obscuras, dos ecos, dos sons e das visões de todos
os tipos,
Lançando meus braços brancos incessantemente sobre a amurada,
Eu, descalço, uma criança, com o vento a balançar meus
cabelos,
Ouvi o pássaro horas a fio.
Ouvi para guardar, para cantar, e agora traduzo as notas,
Seguindo-te, meu irmão.
Conforta! Conforta! Conforta!
Se aproximando, uma onda conforta a onda que vem atrás,
E novamente outra onda que vem atrás envolve e aplaca aquelas que
estão perto,
Mas o meu amor não me conforta, não a mim.
A lua está baixa, ela ergueu-se com atraso,
Ela está lenta — Ó eu acho que ela está pesada de amor,
cheia de amor,
Ó furiosamente o mar se lança sobre a terra,
Com amor, com amor.
Ó noite! Não é o meu amor que vejo voando sobre o
quebra-mar?
O que é aquele pequeno vulto preto que vejo ali sobre o branco?
Alto! Alto! Alto!
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Alto eu te chamo, meu amor!
Alta e clara eu lanço minha voz sobre as ondas,
Certamente deves saber quem está aqui, está aqui,
Deves saber quem eu sou, meu amor.
Lua no céu tão baixa!
O que é aquele ponto escuro na tua superfície amarela e
castanha?
Ó é a silhueta, a silhueta de meu amor!
Ó lua, não me prives mais da companhia dela.
Terra! Terra! Ó terra!
Para qualquer lado que me volte, ó penso que poderias me devolver o meu
amor se quisesses,
Pois estou quase certo de que a vejo vagamente por toda parte.
Ó altas estrelas!
Talvez aquela que eu amo tanto se erguerá, se erguerá com uma de
vós!
Ó garganta! Ó garganta que estremece!
Soa com mais clareza através da atmosfera!
Atravessa as florestas, a terra,
Em alguma parte, com o ouvido atento, a fim de apanhar-te, deve estar aquela
que desejo!
Canções para agitar!
Solitárias aqui, as canções da noite!
Canções de amor solitário! Canções de morte!
Canções entoadas sob aquelas luas lentas, amarelas e
minguantes!
Ó sob aquela lua que quase mergulha dentro do mar!
Ó canções imprudentes e desesperantes.
Mas com brandura! Submerge!
Com brandura! Deixa-me apenas murmurar.
E aguarda um momento, mar vigoroso e sonoro,
Pois, em alguma parte, acredito ter ouvido a resposta de meu par ao meu
chamado,
Então desmaia, preciso estar quieto, estar quieto para ouvir,
Mas não fiquemos todos quietos, simultaneamente, pois nesse caso ela
pode não vir imediatamente para mim.
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Aqui, meu amor!
Aqui estou! Aqui!
Com essa nota sustenida, há pouco, eu me anuncio para ti,
Este chamado gentil é para ti, meu amor, para ti.
Não te sintas atraída para outras paragens,
É apenas o assobio do vento, não é a minha voz,
É apenas a azáfama, a azáfama da chuva,
São as sombras das folhas.
Ó escuridão! Ó em vão!
Estou muito doente e cheio de tristeza.
Ó halo dourado no céu, próximo da lua, mergulhando no mar!
Ó reflexo desordenado sobre o mar!
Ó garganta! Ó coração latejante!
Enquanto canto inutilmente, inutilmente a noite inteira.
Ó passado! Ó vida feliz! Ó canções de alegria!
No ar, nas florestas, sobre os campos,
Amada! Amada! Amada! Amada! Amada!
Contudo minha companheira não está, não está mais
comigo!
Não estamos mais juntos.
A melodia naufragando,
Tudo o mais permanecendo, as estrelas brilhando,
Os ventos soprando, as notas emitidas pelo pássaro ecoando
incessantemente,
Com gemidos raivosos, a mãe velha e ameaçadora gemendo sem
cessar,
Nas areias do litoral de Paumanok, desolada e sussurrante,
A meia-lua amarela e inchada, caindo, mergulhando, quase tocando a face do
mar,
O jovem extático, com seus pés descalços nas ondas, a
atmosfera a brincar com seus cabelos,
O amor, há muito encerrado no peito, agora solto, agora, enfim,
estourando tumultuosamente,
O sentido da melodia, os ouvidos, a alma, agilmente se estabelecendo,
As lágrimas estranhas descendo pela face,
O colóquio lá, o trio, cada um falando,
A meia-voz, a velha mãe selvagem chorando sem parar,
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As questões sobre a alma do rapaz taciturnamente surgindo, alguma
sibilação ficando em segredo,
O bardo no princípio.
Demônio ou pássaro! (disse a alma do rapaz),
Estás de fato cantando para a alma de teu par? Ou será realmente
para mim?
Pois eu, que fui uma criança cujo uso da língua está
adormecido, agora posso te ouvir,
Agora, em um momento, sei o que sou, pois estou desperto,
E já mil cantores, mil canções, mais claras, mais altas, e
mais tristes que as tuas,
Mil ecos gorjeando nasceram para a vida dentro de mim, para jamais
morrer.
Ó tu, cantor solitário, cantando sozinho, projetando-me,
Ó meu Eu solitário a ouvir, nunca mais devo deixar de te
perpetuar,
Nunca mais devo escapar, nunca mais as reverberações,
Nunca mais os gritos de amor insatisfeito estarão ausentes de mim,
Nunca me permitas ser novamente a criança pacífica que eu era
antes, durante a noite,
Próximo do mar, sob a lua amarela e cadente,
O mensageiro lá se levantou, o fogo, o inferno doce no íntimo,
O desejo desconhecido, o destino de mim.
Ó dá-me o novelo! (ele espreita à noite, aqui, em algum
lugar)
Ó se devo ter tanto, deixa-me que eu tenha mais!
Uma palavra então (pois hei de conquistá-la)
A palavra final, superior a tudo,
Subitamente, emitida — o que é isso? — eu ouço;
Tende-a sussurrado, e assim tem sido todo o tempo, ó vós, ondas do
mar?
Será que ela provém de tuas margens líquidas e de tuas areias
molhadas?
Para onde responde, o mar,
Sem demora, sem pressa,
Sussurrou-me através da noite e escancaradamente antes do amanhecer,
Balbuciou-me a baixa e deliciosa palavra morte,
E outra vez morte, morte, morte, morte,
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Assobiando, melodiosamente, não como o pássaro nem como o meu
desperto coração infantil,
Mas aproximando-se com intimidade por mim, sussurrando aos meus pés,
Rastejando dali, sem parar, até os meus ouvidos e lavando-me gentilmente
por toda parte,
Morte, morte, morte, morte, morte.
A que não esqueço,
Mas funde a canção de meu demônio escurecido e meu
irmão,
Que ele cantou para mim no luar da praia cinzenta de Paumanok,
Com mil canções sensíveis ao acaso,
Minhas próprias canções despertadas do tempo,
E com elas a chave, a palavra dita pelas ondas,
A palavra da canção mais doce e todas as canções,
Aquela forte e deliciosa palavra que, rastejando aos meus pés,
(Ou como alguma velha mulher enrugada embalando o berço, vestida em
trajes doces, dobrando-se para o lado),
O mar me segredou.
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Refugo, escamas das pedras brilhantes, folhas de algas deixadas pela
maré,
Andando por milhas, o som das ondas quebrando no outro lado de mim,
Paumanok lá e, então, tal como eu pensara, o velho pensamento da
imagem,
Isso tu me presenteaste, tu, ilha com forma de peixe,
Quando eu seguia o litoral que conheço,
Quando andava com aquele Eu elétrico procurando tipos.
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Eu e o que é meu, paveia solta, pequenos corpos,
Espuma, flocos de neve branca, e bolhas,
(Vê, de meus lábios mortos o vapor expirar finalmente,
Vê, as cores do prisma brilhando e se agitando),
Tufos de palha, areias, fragmentos,
Que boiaram até aqui, vindos pela força dos humores, um a
contradizer o outro,
Vindos com as tempestades, a calma longa, a escuridão, o
inchaço,
Meditando, ponderando, um suspiro, uma lágrima salgada, um salpico de
líquido ou de solo,
Para cima tanto quanto para fora de insondáveis trabalhos fermentados
e atirados,
Um ou dois botões frágeis, feridos, do mesmo modo, flutuando
sobre as ondas, boiando sem rumo certo,
Tal como é para nós aquele hino fúnebre da natureza,
Tal como o lugar de onde vem para nós aquele som rijo do clarim das
nuvens,
Nós, caprichosos, trouxemos aqui não sabemos de onde, e
espalhamos diante de ti,
E tu, lá em cima, andando ou sentado,
Quem quer que sejas, nós também estamos à deriva aos teus
pés.
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Mas, retirada à noite, como voas, sem olhar para ninguém, ó
então, o oceano engessado,
De lágrimas! Lágrimas! Lágrimas!
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Um sino de oceano — ó um sino de alerta, balançado
através das ondas.
Ó, tu de fato ofereces aviso com antecedência, tu, sino que tocas
próximo aos recifes,
Tocando, tocando, para avisar o navio sobre o perigo de uma colisão.
Pois estando alerta, ó timoneiro, tu levas em conta a sonora
admoestação,
Virando o leme, o navio cargueiro arranca veloz sob suas velas cinzentas,
O belo e nobre navio, com toda a sua preciosa riqueza, corre para longe,
alegremente e seguro.
Mas, ó navio, navio imortal! Ó navio a bordo do navio!
Navio do corpo, navio da alma, viajando, viajando, viajando.
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As nuvens devoradoras não serão vitoriosas por mais tempo,
Em breve, elas não mais possuirão o céu; elas não devoram
as estrelas, o que vês é apenas ilusão,
Júpiter há de emergir, sê paciente, contempla mais uma noite,
as plêiades hão de emergir,
Elas são imortais, todas aquelas estrelas, tanto as prateadas quanto as
douradas, hão de brilhar novamente,
A grande estrela e as pequenas hão de brilhar novamente, elas
resistem,
Os sóis vastos e imortais e as luas duradouras reflexivas hão de
novamente brilhar.
Então, minha mais querida criança, choras tu tão-somente por
Júpiter?
Consideras tu apenas o funeral das estrelas?
Algo existe,
(Aos meus lábios que te acalmam, adicionando sussurro,
Dou-te a primeira sugestão, o problema e a dissimulação)
Algo existe que é mais imortal até que as estrelas,
(Muitos são os funerais, muitos são os dias e as noites que
passam)
Algo que deve durar mais até que o lustroso Júpiter,
Mais que o sol ou que qualquer satélite que gira em torno dele,
Ou que as radiantes irmãs: as plêiades.
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O tubarão com olho plúmbeo, a morsa, a tartaruga, o peludo leopardo
marinho e a arraia-lixa,
Paixões de lá, guerras e perseguições, tribos, a visão
naquelas profundezas oceânicas, respirando aquele ar espesso, como tantos
fazem,
A mudança de lá para o que está aqui, e para o ar sutil
respirado por tantos seres como nós que andamos nesta esfera,
A mudança para adiante de nossa esfera para os seres que andam em esferas
superiores.
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Uma bandeira universal, subitamente ondulando todo o tempo, sobre todos os
bravos marinheiros,
Todos os mares, todos os navios.
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Onde a grande embarcação, navegando e alinhavando a água,
deslocou a superfície,
Ondas maiores e menores na amplitude do oceano, fluindo enternecidamente,
A esteira da embarcação marítima após a sua passagem,
cintilando e se divertindo sob o sol,
Uma procissão heterogênea com muitos flocos de espuma e muitos
fragmentos,
Fluindo o sólido e rápido navio, na esteira fluindo.
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Chapéus erguidos e comidos pelas traças — muletas feitas de
neblina!
Braços em ataduras — homens velhos se apoiando nos ombros de
homens mais jovens.
O que vos atormenta, fantasmas ianques? Que é toda essa conversa entre
os desdentados?
O calafrio faz com que vossos membros convulsionem-se?
Se toldares vossos olhos com lágrimas, não vereis o cerimonial da
Presidência,
Se gemerdes com tais gemidos, estorvareis o canhão do governo.
Que vergonha, velhos maníacos — abaixai esses braços erguidos
e deixai que fiquem assim os vossos cabelos brancos,
Aqui bocejam vossos netos, as esposas deles espreitam-nos pelas janelas,
Vede como estão bem vestidos, vede como avançam ordenadamente!
Pior e pior — não podeis suportá-lo? Recuais?
Será que este momento com os vivos é demais para vós?
Recuai então — tumultuadamente!
Para os vossos túmulos — retrocedei — de volta para as
montanhas, velhos mancos!
De qualquer modo não julgo que pertencei a este lugar.
Mas há algo que pertence — devo contar-vos o que é,
cavalheiros de Boston?
Vou sussurrar isso para o Prefeito, ele há de enviar um comitê
à Inglaterra,
Eles hão de conseguir uma verba do Parlamento, ide com o carro para a
câmara mortuária real,
Cavai o túmulo do Rei George, desenrolai-o das mortalhas, colocai os
seus ossos numa caixa para fazer uma jornada,
Encontrai um cavalo veloz ianque — aqui está a encomenda para
vós, cavalo veloz de barriga preta,
Subi as vossas âncoras — desfraldai as vossas velas — rumai
direto à baía de Boston.
Agora convocai novamente o cerimonial do Presidente, trazei para fora o
canhão do governo,
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Trazei para casa os barulhentos do Congresso, fazei uma nova procissão,
defendei-a com os soldados a pé e os dragões.
Esta peça central para eles;
Olhai, todos vós, cidadãos corretos; observai de vossas janelas,
mulheres!
O comitê abre a caixa, monta as costelas reais, cola aqueles ossos que
não querem parar no lugar,
Colocam vigorosamente o crânio no topo das costelas.
Tiveste a tua vingança, velho companheiro — a coroa foi
transferida para o seu dono, e mais do que o seu dono.
Coloca tuas mãos em teus bolsos, Jonathan — tu és um homem
feito a partir de hoje,
Tu és um poderoso astuto — e aqui está uma de tuas
barganhas.
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O povo desprezou a ferocidade dos reis.
Mas a doçura da compaixão preparou a destruição amarga e
os monarcas assustados recuam,
Cada um vem no luxo de seu trem, algoz, padre, coletor de impostos,
Soldado, advogado, soberano, delegado, adulador.
E ainda, atrás de todos, carrancuda e gatuna, vede uma forma,
Vaga como a noite, drapejada interminavelmente, cabeça, testa e forma,
em dobras escarlates,
Aquela de quem a face e os olhos ninguém pode ver,
Saindo de seus mantos apenas assim, os mantos vermelhos erguidos pelos
braços,
Um dedo arqueado apontado para o alto, no topo, tal como a cabeça de uma
serpente.
Enquanto isso, corpos jazem nos túmulos recentes, corpos
ensangüentados de jovens homens,
A corda da forca pende pesadamente, as balas dos príncipes estão
voando, as criaturas do poder riem barulhentamente,
E todas essas coisas dão frutos, e são boas.
Aqueles corpos de rapazes,
Aqueles mártires pendurados nas forcas, aqueles corações
perfurados pelo chumbo cinza,
Frios e sem movimento, eles parecem estar vivendo em outra dimensão, com
uma vitalidade não massacrada.
Eles vivem em outros homens jovens, ó reis!
Eles vivem nos irmãos que novamente estão prontos para
desafiar-vos,
Eles foram purificados pela morte, foram preparados e exaltados.
Em cada túmulo dos que foram assassinados pela liberdade, crescem
sementes de liberdade, quando chega a sua hora de produzir sementes,
As quais são carregadas pelos ventos, para longe, e ressemeadas, e as
chuvas e as neves as nutrem.
Nenhum espírito desencarnado pode deixar soltas as armas dos
tiranos,
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Eles se aproximam invisivelmente, rastejando sobre a terra, sussurrando,
aconselhando, advertindo.
Liberdade, deixa que outros se desesperem de ti — Eu jamais me
desespero de ti.
A casa está fechada? O mestre se foi?
Não obstante, estai prontos, não vos canseis de vigiar,
Ele retornará em breve, seus mensageiros vêm sem demora.
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Ó Morte (pois a vida já serviu o seu turno),
Porteiro e introdutor para a mansão celeste,
Sejas tu, meu Deus.
Algo, algo de mais poderoso, de melhor eu vejo, concebe ou conhece,
(Para romper o estagnante nó — tu, tu para libertar, ó
alma),
Sejas tu, meu Deus.
Todas as grandes idéias, as aspirações das raças,
Todos os heroísmos, feitos de entusi?smo arrebatado,
Sede vós, meus Deuses,
Ou Tempo e Espaço,
Ou a forma da Terra divina e assombrosa,
Ou alguma forma bela que vejo e adoro,
Ou orbe brilhante do sol ou estrela à noite,
Sede vós, meus Deuses.
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Vejo a esposa abusada por seu marido, vejo o sedutor desleal de jovens
mulheres,
Registro as irritações do ciúme e do amor não
recompensado que se procura esconder, eu vejo essas visões na Terra,
Vejo as obras das batalhas, da pestilência, da tirania, vejo
mártires e prisioneiros,
Observo a fome no mar, observo os marinheiros tirando a sorte para ver quem
será morto para preservar a vida dos demais,
Observo o desprezo e a degradação lançados por pessoas
arrogantes sobre os operários, sobre os pobres e sobre os negros, e
outros que sofrem preconceito;
Tudo isso — todas as maneiras e agonias sem fim, eu, sentado,
observo,
Vejo, ouço e estou calado.
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Em voltas cadentes e crescentes, em queda livre,
Até que sobre o rio posicionados, os dois feitos em um, aquietam-se por
um momento,
Um balanço imóvel em pleno ar, depois se separam, soltando as
presas,
Subindo novamente com firmes vagarosas asas oblíquas, seus vôos
independentes e distintos,
Ela o dela, ele o dele, procurando.
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Até que, à luz do amanhecer, nossa colméia derramou suas
miríades com zunido ameaçador.
Das casas e das oficinas e através de todas as portas,
Saltaram tumultuosamente, e vede! Manhattan armada.
Impelidos para o som dos tambores,
Os jovens se alistando e se armando,
Os mecânicos se armando (a espátula, a plaina, o martelo do
ferreiro, postos de lado precipitadamente)
O advogado deixando seu escritório e se armando, o juiz deixando a
corte,
O condutor abandonando sua carruagem na rua, saltando, atirando as
rédeas abruptamente sobre o torso dos cavalos,
O vendedor deixando a sua loja, o patrão, o contador, o carregador,
todos saindo;
Esquadrões formam-se por toda parte, unidos por um consentimento
coletivo e pelas armas,
Para os novos recrutas, até mesmo meninos, os mais velhos demonstram
como utilizar os equipamentos, afivelam as alças cuidadosamente,
Recrutamento ao ar livre, recrutamento dentro dos edifícios, o brilho
dos barris de mosquetes,
As tendas brancas que se agrupam nos acampamentos, as sentinelas em volta,
o tiro de canhão ao amanhecer, e novamente ao pôr-do-sol,
Regimentos armados chegam todos os dias, passando pela cidade, e embarcam
nos embarcadouros,
(Que belos me parecem quando caminham a pé pelas margens do rio,
suados, com suas armas nos ombros!
Como os amo! Como eu poderia abraçá-los, com suas faces morenas e
suas roupas e mochilas cobertas pela poeira!)
O sangue da cidade ferve — Armados! Armados! é o grito que se
ouve em toda parte,
As bandeiras estiradas do alto dos campanários das igrejas e de todos
os edifícios públicos e lojas,
A partida banhada pelas lágrimas, a mãe beija seu filho, o filho
beija sua mãe,
(Relutante está a mãe na hora da partida e, contudo, nem uma
única palavra profere a fim de detê-lo)
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A escolta tumultuosa, as filas de policiais avançando, abrindo o
caminho,
O entusiasmo desabrido, os gritos selvagens da multidão homenageando
seus favoritos,
A artilharia, os silenciosos canhões brilhando como ouro, cobertos,
com estrondo amenizado sobre as rochas
(Silenciosos canhões, em breve vosso silêncio terá fim,
Em breve estareis firmes para começar vosso trabalho sangrento.)
Todo o murmúrio da preparação, o recrutamento
determinado,
O serviço hospitalar, a gaze, as bandagens e os remédios,
As mulheres voluntárias na enfermaria, o trabalho começou, pois
agora, em verdade, não se trata apenas de uma parada militar;
Guerra! Uma raça armada avança! Seja bem-vinda a batalha, que
não haja retorno;
Guerra! Seja ela por semanas, meses ou anos, uma raça armada
avança para dar-lhe as boas-vindas.
Mannahatta em marcha — e ela está pronta para cantá-la
bem!
Ela está pronta para uma vida viril no acampamento.
E a firme artilharia,
As armas brilhando como ouro, o trabalho para gigantes, para bem servir as
armas,
Firmá-las! (não mais, como nos últimos quarenta anos, para
saudações e cortesias apenas,
Vestindo agora algo mais que pó de arroz e enchimento.)
E tu, senhora dos navios, tu, Mannahatta,
Velha matrona deste orgulho, amistosa, cidade turbulenta,
Freqüentemente em paz e rica, tu estavas reflexiva ou veladamente
preocupada em meio a teus filhos,
Mas agora tu sorris com alegria exultante, velha Mannahatta.
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Mas como um homem forte e ereto, vestido em uniforme azul, avançando,
carregando um rifle em teus ombros,
Com um corpo bem formado, com as mãos e o rosto bronzeados, com uma faca
na cintura,
Quanto te ouço gritar bem alto, tua voz sonora atravessando o
continente,
Tua voz masculina, ó ano, como que se erguendo em meio às grandes
cidades
Em meio aos homens de Manhattan te vi, como um dos trabalhadores, como um dos
residentes de Manhattan,
Ou com passos largos, cruzando as pradarias de Illinois e Indiana,
Rapidamente atravessando o Oeste, com ágil andadura, e descendo os
Apalaches,
Ou abaixo dos grandes lagos ou na Pensilvânia, ou no convés, ao
longo do rio Ohio,
Ou para o sul, ao longo do Tennessee, ou nos rios Cumberland, ou em
Chattanooga, no topo da montanha,
Observei tua andadura e teus membros firmes vestidos de azul, carregando
armas, ano robusto,
Ouvi tua voz determinada soando e soando novamente,
Ano que subitamente foi cantado pelas bocas de lábios redondos do
canhão,
Eu repito o que fizeste, ano corrido, desastroso, triste,
disfarçado.
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Sobre o tráfico das cidades — sobre o ribombar das rodas nas
ruas;
As camas estão prontas para os que dormem à noite nas casas?
Ninguém deve dormir naquelas camas,
Nenhum negociante fará negócios de dia — nenhum corretor ou
especulador — continuariam eles o seu trabalho?
E os que conversam, conversariam? E o cantor, tentaria cantar?
O advogado se ergueria na corte para apresentar seu caso perante o
juiz?
Então, fazei mais rápida a baderna, com maior força,
tambores — e vós, cornetas, sede ainda mais selvagens ao
tocar.
Rufai! Rufai, tambores! — Tocai, cornetas! Tocai!
Não negocieis — não pareis perante
reclamações,
Não vos importeis com os tímidos, não vos importeis com o
que chora e o que ora,
Não vos importeis com o velho homem que suplica ao mais jovem,
Não permiti que a voz da criança seja ouvida, nem tampouco as
súplicas das mães,
Fazei até com que os cavaletes sacudam os mortos, no lugar em que eles
jazem, esperando os carros fúnebres,
Tão fortes são os vossos golpes, ó terríveis tambores
— tão alto é o vosso sopro, cornetas.
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Para cantar primeiro (para a percussão do tambor de guerra se for
preciso),
A idéia de todos, do Mundo Ocidental uno e inseparável,
E então a canção de cada membro destes Estados.
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Aquele que os pássaros conhecem nas manhãs das florestas e no
início da noite,
Aquele que as areias da praia e a onda sibilante conhecem, aquele
estandarte e aquela flâmula,
Lá em cima se agitando e se agitando.
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Uso as asas do pássaro terrestre e uso as asas do pássaro
marítimo e olho para baixo das alturas,
Não nego os resultados preciosos da paz, vejo cidades populosas com
riqueza incalculável,
Vejo fazendas sem conta, vejo agricultores trabalhando em seus campos e
celeiros,
Vejo os mecânicos trabalhando, vejo edifícios em toda parte
fundados, subindo ou acabados,
Vejo os trens com os vagões ligeiros correndo pela estrada de ferro,
puxados pelas locomotivas,
Vejo as lojas, os armazéns de Boston, Baltimore, Charleston, Nova
Orleans,
Vejo longe, ao oeste, a imensa área dos grãos; fico ali, por um
momento, pairando,
Passo para as florestas de extração de madeira do Norte e para as
plantações do Sul e outra vez para a Califórnia;
Circulando pelo todo, vejo o lucro incontável, os eventos lotados de
gente, os salários ganhos,
Vejo a Identidade formada pela junção de trinta e oito
espaçosos e altivos Estados (e muitos outros que virão),
Vejo os fortes nos litorais em que estão os portos, vejo navios
entrando e saindo;
Então sobre tudo (sim! sim!), veja minha pequena e comprida
flâmula com o formato de uma espada,
Correndo agilmente erguida, indicando a guerra e a provocação
— e agora as adriças ergueram-na,
Ao lado de meu amplo estandarte azul, ao lado de meu estandarte
estrelado,
Descartando a paz sobre todo o mar e toda a terra.
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Mas esses e todos, e a terra marrom e espargida, e as minas que estão
no subterrâneo, são nossas,
E as praias do mar são nossas, e os rios grandes e pequenos,
E os campos que eles banham, e as colheitas e os frutos são
nossos,
Baías e canais e navios navegando, entrando e saindo, são nossos
— enquanto nós pairamos sobre tudo,
Sobre a área que se espalha abaixo, os três ou quatro
milhões de milhas quadradas, as capitais,
Os quarenta milhões de pessoas — ó bardo! Em vida e morte
suprema,
Nós, mesmo nós, daqui em diante ostentamos nosso mestria, no
alto, bem acima,
Não apenas para o presente, mas para mil anos cantando através de
ti,
Esta canção para a alma de uma pobre criança.
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E os navios negros lutando no mar, envoltos em fumaça,
E o frio gelado do longínquo, longínquo norte, com cedros e
pinhos sussurrantes,
E o rufar dos tambores e o som dos soldados marchando e o sol quente
brilhando no sul,
E as ondas do mar combinando-se sobre a praia no meu litoral leste e no meu
litoral oeste também,
E tudo o que há entre esses dois litorais e o meu Mississippi sempre
correndo, com curvas e corredeiras,
E meus campos de Illinois, e meus campos de Kansas, e os meus campos do
Missouri,
O Continente, devotando a inteira identidade sem reservar um átomo
sequer,
Derrama! Soterra aquele que pede, que canta, com todos e o abandono de
todos,
Fundindo e abraçando, clamando, devorando o todo,
Não mais com lábio macio, nem com som musical dos
lábios,
Mas emergindo da noite, de fato, não mais a nossa voz persuasiva,
Coaxando como corvos aqui ao vento.
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Nem lojas excelentes, nem o que é desembarcado pelos navios,
Nem os soberbos navios movidos a vela ou a vapor, extraindo e carregando
cargas,
Nem a maquinaria, os veículos, os negócios, nem as receitas
— mas tu, da forma em que te vejo daqui para frente,
Saindo apressadamente da noite, trazendo teus grupos de estrelas (estrelas
que crescem para sempre),
Divisor da luz do dia és tu, cortando o ar, tocado pelo sol, medindo o
céu,
(Visto apaixonadamente e desejado por uma pobre criança,
Enquanto os outros permanecem ocupados ou conversando espertamente, para
sempre ensinando frugalidade, frugalidade.)
Ó tu aí em cima! Ó flâmula, para onde vais ondulando
como uma serpente sibilante, tão curiosa,
Fora do alcance, uma idéia apenas, contudo furiosamente combatida,
arriscando-se a uma morte sangrenta, amada por mim,
Tão amado — ó tu, estandarte conduzindo o dia com estrelas
trazidas da noite!
Sem valor, objetos dos olhos, acima de tudo e demandando tudo — (dono
absoluto de tudo) — ó estandarte e flâmula!
Eu também deixo o resto — grande como és, não és
nada — casas, máquinas são nada — eu não os
vejo,
Só consigo ver-te, ó flâmula guerreira! Ó estandarte
tão grande, com listras, apenas tu eu canto,
Agitado ao vento.
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Assisti com alegria às entranhas ameaçadoras das ondas,
Registrei as suas cristas bancas no ponto em que elas correm bem altas,
encrespando,
Ouvi o vento assobiar, vi as nuvens negras,
Vi, por debaixo, o que surgiu e foi estruturado (ó soberbo! Ó
selvagem como o meu coração, e poderoso!)
Ouvi o trovão contínuo quando ele berrou após o raio,
Notei os filetes delgados e dentados dos raios quando, repentinamente e
velozes, em meio ao estrondo, eles perseguiram uns aos
outros através do céu;
Isso, e coisas semelhantes, eu, alvoroçado, vi — vi maravilhado
e, entretanto, reflexivo e imperioso,
Todo o poder ameaçador do globo erigido em minha volta,
E, contudo, com minha alma fartei-me, eu, farto e feliz, orgulhoso.
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Como a Democracia avança com atitude de desesperada vingança,
revelada em meio à escuridão por aquelas luzes dos raios!
(Contudo, um triste grito de dor e um soluço baixo imaginei e ouvi, em
meio à escuridão,
Numa calmaria de confusão ensurdecedora.)
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O filho nobre com passo firme avançando,
Eu vi, saído da terra das pradarias, terra das águas de Ohio e de
Indiana,
Para fazer o salvamento, o robusto gigante apressa sua prole numerosa,
Vestido de azul, suportando seus rifles fiéis em seus ombros.
Então, a Mãe de Todos com voz calma fala,
Por que, ó Rebelde (parece que ouço ela dizer), por que bater-se
contra mim e por que buscar a minha vida?
Quando tu mesmo garantes a minha defesa para sempre?
Pois tu me deste Washington — e agora também estas.
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Vinte mil foram trazidos contra nós,
Uma força veterana fornida com boa artilharia.
Não conto agora tudo o que se deu na batalha,
Mas uma brigada, de manhã bem cedo, foi enviada para enfrentar os
casacos vermelhos,
Conto o que se passou com aquela brigada, de como marchou firme,
E por longo tempo e de quão bem confrontou a morte.
Quem pensas estava marchando com implacável firmeza, confrontando a
morte?
Foi a brigada dos homens mais jovens, dois mil homens fortes,
Criados na Virgínia e em Maryland, e a maioria deles conhecidos pelo
General.
Lépidos, eles seguiram em frente com passo apressado na
direção das águas de Gowanus,
Até que, de repente, apareceram os inimigos que haviam se escondido
na floresta durante a noite,
Os britânicos avançaram, vindos do leste e fazendo um
círculo, atirando ameaçadores com suas armas,
A brigada dos mais jovens foi dizimada à vontade pelo inimigo.
O General testemunhou a cena desta montanha,
Os jovens tentaram repetidas vezes, em desespero, sair da armadilha,
Depois se agruparam, bem próximos uns aos outros, com sua bandeira
erguida bem ao centro,
Mas, ó aqui das montanhas víamos como o canhão cada vez
mais reduzia a tropa!
Aquele massacre ainda me faz doente!
Vi a umidade transformar-se em gotas no rosto do General.
Observei quando, angustiado, retorceu suas mãos.
Enquanto isso os britânicos manobravam a fim de nos atrair para uma
batalha aberta,
Mas nós não ousamos confiar nas chances que tínhamos em um
conflito desse tipo.
Lutamos a luta em destacamentos,
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Saindo bruscamente, lutamos em diversos pontos, mas em cada um deles a
sorte estava contra nós,
Nosso inimigo avançando, sempre conseguindo os melhores resultados,
fizeram-nos voltar para a luta na montanha,
Até que nos tornamos ameaçadores aqui, e então ele nos
deixou.
Esse foi o relato do avanço da brigada dos mais jovens, dois mil
fortes,
Dos poucos que voltaram, quase todos continuam no Brooklyn.
Assim foi a primeira batalha de meu General,
Sem mulheres a observar, nem o brilho do sol para aquecer, não
terminou com aplausos,
Ninguém nos aplaudiu aqui, naquele dia.
Mas no escuro, em meio à cerração, no solo sob a chuva
fria,
Exaustos naquela noite, nós nos deitamos anulados e
mal-humorados,
Enquanto, desdenhosamente, muitos senhores arrogantes riam-se acampados
contra nós,
Todos juntos ouvindo, festejando, brindando com vinho a sua
vitória.
Tão melancólico e enevoado foi o dia seguinte,
Mas na noite desse dia, a névoa subiu, a chuva cessou,
Silencioso como fantasma, enquanto eles pensavam que sabiam onde ele
estava, meu General recuou.
Eu o vi próximo ao rio,
Próximo às balsas, num ponto iluminado pelas tochas, apressando
a embarcação;
Meu General esperou até que os soldados e os feridos tivessem
atravessado o rio,
E então (era um pouco antes do sol nascer) estes olhos pousaram
sobre ele pela última vez.
Todos os demais pareciam estar tomados pelo desalento,
Muitos, sem dúvida, pensaram em capitular.
Mas quando meu General passou por mim,
Quando ele ficou de pé em seu barco e olhou na direção do
sol que chegava,
Eu vi algo distinto de uma capitulação.
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Contemplai, no rio argênteo, ao espirro das águas os cavalos
vadiando param para beber,
Contemplai os homens de rosto moreno, cada grupo, cada pessoa é um
quadro, os demais negligentes nas selas,
Alguns emergem na margem oposta, outros acabam de entrar pelo baixio —
enquanto,
Escarlates, azuis e brancas como a neve,
As bandeiras do porta-estandarte agitam-se alegremente ao vento.
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Abaixo nos campos tudo prospera bem,
Mas agora, dos campos, vem, pai, atende ao chamado da filha,
E vem para a entrada, mãe, para a porta da frente, vem
imediatamente.
Tão rápido quanto pode, ela vem, sente um agouro, seus passos
tremem,
Não se demora para arrumar o cabelo, nem para ajustar seu
chapéu.
Abre com rapidez o envelope,
Ó esta não é a letra de nosso filho e, contudo, está
assinada com seu nome,
Ó um estranho escreve pelo nosso filho querido, ó alma de
mãe ferida!
Todas as coisas dançam diante de seus olhos, visões do preto, ela
capta apenas as palavras mais importantes,
Sentenças partidas, tiros, ferimento no peito,
cavalaria escaramuça, levado ao hospital,
Não está bem agora, mas em breve estará
melhor.
Ah, agora a imagem única para mim,
Em meio a todo o fértil e rico Ohio com todas as suas cidades e
fazendas,
Com o rosto pálido doente e com a mente deprimida, muito fraca,
No batente de uma porta se apóia.
Não chore, querida mãe, (a
recém-crescida filha fala entre soluços,
As irmãzinhas amontoam-se em volta caladas e pálidas,)
Vê, queridíssima mãe, a carta diz que Pete
ficará melhor em breve.
Ai dele, pobre rapaz, ele nunca ficará melhor (nem talvez precise de
melhoras, aquela alma corajosa e simples),
Enquanto eles se reúnem na porta de sua casa ele já está
morto,
O único filho está morto.
Mas a mãe precisa estar melhor,
Ela, agora, magra e vestindo-se de preto,
Durante o dia não toca em sua comida, depois, à noite, com o sono
cortado, acordando a todo momento,
Andando à meia-noite, chorando, saudosa com uma saudade profunda,
Ó que ela possa se retirar sem ser notada, em silêncio, escapando
da vida e recolhida,
Para seguir e procurar e estar com o seu querido filho morto.
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Terminando assim a minha estranha vigília, vigília da noite e confuso
campo de batalha,
Vigília pelo menino de beijos retribuídos (nunca mais
retribuídos na terra),
Vigília por um companheiro subitamente morto, vigília de que nunca me
esqueço, de como no amanhecer
Ergui-me do solo frio e enrolei bem o meu soldado em seu cobertor,
Enterrando-o no lugar em que caiu.
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Cirurgiões operando, assistentes segurando lanternas, o cheiro do
éter, o odor de sangue,
A multidão, ó a multidão das formas sangrentas, o pátio
externo repleto também,
Alguns no chão duro, alguns em pranchas ou macas, alguns suando em
espasmos de morte,
Um grito ocasional ou choro, o médico grita ordens ou chama por
alguém,
O brilho dos pequenos instrumentos de aço refletindo o brilho das
tochas,
Disso me recordo quando canto, vejo novamente as formas, sinto o odor,
Então escuto lá fora as ordens dadas, Em frente, homens, em
frente;
Mas, antes, curvo-me para o rapaz moribundo, seus olhos abertos, um meio
sorriso ele me dá,
Então seus olhos se fecham, calmamente, e eu corro adiante na
escuridão,
Retomando, marchando, sempre na escuridão marchando, em frente, em
colunas,
Marchando ainda pela estrada desconhecida.
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Quem és tu, querido companheiro?
Então, ando na direção do segundo — quem és tu, meu
filho e querido?
Quem és tu, doce menino com as bochechas ainda florescendo?
Então, para o terceiro — um rosto nem de criança nem de
velho, muito calmo, de uma bela cor branca e amarela de marfim;
Jovem homem, creio que te conheço — acho que essa é a face do
próprio Cristo,
Morto e divino e irmão de todos, e aqui novamente ele jaz.
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Tostado pelos desertos, gelado pela neve, encharcado pela água dos rios,
perseverando até alcançar seu destino,
Mais do que tenho encarregado a mim mesmo, atendido ou não atendido, para
compor uma marcha para estes Estados,
Para o chamado de uma batalha, pegando em armas se necessário for, por
séculos a partir de agora.
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De duras lutas enfrentadas ou de cercos tremendos, qual permanece mais
profundamente?
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Avanço, paro,
Com joelhos dobrados e mão estável para curar feridas,
Sou firme com cada um, as dores são agudas e contudo
inevitáveis,
Um deles vira-se para mim, em seus olhos há um pedido de auxílio
— pobre garoto! Nunca te conheci,
Porém penso que não poderia deixar de morrer por ti neste
momento, se isso pudesse te salvar.
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Dá-me um filho perfeito, dá-me um lugar afastado do barulho do
mundo, uma vida doméstica rural,
Dá-me que eu cante canções espontâneas em solidão,
para os meus ouvidos somente,
Dá-me a solidão, dá-me a Natureza, dá-me novamente,
ó Natureza, a tua primitiva sanidade!
É necessário que eu tenha tudo isso (cansado com os
estímulos incessantes, e atormentado pela rivalidade da guerra),
Tenho procurado tudo isso incessantemente, pedindo, elevando os pedidos de
meu coração,
Enquanto ainda faço tal pedido, sem cessar, mantenho-me junto à
minha cidade,
Dia após dia e ano após ano, ó cidade, andando por tuas
ruas,
Onde me prendes, acorrentado por um determinado tempo, recusando
soltar-me,
E ainda que me alimentes com abundância, enriquecendo minha alma,
aquilo que me concedes para sempre são faces
(Ó vejo tudo aquilo de que tentei me libertar confrontando-me,
revertendo meu choro,
Vejo minha própria alma atropelando tudo o que pedi.)
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Alguns, terminando, retornando em batalhões minguados, jovens e,
contudo, já muito velhos, desgastados, marchando, sem nada mais
perceber.)
Dá-me os litorais e embarcadouros, pesadamente enfeitados de navios!
Ó isso para mim! Ó saciando uma vida intensa, pela variedade!
A vida do teatro, dos bares, dos grandes hotéis, para mim!
A taverna do barco a vapor! A excursão lotada por mim! A procissão
à luz de tochas!
A densa brigada unida para a guerra, com as carroças empilhadas de
militares seguindo;
Povo, sem fim, em correntes, com vozes fortes, paixões, cortejo
cívico,
As ruas de Manhattan com suas poderosas palpitações, com a batida
dos tambores, como agora,
O coro sonoro e sem fim, a dinâmica e o estrépito dos mosquetes (e
até mesmo a visão dos feridos),
As multidões de Manhattan, com seu turbulento coro musical!
Rostos de Manhattan e olhos eternamente para mim.
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Pois o filho é trazido com o pai,
(No posto mais avançado entre as fileiras, caíram ao assalto
ameaçador,
Dois veteranos, filho e pai, caindo juntos,
E o túmulo duplo que os espera.)
Agora, mais perto os clarinetes tocam,
E os tambores ainda mais convulsivos batem,
E a luz do dia sobre a calçada desvaneceu inteiramente,
E a forte marcha da morte que me envolve.
No céu do leste balizando,
O triste e vasto fantasma se move iluminado,
(É a face transparente e ampliada de uma mãe,
Crescendo cada vez mais cintilante no céu.)
Ó forte marcha da morte, satisfazes-me!
Ó lua imensa com tua face argêntea que me acalma!
Ó meu par de soldados! Ó meus veteranos passando para o
funeral!
O que tenho dou-vos também.
A lua dá-vos a luz,
E os clarinetes e os tambores dão a sua música,
E meu coração, ó meus soldados, meus veteranos,
Meu coração vos dá amor.
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Se necessário for, mil hão de duramente se imolar por um.
Um de Massachusetts há de ser o companheiro de um missourian,
Uma do Maine, uma da quente Carolina e outra sendo uma oregonesa serão
uma tríade de amigas,
Mais preciosas umas para as outras do que todas as riquezas da terra.
Para o Michigan, perfumes da Flórida hão de gentilmente vir,
Não o perfume das flores, um perfume mais doce, que flutue além da
morte.
Há de se tornar costumeiro nas casas e nas ruas ver a aflição
do homem,
Os mais intimoratos e rudes hão de tocar-se face a face, levemente,
Os amantes serão a condição da Liberdade,
A sustentação da eqüidade será o companheiro.
Isso há de vos ligar e de vos unir, fazendo-vos mais fortes do que
argolas de ferro,
Eu, extático, ó parceiros! Ó terras! Com o amor dos amantes
atai-vos.
(Pensastes que poderíeis ser ligados por advogados?
Ou por um acordo no papel? Ou por braços?
Não, nem o mundo, nem qualquer coisa que viva, pode assim se ligar.)
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sonhos uma
exultação diabólica e toda a velha alegria louca de minha
alma),
E sempre a pressa da artilharia mudando de posição, baterias,
cavalaria, movendo-se até este ponto e para além,
(Aos que caem, aos que morrem, não dedico atenção; aos feridos,
com sangue pingando e vermelhos, não dedico atenção, alguns da
retaguarda estão claudicantes)
Fuligem, calor, pressa, ajudantes de campo galopando ou correndo,
Com o tropel dos pequenos exércitos, a advertência sonora s-s-t dos
rifles (esses, em minha visão, ouço ou vejo),
E bombas explodindo no ar, e à noite os foguetes de cores variadas.
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Louvores e presentes vieram e comida nutritiva, até que, afinal, entre os
recrutas,
Vieste, taciturno, sem nada para dar — nós, contudo, nos
entreolhamos,
Quando, vê! deste-me mais que todos os presentes do mundo.
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Quão solene é o pensamento de minha alma sussurrante para cada uma
das fileiras, e para ti,
Vejo atrás de cada máscara a surpresa de uma alma afim,
Ó a bala jamais pode matar aquilo que realmente és, caro amigo,
Nem a baioneta perfurou o que és realmente;
A alma! Vejo-te, grande como qualquer outra, tão boa quanto a melhor,
Esperando segura e satisfeita, pois bala alguma poderia jamais matar-te,
Nem a baioneta pode perfurar-te, ó amiga.
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Bandeira da morte! (como te observei pressionando através da fumaça
da batalha!
Como te ouvi agitada e sussurrante, tecido desafiador!)
Bandeira azul-celeste — bandeira ensolarada, salpicada dos orbes
noturnos!
Ah, minha beleza argêntea — ah, minha lã branca e carmesim!
Ah, cantar a tua canção, minha poderosa matrona!
Minha sagrada bandeira, minha mãe.
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Mas num agrupamento que contém a escuridão da noite e ferimentos que
gotejam sangue,
E salmos de morte.
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(Olhe como as guerras do passado se submeteram devidamente a ti e as guerras do
presente também se submetem;)
Então retorna e não fiques alarmada, ó Liberdade — volta a
tua face imorredoura
Para onde o futuro, maior do que todo o passado,
Está, rapidamente e com certeza, se preparando para ti.
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Anuncio uma primavera com suas flores.
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Com todas as vozes chorosas dos hinos fúnebres derramadas em torno do
esquife,
As igrejas à meia luz e os órgãos estremecidos — em meio
aos quais viajas,
Com o perpétuo tinido do dobre incessante dos sinos,
Aqui, esquife que passa vagarosamente,
Dou-te o meu ramo de lilases.
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As muitas moventes marés marítimas, e vi como os navios
navegam,
E o verão chegando com riqueza e os campos todos ocupados com o
trabalho,
E as casas infinitamente separadas, como todas elas continuaram, cada uma com
suas refeições e minúcias de usos diários,
E as ruas, como suas palpitações palpitaram, e as cidadf# e?;hadas
— olha, então e lá,
Caindo sobre elas todas e no meio delas todas, envolvendo-me com as
demais,
Apareceu a nuvem, apareceu a longa trilha negra,
E eu conhecia a morte, seu pensamento, e o segredo sagrado da morte.
Então com o conhecimento da morte, andando do meu lado,
E o pensamento de morte andando próximo, do outro lado,
E eu no meio, como se fossem meus companheiros, como se segurasse as
mãos de meus companheiros,
Fugi para esconder-me, recebendo a noite que não fala,
Descendo até o litoral com suas águas, no caminho por entre o brejo
e a escuridão,
Para os cedros solenes e sombrios e os pinheiros fantasmagóricos
tão imóveis.
E o cantor, tão tímido junto aos demais, recebeu-me,
O pássaro cinzento e marrom que conheço recebeu-nos, três
companheiros,
E cantou o cântico da morte, e um verso para aquele que amo.
De um recanto profundamente isolado,
Dos cedros perfumosos e pinheiros fantasmagóricos tão
imóveis,
Veio o cântico do pássaro.
E o charme do cântico arrebatou-me,
E prendeu-me como se as mãos de meus companheiros me prendessem na
noite,
E a voz de meu espírito narrou o cântico do pássaro.
Vem, amável e consoladora morte,
Ondula em torno da terra, serenamente chegando, chegando,
Durante o dia, durante a noite, para todos, para cada um,
Mais cedo ou mais tarde, delicada morte.
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Louvado seja o universo insondável,
Pela vida e pela alegria, e pelos objetos e pela curiosidade do
conhecimento,
E pelo amor, o doce amor — mas louvado seja! Louvado seja! Louvado
seja!
Pelo abraço certo da morte fria e envolvente.
Mãe escura sempre planando por perto, com pés suaves,
Ninguém cantou para ti um canto de inteiras boas-vindas?
Então eu canto por ti, glorifico-te acima de tudo,
Trago-te um cântico para que, quando tu vieres de fato, venhas sem
cometer erro algum.
Aproxima-te, poderosa libertadora,
Quando foi, quando foi que os tomaste? Pois com ciúmes canto os que
morreram,
Perdidos no amoroso e flutuante oceano de ti,
Amados na enchente de teu êxtase, ó morte.
De mim para ti, alegres serenatas,
Danças para ti, eu proponho, saudando-te, adornos e festas para ti,
E a visão das paisagens abertas e o céu espalhado no alto se
ajusta,
E a vida e os campos, e a imensa noite repleta de pensamentos,
A noite em silêncio sob as muitas estrelas,
O litoral oceânico e a onda robusta e sussurrante cuja voz eu
conheço,
E a alma se voltando para ti, ó vasta e bem velada morte,
E o corpo agradecidamente aninhando-se próximo de ti.
Sobre o topo das árvores, espalho por ti um cântico,
Sobre as ondas que surgem e submergem, sobre miríades de campos e as
amplas pradarias,
Sobre todas as cidades densamente populosas e os produtivos ancoradouros e as
estradas,
Espalho este cântico com alegria, com alegria para ti, ó morte.
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Alto nos pinheiros e cedros pálidos,
Claro no frescor úmido e no perfume do brejo,
E eu, com meus companheiros, lá, na noite.
Enquanto minha visão ficou atada aos meus olhos abertos,
Como que para longínquos panoramas.
E vi de soslaio os exércitos,
Vi, como em sonhos sem rumor, centenas de estandartes de batalha,
Sustentados através da fumaça das batalhas e perfurados por
mísseis que enxerguei,
E carregados aqui e acolá através da fumaça, e rasgados e
ensangüentados,
E, finalmente, apenas alguns fragmentos sobraram nas hastes (e todos em
silêncio)
E as hastes todas lascadas e quebradas.
Vi os corpos das batalhas, miríades deles,
E os esqueletos brancos de jovens rapazes vi,
Vi os escombros de todos os soldados assassinados na guerra,
Mas vi que não eram como eu pensava,
Eles estavam inteiramente em repouso, não sofriam,
Os sobreviventes sofriam, as mães dos mortos sofriam,
As esposas e filhos, e os companheiros reflexivos sofriam,
E os exércitos que sobreviveram sofriam.
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Passando, deixo-te, lilás, com folhas no formato de um
coração,
Deixo-te lá no jardim do pátio de entrada, retornando com a
primavera.
Cesso a minha canção por ti,
O meu olhar fixo em ti no oeste, de frente para o oeste, comungando
contigo,
Na noite, ó lustrosa companheira de face argêntea.
Contudo para que cada um guarde consigo, retirada na escuridão,
A canção, o assombroso canto do pássaro cinza e marrom,
E a canção que eleva, o eco ergueu-se em minha alma,
Com a estrela lustrosa e cadente, com o semblante cheio de pesar,
Com aqueles que seguram minha mão, se aproximando do chamado do
pássaro,
Meus companheiros e eu no meio deles, e a memória deles para guardar
para sempre, pelos mortos que amei tão bem,
Pela alma mais doce e mais sábia de todos os meus dias na terra —
e isso em seu nome querido,
O lilás e a estrela e o pássaro entrelaçados pelo canto de
minha alma,
Lá nos pinheiros perfumosos e nos cedros robustos e pálidos.
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Vais caído, morto e frio.
Ah! meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso,
Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso.
Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída.
E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida.
Povo, exulta! Sino, dobra!
Mas meu passo é tão sombrio...
No convés meu Capitão
Vai caído, morto e frio.
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Foi salva a União destes Estados.
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Qualquer que seja ou não seja a aparência, somos lindos e pecaminosos
apenas em nós mesmos.
(Ó mãe — ó Irmãs queridas!
Se estamos perdidos, nenhum outro vencedor nos destruiu,
É por nossa própria culpa que descemos à noite eterna.)
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Temei a graça, a elegância, a civilização, a
delicadeza,
Temei o doce melado, temei sugar o suco do mel,
Atentai para o amadurecimento mortal da natureza que avança,
Atentai para o que precede a decadência do vigor dos estados e dos
homens.
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Aqui estão o desbasto, as barbas, a benevolência, a combatividade, os amores
da alma,
Aqui os trens que fluem, aqui as multidões, a eqüidade, a
diversidade, os amores da alma.
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Envolvendo a essência das coisas reais, velhos tempos e tempos atuais,
Envolvendo litorais recém-descobertos, ilhas, tribos de aborígines
vermelhos,
Barcos afundados pelo mau clima, aterragens, colonizações, estatura de
embriões e músculo,
O desafio desdenhoso do Ano Um, guerra, paz, a formação da
Constituição,
Os Estados separados, o esquema simples e flexível, os imigrantes,
A União sempre pululando de pessoas fúteis e sempre certa e
impregnável,
O interior desconhecido, casas feitas de tronco, clareiras, animais selvagens,
caçadores, armadilheiros,
Envolvendo a agricultura multiforme, as minas, a temperatura, a
gestação dos novos Estados,
O Congresso se reunindo a cada doze meses, todos os membros deslocando-se para a
reunião, vindos das localizações mais distantes,
Circundando o nobre caráter dos mecânicos e fazendeiros, especialmente
os jovens,
Reagindo com suas maneiras, discurso, vestimenta, amizades, o modo de andar que
eles têm de quem nunca sentiu a presença de superiores,
O frescor e a sinceridade que emanam de suas fisionomias,
A frouxidão pitoresca de sua conduta, seus modos ameaçadores quando
estão errados,
A fluência de seus discursos, seu deleite com a música, sua
curiosidade, seu bom temperamento e sua generosidade, a composição do
todo,
O ardor e o empreendedorismo que prevalecem, a grande amorosidade,
A perfeita eqüidade da fêmea e do macho, o movimento fluido da
população,
A superioridade da Marinha, o livre-comércio, a pesca, pesca à baleia,
a escavação em busca de ouro,
As cidades com ancoradouros fechados, estradas de ferro e linhas de barco a vapor
com intersecções em todos os pontos,
Fábricas, vida mercantil, máquinas que economizam o trabalho manual, o
Nordeste, Noroeste, Sudeste,
Bombeiros de Manhattan, a permuta ianque, a vida nas plantações do
sul,
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Escravidão — a conspiração assassina e traidora para
erguê-la sobre a ruína de todos os demais,
Continuamente se atracando com ele — Assassino! Que tua vida ou a nossa
seja a aposta, e não haja mais descanso.
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Por todos os nativos e grandiosos, por eles somente podem estes Estados ser fundidos no sólido
organismo de uma Nação.
Manter homens unidos por uma folha de papel e alguns selos ou pela força
não tem qualquer valor,
Somente pode manter os homens unidos aquilo que agrega todos em torno de um
princípio vivo, como o que se dá com os membros de um corpo ou as
fibras das plantas.
De todas as raças e eras, estes Estados com as veias repletas de
substância poética precisam muito de poetas e hão de ter os
maiores e de usá-los do modo mais grandioso,
Seus Presidentes não hão de ser tanto os seus árbitros comuns,
não tanto quanto os seus poetas hão de ser.
(Alma de amor e língua de fogo!
Olho para perfurar as profundezas mais profundas e varrer o mundo!
Ah, Mãe, prolífica e além disso repleta de tudo, e contudo por
quanto tempo estéril, estéril?)
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Não é um argumentador, é julgamento (a Natureza o aceita em
termos absolutos),
Não julga como o juiz, mas como o sol caindo redondo sobre algo
indefeso,
Porque vê mais longe, tem a maior fé,
Seus pensamentos são os hinos de louvor das coisas,
Na disputa sobre Deus e a eternidade ele está silente,
Ele vê a eternidade menos como uma peça que tem um prólogo e
um desenredo,
Ele vê a eternidade nos homens e nas mulheres, não vê homens e
mulheres como sonhos ou pontos.
Pela grande Idéia, a idéia de indivíduos perfeitos e
livres,
Por ela, o bardo anda adiantado, líder de líderes,
Sua atitude anima os escravos e horroriza déspotas de outras terras.
Sem extinção é a Liberdade, sem retorno é a
Eqüidade,
Elas vivem nos sentimentos dos jovens e das melhores mulheres,
(Não por acaso, as cabeças indomáveis da terra estão
sempre prontas para cair pela Liberdade.)
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Ouve, a palavra que soa é Carga! Agora a peleja e os berros furiosos e
enlouquecedores,
Agora os corpos tombando enrolados sobre o chão,
Frios, frios na morte, por tua vida preciosa,
Pano raivoso que vi saltando.)
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Abraças com amor semelhadurecem nade? E o que nasceu mais recentemente?
Pequeno e grande? E o desgarrado?
O que é isso que trazes para a minha América?
Trata-se de um uniforme do meu país?
Não é algo que já foi melhor contado ou feito?
Não importaste isso ou o espírito disso de algum navio?
Não é apenas um conto de fadas? Uma rima? Uma beleza? —
está nisso a antiga e boa causa?
Não é algo que oscilou por muito tempo nos calcanhares de poetas,
políticos, literatos, nas terras inimigas?
Não presume isso que aquilo que já se foi, notoriamente, ainda
está por aqui?
Atende às necessidades universais? Fará evoluir os modos?
Faz soar com voz de trombeta a vitória orgulhosa da União na guerra
de secessão?
Pode a tua performance encarar os campos abertos e o litoral?
Será isso absorvido por mim tal como absorvo comida e ar, para
reaparecer em minha força, no meu modo de andar, em minha face?
Empregos reais contribuíram para isso? Artesãos originais, não
meros escreventes?
Isso atende as descobertas modernas, os calibres, os fatos, face a face?
O que significa para os americanos, progressos, cidades? Chicago,
Canadá, Arkansas?
Reconhece por trás dos depositários aparentes os verdadeiros
depositários, de pé, ameaçadores, silentes, os mecânicos,
as mulheres de Manhattan, homens do Oeste, do Sul, significantemente parecidos
em sua apatia e na prontidão de seu amor?
Vê o que finalmente acontece, e tem sempre finalmente acontecido, a cada
temporizador, remendador, estrangeiro, parcialista, alarmista, infiel, que
já pediu alguma coisa à América?
Que negligência zombeteira e escarnecedora?
As pistas espalhadas com o pó dos esqueletos,
Que foi atirado desdenhosamente por outros à margem da estrada.
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Dai-me o pagamento pelo qual servi,
Deixai-me cantar as canções da grande Idéia, levai todo o
resto.
Amei a terra, o sol, os animais, desprezei as riquezas,
Dei esmolas para todos os que pediram, dei atenção aos idiotas e
aos loucos, devotei meu salário e meu trabalho para os outros,
Odiei os tiranos, não discuti sobre Deus, fui paciente e indulgente para
com o povo, não tirei meu chapéu para o conhecido e o
desconhecido,
Andei livremente com pessoas poderosas não educadas e com os jovens e
com as mães de famílias,
Li estas folhas para mim ao ar livre, experimentei-as perto das árvores,
das estrelas, dos rios,
Dispensei tudo aquilo que insultou minha própria alma ou desafiou o meu
corpo,
Não pedi coisa alguma para mim que não tivesse cuidadosamente
pedido para os outros nos mesmos termos,
Corri para os campos e encontrei companheiros e os aceitei vindos de todos os
Estados,
(Sobre este peito muitos soldados moribundos deitaram-se para dar o
último suspiro,
Este braço, esta mão, esta voz, nutriram, ergueram,
restauraram,
Para a vida, chamando de volta muitos que estavam prostrados;)
Desejo esperar para ser compreendido pelo crescimento do gosto de mim
mesmo,
Sem rejeitar ninguém, tudo permitindo.
(Dize, ó Mãe, não tenho sido leal ao teu pensamento?
Não tenho, através da vida, mantido-te e os teus perante mim?)
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O único governo é aquele que faz dos indivíduos o seu
estatuto,
A inteira teoria do universo é dirigida inequivocamente a um único
indivíduo — a saber, a Ti.
(Mãe! Com súbito senso severo, com a espada nua em tua
mão,
Vi quando afinal decidiste somente lidar com indivíduos.)
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de
agora em diante, esquecerei), fomos tu e eu,
Natural e artificial, somos tu e eu,
Liberdade, linguagem, poemas, empregos, somos tu e eu,
Passado, presente, futuro, somos tu e eu.
Não ouso eludir qualquer parte de mim,
Nenhuma parte da América, seja ela boa ou ruim,
Não para construir por aquela que constrói para a humanidade,
Não para equilibrar as fileiras, as aparências, os credos e os
sexos,
Não para justificar a ciência nem a marcha da igualdade,
Nem para alimentar o sangue arrogante do amado músculo do tempo.
Sou por aqueles que nunca foram domados,
Por homens e mulheres cujas têmperas nunca foram domadas,
Por aqueles cujas leis, teorias, convenções, jamais poderão
ser domados.
Sou por aqueles que andam ombro a ombro com a terra inteira,
Aquele que inaugura um para inaugurar todos.
Não serei defrontado por coisas irracionais,
Penetrarei naquilo que está nelas que as faz sarcásticas a meu
respeito,
Farei com que cidades e civilizações me acatem,
Isso é o que aprendi da América — é o total, e isso eu
ensino novamente.
(Democracia, enquanto as armas estavam em toda parte apontadas para o teu
peito,
Vi que, serenamente, davas à luz crianças imortais, vi em sonhos
tua forma ampliada,
Contemplei-te quando estendias o teu manto sobre o mundo.)
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Combino o meu espírito aos vossos, vós, orbes,
elevaçõaturas,
Copiosos como sois, eu vos absorvo em mim e torno-me o mestre,
A América isolada e ainda assim incorporando tudo, o que é isso,
finalmente, senão eu mesmo?
Estes Estados, o que são eles senão eu mesmo?
Sei agora por que a terra é bruta, torturante, má, ela é assim
por minha causa,
Tomo-vos especialmente para serdes meus, vós, terríveis e rudes
formas.
(Mãe, curva-te, chega-te para perto de minha face,
Não sei para que servem essas tramas e guerras e deferimentos,
Não conheço a fruição do sucesso, mas sei que
através da guerra e do crime teu trabalho continua e precisa ainda
continuar.)
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(pois a guerra, a guerra terminou, o campo está limpo)
Até que eleas, doravnfantes e para adiante,
Para fazer vibrar, ó Mãe, tua alma esperançosa e
ilimitada.
Bardos da grande Idéia! Bardos das invenções pacíficas!
(pois a guerra, a guerra terminou!)
E, contudo, bardos de exércitos latentes, um milhão de soldados
esperando, sempre prontos,
Bardos com canções como brasas ardentes ou como as listras
aforquilhadas do raio!
Bardos amplos de Ohio, do Canadá — bardos da Califórnia!
Bardos do interior — bardos da guerra!
Invoco-vos pelo meu encanto.
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Furiosas sobre a vastidão, com muitos mastros quebrados e velas
esfarrapadas.)
Ou desde o mar do Tempo, coletando a inteira vastidão, trago
Um amontoado de joio e conchas à deriva.
Ó pequenas conchas, tão curiosamente retorcidas, tão friamente
ímpidas e sem voz,
Pequenas conchas presas aos tímpanos dos templos, não ireis
Instigar ainda murmúrios e ecos, música da eternidade evanescente e
distante,
Aragem do interior, enviada da borda do Atlântico, tensões para a
alma das pradarias,
Reverberações sussurradas, acordes soando prazerosamente para o
ouvido do Oeste,
Vossas velhas novidades, contudo sempre novas e intraduzíveis,
Infinitésimos de minha vida e de muitas vidas,
(Pois não dou apenas minha vida e meus anos — tudo, tudo eu dou)
Esses artigos avulsos das profundezas, lançados para o alto e secos,
Lavados nas praias da América?
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Deslumbrantes procissões, canções de pássaros,
Nascer do sol que alimenta em plenitmáxi,
O mar celestial, as ondas sobre o litoral, as ondas fortes e musicais,
As florestas, as árvores firmes, as delgadas, as árvores
pontiagudas,
Os incontáveis exércitos liliputianos de relva,
O calor, as chuvas, as pastagens imensuráveis,
O cenário das neves, a orquestra sem vento,
O elástico telhado de nuvens com luzes penduradas, o azul celeste e as
franjas prateadas,
As estrelas dilatadas no alto, as estrelas plácidas acenando,
Os bandos de animais e os rebanhos, os planaltos e os campos cor de
esmeralda,
O espetáculo de todas as variedades de terra e todas as
plantações e os produtos.
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Tristes eram os espetáculos em minha volta, com barulhos devastadores de
ódio e fumaça de guerra;
Em meio ao conflito e aos heróis, ergui-me,
Ou andei com passo lento por entre os feridos e os moribundos.
Mas agora não canto a guerra,
Nem a marcha meticulosa dos soldados, nem as tendas dos acampamentos,
Nem os regimentos vindo com pressa, lançando-se em linhas de
batalha;
Basta de tristeza, espetáculos desnaturados de guerra.
Pediram espaço aquelas fileiras enxaguadas de imortais, os primeiros
exércitos que avançaram?
Peçam espaço, ai de mim, as horripilantes fileiras, os medonhos
exércitos que seguiram.
(Passai, passai, vós, brigadas orgulhosas, com vossas firmes pernas
andarilhas,
Com vossos ombros jovens e fortes, com vossas mochilas e vossos
mosquetes;
Quão alvoroçado me ergui para ver-vos, no lugar em que
começastes a marchar.
Passai — rufai então vossos tambores novamente,
Pois um exército se arremessa à vista, ó um outro
exército em formação,
Pululando, rebocando na retaguarda, ó vós, do exército medonho
que vem,
Ó vós, regimentos tão lamentáveis, com vossa
diarréia mortal, com vossa febre,
Ó minhas queridas terras mutiladas, com o curativo repleto de sangue e
muleta,
Contemplai vosso lívido exército que segue.)
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Ah! os mortos não me prejudicam, eles se encaixam bem na natureza,
Eles se casam muito bem com árvrelva,
E ao longo da borda do céu, na margem distante do horizonte.
Nem eu me esqueço de que partiste,
Nem no inverno nem no verão esqueço-me dos que perdi,
Mas especialmente ao ar livre como agora, neste momento em que minha alma
está arrebatada e em paz, como fantasmas agradáveis,
Tuas memórias se erguendo, deslizam próximas de mim.
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Doravante, outras serão as vossas armas nos campos, ou no Sul ou no
Norte,
Com guerras mais sãs, guerras doces, guerras a concedem a vida.
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Sobre os campos do Oeste aqueles monstros rastejantes,
As divinas invenções humanas, os implementos que economiza
mão-de-obra,
Contempla, movendo-se em todas as direções como se estivesse
imbuído de vida, o ancinho de feno giratório,
As máquinas de ceifa movidas a vapor e as máquinas movidas a
cavalo,
Os engenhos, os debulhadores de grão e os limpadores de grão,
separando devidamente a palha, o trabalho lépido do engenhoso
forcado,
Contempla a nova máquina de serrar, o descaroçador de algodão
do sul e a máquina de limpar arroz.
Sob o teu olhar, ó Maternal,
Com esses e outros implementos e com suas próprias mãos fortes, os
heróis fazem a colheita.
Todos colhem e todos ceifam,
Contudo por ti, ó Poderosa, nenhuma foice como agora agitou-se em
segurança,
Nenhuma espiga de milho oscilou, como agora, a sua delicada bandeira em
paz.
Somente sob os teus auspícios eles colhem, cada partícula de feno
sob tua grande face somente,
Ceifam o trigo de Ohio, Illinois, Wisconsin, cada haste barbada sob ti,
Ceifam o milho do Missouri, Kentucky, Tennessee, cada aurícula em seu
invólucro,
Colhem o feno para as miríades de montes no tranqüilo interior
odoroso dos celeiros,
A aveia para as suas caixas, a batata branca, o trigo sarraceno do Michigan,
para as suas;
Colhem o algodão no Mississippi e no Alabama, extraem e armazenam a
batata dourada, a batata doce da Geórgia e a das Carolinas,
Empacotam a lã da Califórnia ou da Pensilvânia,
Cortam a fibra de linho nos Estados Centrais ou o cânhamo ou o tabaco
nas Fronteiras,
Pegam a ervilha e o feijão ou puxam maçãs das árvores ou
cachos de uvas das vinhas,
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Ou algo que amadureça em todos estes Estados, ao Norte ou ao Sul,
Debaixo dos raios do sol e debaixo de ti.
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Deram a essa criança mais de si do que essas coisas,
Deram-se a ela todos os dias que se seguiram e se tornaram parte dela.
A mãe, em casa, silenciosamente, colocando os pratos na mesa de
jantar,
A mãe, com palavras amenas, limpa sua touca e sua camisola, um odor
saudável sai dela e de suas roupas quando passa,
O pai, forte, auto-suficiente, viril, mau, raivoso, injusto,
O estouro, a palavra dita com rapidez em alta voz, a barganha difícil de
obter, o engodo ladino,
Os costumes da família, a linguagem, a companhia, a mobília, o
coração enternecido e pesado,
Afeição que não será rejeitada, o senso do que é real,
o pensamento de que afinal a sua irrealidade deveria ser provada,
As dúvidas durante o dia e as dúvidas durante a noite, o curioso se e
o como,
Se aquilo parece ser é mesmo, ou será tudo apenas feito de
cintilações e partículas?
Multidões de homens e mulheres caminhando rápido nas ruas, se
não são cintilações e partículas, o que são?
As próprias ruas e as fachadas das casas e os produtos nas janelas,
Veículos, times, os ancoradouros com pesado chão de madeira, a enorme
interseção nos portos das balsas,
A vila na encosta vista a distância na hora do crepúsculo, e o rio
que atravessa a paisagem,
Sombras, o halo e a bruma, a luz caindo sobre os telhados e os espigões
brancos ou marrons a duas milhas de distância,
A escuna próxima, sonolentamente carregada pela maré, o pequeno barco
rebocado frouxamente à popa,
As ondas apressadas que tombam, as crestas rapidamente quebradas, batendo,
Os estratos de nuvens coloridas, as distantes e solitárias tiras longas de
matiz castanho, a disseminação de pureza em que se assentam
imóveis,
O borda do horizonte, o corvo do mar em seu vôo, a fragrância do
pântano salino e a da lama da praia,
Tudo isso se tornou parte daquela criança que ia adiante todos os dias, e
que agora vai, e sempre irá em frente todos os dias.
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Nem o sossego tão frio, nem a água que corre da torneira, nem os odores
insalubres me impressionam,
Mas a casa sozinha — aquela casa espantosa — aquela casa de beleza
delicada — aquela ruína!
Aquela casa imortal, mais do que todas as fileiras de moradias já
construídas!
Ó capitólio de domo branco com majestosas figuras sobrepostas, ou mais
do que todas as velhas catedrais pontiagudas,
Aquela pequena casa, sozinha, mais que todas elas — casa pobre,
desesperada!
Bela, medrosa ruína — moradia de uma alma — uma alma em si
mesma,
Casa não reclamada, evitada — toma um alento de meus lábios
trêmulos,
Toma uma lágrima das que caem ao meu lado quando penso em ti,
Casa morta do amor — casa de loucura e pecado, esmigalhada, esmagada,
Casa da vida, antes cheia de conversa e riso — mas ah, pobre casa, morta
mesmo então,
Por meses, anos, ecoando, casa guarnecida — mas morta, morta, morta.
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Não estão todos os continentes revirados e remexidos com o azedume
dos mortos?
Onde colocastes suas carcaças?
Aqueles beberrões, glutões de tantas gerações?
Onde afogastes todo o líquido abominável e a carne?
Não os vejo sobre o solo, hoje, ou talvez eu esteja enganado,
Farei um sulco com meu arado, enfiarei minha enxada através do gramado e
a revirarei no subterrâneo,
Estou certo de que exporei alguma das carnes abomináveis.
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Que ele não me colocará em risco em virtude das febres que já
se depositaram nele,
Que tudo está limpo para sempre e para sempre,
Que a água fresca do poço tem um gosto tão bom,
Que as amoras pretas são tão saborosas e suculentas,
Que os frutos do pomar de maçã e do pomar de laranja, que
melões, uvas, pêssegos, ameixas, nenhum deles me
envenenarão,
Que quando me deito na relva não pego qualquer doença,
Ainda que, provavelmente, cada haste de relva nasça daquilo que um dia
já foi uma doença contagiosa.
Agora estou aterrorizado com a Terra, com o fato de que ela seja tão
calma e paciente,
Ela faz crescer tais doçuras a partir de tais corrupções,
Ela se torna inofensiva e imaculada em seu eixo, apesar da sucessão de
corpos doentes que recebe,
Ela destila ventos tão delicados a partir da infusão de
fétidos odores,
Ela renova com uma tal aparência impremeditada suas plantações
pródigas, anuais, suntuosas,
Ela fornece tais matérias divinas aos homens e ao final aceita deles
tais restos.
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(Não são apenas canções de lealdade,
Mas canções de insurreição também,
Pois que sou o poeta jurado de todos os rebeldes destemidos no mundo
inteiro,
E aquele que me segue deixa para trás a paz e a rotina,
E arrisca sua vida, que pode ser perdida a qualquer momento.)
A batalha em fúria com muitos altos alarmas e os constantes avanços e
recuos,
O infiel triunfa, ou supõe que triunfa,
Prisão, cadafalso, algemas, colar de ferro e bolas de chumbo fazem seu
trabalho,
Os heróis conhecidos e anônimos passam a outras esferas,
Os grandes oradores e escritores são exilados, acham-se doentes em terras
distantes,
A causa está dormente, as mais poderosas gargantas estão engasgadas
com seu próprio sangue,
Os jovens abaixam suas pestanas na direção do solo quando se
encontram,
Mas ainda assim a Liberdade não perdeu o seu lugar, nem o infiel
conquistou domínio completo.
Quando a liberdade abandona um lugar, ela não é a primeira a sair,
nem a segunda, nem a terceira,
Espera que todos os demais partam antes, ela é a última a sair.
Quando não há mais memória de heróis e mártires,
E quando toda a vida e todas as almas de homens e mulheres são descartados
em qualquer parte da terra,
Então, somente nesse dia a Liberdade ou a idéia da Liberdade há
de ser descartada daquela parte da terra,
E o infiel atingirá domínio completo.
Então, coragem, rebelado europeu, rebelada européia!
Pois até que tudo cesse nem tu deves cessar.
Não conheço o sentido de tua vida (não conheço nem mesmo o
sentido de minha vida, nem o sentido que move coisa qualquer),
Mas procurarei cuidadosamente por ele, mesmo que esteja frustrado,
Na derrota, na pobreza, no equívoco, na prisão — pois
também essas experiências são grandes.
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Pensávamos que a vitória era grande?
De fato ela é — mas agora me parece, quando a vejo sem poder ser
auxiliada, que a derrota é grande,
E que a morte e o desalento são grandes.
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Será que esses bilhões de homens já se foram?
Será que essas mulheres da experiência antiga da terra se foram?
Será que de suas vidas, cidades, artes, perpetuam-se apenas em
nós?
Será que não alcançaram nada perpétuo para si mesmos?
Acredito que de todos aqueles homens e mulheres que habitaram as terras
anônimas, todos existem neste momento, aqui ou em algum outro lugar,
invisíveis para nós,
Na exata proporção das circunstâncias que os fizeram crescer na
vida, daquilo que fizeram, sentiram, tornaram-se, amaram, erraram na vida.
Acredito que aquele não foi o fim daquelas nações ou de qualquer
pessoa que nelas viveram, tanto quanto este não deve ser o fim da minha
nação, ou de mim;
De suas línguas, governos, casamento, literatura, produtos, jogos,
guerras, costumes, crimes, prisões, escravos, heróis, poetas,
Suspeito que seus resultados os esperam curiosamente no mundo ainda
invisível, em contrapartida daquilo que proveio para eles no mundo
visível,
Suspeito que devo encontrá-los lá,
Suspeito que lá devo encontrar cada traço particular daquelas terras
anônimas.
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que os afete
em um dia, um mês, qualquer parte de seu tempo direto de vida, ou de sua
hora da morte,
Mas o mesmo movimento o afeta ou a afeta continuamente depois disso,
através do tempo indireto de vida.
O indireto é tão importante quanto o direto,
O espírito recebe do corpo tanto quanto ele dá ao corpo, talvez
mais.
Nenhuma palavra ou feito, nenhuma dor venérea, descoloração,
privacidade do onanista,
Podridão dos glutões ou dos bebedores de rum, peculato, astúcia,
traição, assassinato, sedução, prostituição,
Mas tem resultados além da morte tanto quanto antes da morte.
Caridade e força pessoal são os únicos investimentos que valem
coisa qualquer.
Nenhuma especificação é necessária, tudo o que faz um macho
ou uma fêmea, isso é vigoroso, benevolente, claro, é lucrativo
para ele ou para ela,
Na imperturbável ordem do universo e através do seu inteiro escopo
para sempre.
Aquele que é sábio recebe benefícios,
Selvagem, criminoso, Presidente, juiz, fazendeiro, marinheiro, mecânico,
literato, jovem, velho, o mesmo se dá com todos,
Os benefícios retornarão — todos retornarão.
Isoladamente, completo, para afetar agora, afetados em sua vez, para sempre
afetarão, todo o passado, todo o presente e todo o futuro,
Todas as corajosas ações de guerra e paz,
Toda a ajuda dada aos parentes, estrangeiros, pobres, velhos, tristes,
crianças novas, viúvas, aos doentes e às pessoas rejeitadas,
Toda a renúncia que permaneceu constante e indiferente nos naufrágios
e assistiu outros encherem os assentos dos botes,
Todos oferecendo a substância da vida para a antiga e boa causa, ou por um
amigo, ou por uma opinião,
Todas as dores dos entusiastas ridicularizados por seus próximos,
Todo o doce amor ilimitado e o precioso sofrimento das mães,
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Todos os homens honestos confundidos em contendas registradas ou não
registradas,
Toda a grandeza e bem de nações antigas cujos fragmentos
herdamos,
Todo o bem de dúzias de nações antigas, não conhecidas de
nós pelo nome, data e localização,
Tudo o que foi virilmente iniciado, com sucesso ou sem sucesso,
Todas as idéias da divina mente do homem ou da divindade de sua boca, ou o
que foi modelado por suas mãos,
Tudo o que é bem pensado ou dito atualmente em qualquer parte do globo, ou
em qualquer uma das estrelas que perambulam, ou em qualquer das estrelas fixas,
por aqueles que estão lá como nós estamos aqui,
Tudo o que doravante está para ser pensado ou feito por ti, quem quer que
sejas, ou por qualquer outra pessoa,
Esses vigoram, têm vigorado, hão de vigorar, para as identidades das
quais surgem ou das quais hão de surgir.
Conjecturas que qualquer coisa viveu apenas o seu momento?
O mundo não existe assim, nenhuma parte palpável ou impalpável
existe assim,
Nenhum apodrecimento existe sem que tenha origem em algum longo apodrecimento
anterior, e esse último por sua vez com origem em outro,
Sem que o mais remoto concebível chegue um pouco mais perto do começo
que outro qualquer.
O que quer que satisfaça as almas é verdadeiro;
A prudência satisfaz inteiramente os anseios e a fome das almas,
Em si mesma, finalmente, ela apenas satisfaz a alma,
A alma tem aquele orgulho sem medida que se revolta contra todas as
lições, exceto as suas próprias,
Agora sopro o verbo da prudência que anda lado a lado com o tempo, com o
espaço, com a realidade,
Responde ao orgulho aquele que recusa todas as lições, exceto as suas
próprias.
A prudência é indivisível,
Decai para separar uma parte da vida de todas as partes,
Não separa o correto do incorreto ou o vivo do morto,
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Combina todo pensamento ou ato ao seu correlativo,
Não conhece perdão possível ou expiação
comissionada,
Sabe que o jovem que colocou a própria vida em risco e a perdeu, a si
mesmo beneficiou-se, extraordinariamente, sem dúvida,
Que aquele que nunca colocou sua vida em risco, mas que a retém até a
idade avançada, em meio a riquezas e facilidades, provavelmente nunca
atingiu algo para si que seja digno de menção,
Sabe que a única pessoa que realmente aprendeu algo foi aquela que
aprendeu a preferir os resultados,
Aquela que favorece o corpo e a alma também,
Aquela que percebe o indireto seguramente perseguindo o direto,
Aquela que em seu espírito, em qualquer situação de
emergência, nem se apressa nem evita a morte.
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Numerosos, bem armados, tudo acompanhando com olhos atentos.)
Uma dama entrou calmamente com duas criancinhas inocentes, seguras por suas
mãos,
Que se sentaram nos bancos ao lado dela, na plataforma,
E, com seu instrumento, tocou baixinho um prelúdio musical,
E sua voz, a tudo ultrapassando, cantou um velho hino exótico.
Ó alma presa atrás das grades,
Gritas: "Socorro!" no teu Hades,
Cega. E, a sangrar, teu coração
Não tem repouso nem perdão.
Um ir e vir que não tem cura,
Dias de dor, noites de amargura,
Sem mão amiga, ou voz de amor
Nem luz, nem beijo, nem favor.
"Não tenho culpa nem pecado,
Por este corpo fui levado
À arena em que lutei, embora
Tu foste, ó carne, a vencedora."
Suporta, alma aprisionada,
Serás em breve libertada,
Com a morte que trará, então,
O teu repouso e o teu perdão.
Sem dores, e agora absolvida,
Parte a alma, no fulgor da Vida.
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Sobre todos eles, condenados e guardas armados, antes agitados,
(Condenados esquecendo-se da prisão, guardas esquecendo-se de suas
pistolas carregadas)
Um silêncio e uma pausa caíram por um minuto maravilhoso,
Com soluços profundos e meio contidos e com o som de homens maus
curvados e sensibilizados, chorando,
E respirações convulsivas de jovens, lembranças do lar,
A voz da mãe em canções de ninar, os cuidados da irmã, a
infância feliz,
O espírito há muito enclausurado, erguido para a
reminiscência;
Um minuto maravilhoso, então — e após a noite solitária,
para muitos, muitos lá,
Anos depois, mesmo na hora da morte, o triste refrão, o tom, a voz, as
palavras
Retomadas, a grande e calma dama anda pelo estreito corredor,
A melodia lamentosa novamente, a cantora canta para os condenados:
Ó visão de piedade, vergonha e
aflição!
Ó pensamento temeroso — uma
alma na prisão.
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O pisco de peito ruivo no lugar em que dança, com olhos brilhantes e peito
marrom,
Com um chamado musical claro na alvorada e, novamente, no crepúsculo,
Ou esvoaçando entre as árvores do pomar de macieiras, construindo o
ninho de seu par,
A neve derretida de março, o salgueiro emitindo seus brotos amarelos
esverdeados,
Pois o tempo da primavera é aqui! O verão é aqui! E o que é
isso em si mesmo e de si?
Tu, alma, presa — a inquietação de ir atrás de algo que
não sei;
Vem! não nos atrasemos mais por aqui, que possamos subir e ir embora!
Ó se alguém pudesse apenas voar como um pássaro!
Ó escapar, para navegar como em um navio!
Deslizar contigo, ó alma, sobre tudo, em tudo, como um navio sobre as
águas;
Reunindo esses sinais, os prelúdios, o céu azul, a relva, as gotas de
orvalho matinal,
O perfume de lilás, os arbustos com folhas verde-escuras em forma de
coração,
Violetas, os pequenos botões delicados e pálidos chamados
inocência,
Exemplos e tipos não por si mesmos, mas para a sua atmosfera,
Para agraciar o arbusto que amo — para cantar com os pássaros,
Uma canção pela alegria do tempo de lilases, voltando à
memória.
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Os casamentos, a rua, a fábrica, a fazenda, o quarto da casa, o
alojamento,
O labor e a faina, o banho, o ginásio, o parque de diversões, a
biblioteca, o colégio,
O estudante, o menino ou a menina, sendo conduzidos para aprender,
O doente carregado, o que andava descalço calçado, o
órfão com pai e mãe,
O faminto alimentado, o sem-teto com uma casa;
(As intenções perfeitas e divinas,
Os trabalhos, os detalhes, humanamente felizes.)
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Esse mapa da geografia do coração, esse ilimitado pequeno continente,
esse mar insondável,
Saindo das circunvoluções deste globo,
Este orbe astronômico mais sutil que o sol ou que a lua, que Júpiter,
Vênus, Marte,
Essa condensação do universo (e mais ainda o único universo que
está aqui,
Aqui a idéia, tudo neste punhado de pacotes místicos);
Estes olhos entalhados, sinalizando para que passes ao tempo futuro,
Para lançar e fazer girar através do espaço, revolvendo-se
obliquamente, a partir destes para enviar-te —
Quem quer que sejas — um olhar.
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Vens obtusamente para o poder divino de falar palavras?
Pois somente ao final, depois de muitos anos, depois da castidade, da amizade,
da precaução, da prudência e da nudez,
Depois de palmilhar o solo e enfrentar rios e lagos,
Depois de uma garganta afrouxada, depois de absorver eras, temperamentos,
raças, depois do conhecimento, da liberdade, de crimes,
Depois de completar a fé, depois de clarificações,
elevações e remoção de obstáculos,
Depois disso tudo e mais, somente após isso é possível que venha
a um homem, a uma mulher, o poder divino de dizer palavras;
Então, para aquele homem ou para aquela mulher tudo se acelera —
nada é recusado, tudo é atendido,
Exércitos, navios, antiguidades, bibliotecas, quadros, máquinas,
cidades, ódio, desespero, amizade, dor, latrocínio, assassinato,
aspiração, enfileiram-se com proximidade,
Emergem quando desejados para marchar obedientemente através da boca
daquele homem ou daquela mulher.
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Vós, prostitutas ostensivas nas ruas ou obscenas em vossos quartos,
Quem sou eu que deveria chamar-vos de mais obscenas que eu?
Ó sou culpável! reconheço — revelo-me!
(Ó admiradores, não me louveis — não vos congratuleis
comigo — ou me sentirei constrangido,
Vejo aquilo que não podeis ver — sei o que não sabeis.)
Dentro dos ossos de meu peito, jazo sufocado e engasgado,
Debaixo desta face que parece tão impassível, marés do inferno
correm continuamente,
Lascívia e maldade são aceitáveis para mim,
Ando com delinqüentes, amando-os apaixonadamente,
Sinto que sou deles — eu mesmo pertenço àqueles condenados e
às prostitutas,
E de agora em diante não os negarei — pois como posso negar a mim
mesmo?
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E que tu ou qualquer outra pessoa precisam aproximar-se das criações
através dessas leis?
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Esses e os demais, um e todos, são milagres para mim,
A referência inteira e, contudo, cada um distintamente em seu lugar.
Para mim toda hora de luz e de escuridão é um milagre,
Cada centímetro cúbico do espaço é um milagre,
Cada jarda quadrada da superfície da terra é formada por ele,
Cada pé de suas profundezas está infestada dele.
Para mim o mar é um milagre contínuo,
Os peixes que nadam — as pedras — o movimento das ondas — os
navios com os homens neles,
Que milagres mais estranhos pode haver?
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Difundindo, fazendo cair, atirando para os lados, em finos chuveiros de
ouro,
As faíscas da roda.
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que amo,
somente dessa fonte podem emanar os abraços vigorosos dos homens,
Desentranhados das entranhas do cérebro da mulher provêm todas as
entranhas do cérebro do homem, devidamente obediente,
Desentranhado da justiça da mulher, toda a justiça é
desentranhada,
Desentranhada da solidariedade da mulher está toda a solidariedade;
Um homem é algo grandioso sobre a Terra e através da eternidade, mas
toda partícula de grandeza do homem é desentranhada da mulher;
Primeiramente o homem é formado dentro da mulher, posteriormente pode ele
assumir a própria forma.
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A teoria de uma cidade, um poema, e das grandes políticas destes
Estados;
Que não acredita apenas em nosso globo com seu sol e sua lua, mas
também em outros globos com os seus sóis e suas luas,
Que, construindo a casa para si, não apenas por um dia, mas para todos os
tempos, vê as raças, as eras, as datas, as gerações,
O passado, o futuro residindo nela, como também o espaço,
inseparavelmente unidos.
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Não uma questão diminuta, este globo redondo e delicioso movendo- se
com tanta exatidão em sua órbita para sempre e sempre, sem
um único erro ou inverdade, por um único segundo,
Não penso que ele foi feito em seis dias, nem em dez mil anos, nem em dez
bilhões de anos,
Nem planejado e construído, uma coisa após a outra, como um arquiteto
planeja e constrói uma casa.
Não penso que setenta anos é o tempo de um homem ou de uma
mulher,
Nem que setenta milhões de anos é o tempo de um homem ou de uma
mulher,
Nem que os anos jamais deterão a minha existência ou a de qualquer
outra pessoa.
É maravilhoso o fato de que devo ser imortal? Todos são imortais;
Sei que é maravilhoso, mas o alcance de minha vista é igualmente
maravilhoso e o modo pelo qual fui concebido no ventre de minha mãe é
igualmente maravilhoso,
E o ter passado da fase de bebê que engatinha, em alguns verões e
invernos, para a de um ser que fala e anda — tudo isso é igualmente
maravilhoso.
E que minha alma te abraça nesta hora sem que haja contato físico
entre nós, sem que nos tenhamos visto e talvez nunca venhamos a nos ver, em
cada detalhe, é maravilhoso.
E que eu possa ter pensamentos tais como estes é também
maravilhoso,
E que possa te fazer lembrar desses pensamentos e que também tu os
terás e saberás que são verdadeiros, é também
maravilhoso.
E que a lua gira em torno da terra e segue a órbita da terra é
igualmente maravilhoso,
E que ambas se equilibram com o sol e as estrelas é igualmente
maravilhoso.
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Estrela crucificada — vendida por traidores,
Estrela arquejante sobre uma terra de morte, terra heróica,
Terra estranha, apaixonante, zombeteira, frívola.
Miserável! Contudo, por teus erros, tua vaidade, teus pecados, não
hei de censurar-te agora,
Tuas aflições inimitáveis e agonias corrigiram-te,
E deixaram-te sagrada.
Além disso, em meio às tuas muitas faltas, tu sempre mantiveste tuas
metas elevadas,
E jamais vendeste a ti mesma, não importando a grandeza do preço,
Certamente acordaste chorando de teu sono entorpecido,
E somente tu, entre tuas irmãs, gigante, rendeste aqueles que te
envergonhavam,
E que tu não poderias usar, nem usarias as cadeias de sempre,
Esta cruz, teu rosto lívido, tuas mãos perfuradas e teus
pés,
A lança enfiada em teu lado.
Ó estrela! Ó embarcação da França, surrada por aqueles
que surraste e por muito tempo confundida!
Suporta, ó orbe golpeado! Ó navio, prossegue!
Certo como o navio de sempre, a Terra em si mesma,
Produto de fogo mortal e de caos turbulento,
Para adiante, a partir de teus espasmos de fúria e de teus venenos,
Emitindo, finalmente, perfeito, poder e beleza,
Para adiante, debaixo do sol, seguindo teu curso,
Assim tu, ó navio da França!
Terminados os dias, as nuvens dispersadas,
Vencidas as dores do parto, a libertação por longo tempo buscada,
Quando, vê, renascida, alta sobre o mundo europeu!
(Com alegria, respondendo desde então, como face longe da face, refletindo
a nossa, Colúmbia)
Novamente tua estrela, ó França, bela e lustrosa estrela,
Na paz celestial, mais clara, mais brilhante do que nunca,
Há de brilhar imortal.
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med.00400.392.jpg
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aflição, com toda a maldade e traição atirada sobre ti,
Esse espanto comum testemunhei — vi o tordo pai alimentando sua cria,
O tordo cantante cujos tons de alegria e extática fé,
Não falham em certificar e estimular minha alma.
Ali tendo ponderado, senti,
Se minhocas, cobras, vermes abomináveis podem também ser
transformados em canções espirituais,
Se pragas assim transformadas tão úteis e abençoadas podem
ser,
Então que eu possa confiar em ti, em tua sorte, em teus dias, em meu
país;
Quem sabe se essas podem ser as lições adequadas a ti?
Dessas, a tua canção futura poderá surgir com alegres
vibrações,
Destinadas a espalhar-se pelo mundo.
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(Como de uma velha raiz ou solo da terra, a sua última flor ou seu
último fruto)
Escuta satisfeita.
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O hino fúnebre e a desolação da humanidade.)
Agora ares antigos e medievais me alimentam,
Vejo e ouço velhos harpistas com suas harpas em festivais gauleses,
Ouço os minicantores cantando suas canções de amor,
Agora se ouve o som do grande órgão,
Trêmulo, enquanto subterrâneo (como os fundamentos ocultos da
terra,
Nas quais descansam quando se erguem, e se apóiam quando saltam para
adiante,
Todas as formas da beleza, graça e força, todos os matizes que
conhecemos,
Verdes hastes de relva e pássaros que gorjeiam, crianças que
brincam e jogam, nas nuvens do céu acima)
A forte base se ergue e suas pulsações não cessam,
Banhando-se, apoiando, fundindo todas as demais, maternidade de todas as
outras,
E com ele todos os instrumentos em multidões,
Os instrumentistas tocando, todos os músicos do mundo,
Os hinos solenes e as missas em estimulante adoração,
Todos os cantos de corações apaixonados e apelos de tristeza,
Os imensuráveis vocalistas doces das idades,
E por sua dissolvente afinação no próprio diapasão da
Terra,
De ventos e florestas e poderosas ondas do oceano,
Uma nova composição de orquestra, enfeixadora de anos e de climas,
renovadora e multiplicadora,
Como nos contam os poetas da Antiguidade, o Paradiso,
O extravio desde então, a longa separação, mas agora o fim da
divagação,
A jornada concluída, o viajante volta para casa,
O homem e a arte fundem-se novamente à natureza.
Tutti! Pela terra e pelo céu,
(O condutor todo poderoso faz agora um sinal com sua batuta.)
A estrofe viril dos maridos do mundo,
E a resposta de todas as esposas.
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As línguas dos violinos,
(Penso, ó línguas, que dizeis a este coração aquilo que
ele não pode dizer a si mesmo,
Este coração gerador de ânsias, que não pode falar de si
mesmo.)
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Para o cruzamento de espadas e os cabelos grisalhos descobertos sob o
céu,
A clara base elétrica e barítona do mundo,
O dueto de trombone, Liberdade para sempre!
Da densa sombra das castanheiras espanholas,
Próximas às velhas e pesadas paredes de um convento, uma
canção gemente,
Canção de amor perdido, a tocha da juventude e da vida extinta em
desespero,
Canção do cisne moribundo, o coração de Fernando está
se quebrando.
Despertada de suas agonias, liberta afinal, Amina canta,
Abundantes como as estrelas e felizes como a luz da manhã, as torrentes de
sua satisfação.
(A fértil dama vem,
O lustroso orbe, Vênus contralto, a mãe florescendo,
Irmã de elevados deuses, o ser de Alboni eu ouço.)
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Ouço-os arrastando metricamente os seus pés.
Vejo novamente a antiga e selvagem dança coribântica, os
dançarinos ferindo-se uns aos outros,
Vejo a juventude romana, ao som estridente dos flajolés, jogando suas
armas para cima e recolhendo-as,
Caindo de joelhos e erguendo-se outra vez.
Ouço, da mesquita muçulmana, o chamado do Muezim,
Vejo aqueles que adoram o ser interior, sem forma nem sermão, sem
argumento ou palavra,
Mas silentes, estranhos, devotados, elevados, com cabeças brilhantes,
faces extáticas.
Ouço a harpa egípcia de muitas cordas,
Os cantos primitivos do barqueiro do Nilo,
Os hinos sagrados da China imperial,
Os sons delicados para o rei (a madeira e a pedra feridas),
Ou as flautas hindus e o irritante som metálico da vina,
Tocados para um grupo de bailadeiras.
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Ouço o canto anual das crianças na catedral de St. Paul,
Ou, debaixo do telhado alto de algum salão colossal, as sinfonias, os
oratórios de Beethoven, Handel, ou Haydn,
A Criação em vagas de divindade me lava.
Fazei-me guardar todos os sons (loucamente lutando, choro),
Enchei-me com todas as vozes do universo,
Dotai-me de suas pulsações, as da natureza também,
As tempestades, as águas, os ventos, óperas e cantos, marchas e
danças,
Expressai, derramai, pois tudo levarei!
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Vós também com alegria eu canto.
Passagem para a Índia!
Contempla, alma, não vês o propósito de Deus desde o
início?
Que a terra fosse atravessada, conectada por uma rede,
As raças, vizinhos, casar e ser dada em casamento,
O oceano a ser cruzado, o distante trazido para perto,
As terras para serem soldadas juntas.
Um novo culto eu canto,
Vós, capitães, viajantes, exploradores, o vosso,
Vós, engenheiros, vós, arquitetos, maquinistas, o vosso,
Vós, não somente para negócios e para o transporte,
Mas, em nome de Deus e em teu nome apenas, ó alma.
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Vejo a montanha Monumento e a Ninho de Águia, ultrapasso o
Promontório, subo o Nevadas.
Esquadrinho a nobre montanha Elk e ziguezagueio em torno de sua base,
Vejo os limites do Humbolt, avanço com dificuldade pelo vale e cruzo o
rio,
Vejo as águas claras do lago Tahoe, vejo florestas de pinhos
majestosos,
Ou cruzando o grande deserto, os planos alcalinos, contemplo encantadoras
miragens de águas e prados,
Deixando marcas por toda parte, em linhas delgadas e duplicadas,
Construindo uma ponte sobre três ou quatro mil milhas de viagem por
terra,
Ligando o mar do Leste ao mar do Oeste,
O caminho entre a Europa e a Ásia.
(Ah, Genovês, teu sonho! teu sonho!
Séculos depois que tua arte foi posta em teu túmulo,
O litoral que descobriste testemunha teu sonho.)
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Inteiramente coberta com poder visível e beleza,
Alternando a luz e o dia com a produtiva escuridão espiritual,
A indizível alta procissão de sol e lua e as incontáveis
estrelas acima,
Embaixo, a multiplicidade de grama e água, animais, montanhas,
árvores,
Com inescrutável propósito, alguma oculta intenção
profética,
Agora parece que meu pensamento começa a transpor-te.
Descendo dos jardins da Ásia, radiantes,
Adão e Eva aparecem, depois segue sua prole numerosa,
Vagueando, com ardentes desejos, curiosos, explorando sem cessar,
Com questionamentos, confusos, sem forma, febris, com corações nunca
felizes,
Com aquele triste e contínuo refrão, Para onde alma
insatisfeita? e Até quando, ó vida
escarninha?
Ah, quem há de consolar essas crianças febris?
Quem justifica essas explorações incessantes?
Quem fala o segredo da terra impassível?
Quem a ela nos prende? O que é essa natureza separada, tão
artificial?
O que é esta terra para as nossas afeições? (terra sem amor, sem
uma palpitação que responda à nossa,
Fria terra, lugar de túmulos.)
Contudo, alma, estejas certa de que a primeira intenção permanece e
há de ser conduzida adiante,
Talvez mesmo agora o tempo tenha chegado.
Depois que os mares todos tiverem sido cruzados (como parecem já
cruzados),
Depois que os grandes capitães e engenheiros tiverem realizado seu
trabalho,
Depois que os nobres inventores, após os cientistas, o químico, o
geólogo, o etnólogo,
Finalmente há de vir o poeta digno desse nome,
O verdadeiro filho de Deus há de vir entoando suas canções.
Então, não somente os teus feitos, ó viajantes, ó
cientistas e inventores, hão de ser justificados,
Todos esses corações de crianças agitadas hão de ser
confortados,
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Toda afeição há de ser inteiramente correspondida, o segredo
será contado,
Tudo o que está separado e afastado há de ser resgatado e enganchado
e reunido,
A terra inteira, esta fria, impassível, muda terra, há de ser
inteiramente justificada,
A trindade divina há de ser gloriosamente realizada e consolidada pelo
verdadeiro filho de Deus, o poeta,
(Ele de fato há de ultrapassar os estreitos e conquistar as montanhas,
Ele há de dobrar o Cabo da Boa Esperança para algum
propósito)
A Natureza e o Homem não estarão mais apartados e difusos,
O verdadeiro filho de Deus há de fundi-los absolutamente.
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Os impérios centrais e do sul e todas as suas posses e possuidores,
As guerras de Tamerlão, o reino de Aurungzebe,
Os comerciantes, governantes, exploradores, muçulmanos, venezianos,
bizantinos, os árabes, portugueses,
Os viajantes pioneiros até hoje famosos, Marco Pólo e Batouta, o
mouro,
Dúvidas para serem deslindadas, o mapa incógnito, os espaços
para serem preenchidos,
O pé do homem inquieto, as mãos nunca em descanso,
Tu, ó alma, que não conseguirá ficar sem atender a um
desafio.
Os navegadores medievais erguem-se diante de mim,
O mundo de 1492 despertando para os seus empreendimentos,
Algo brotando agora na humanidade como a seiva da terra na primavera,
O crepúsculo, o esplendor da cavalaria que declina.
E quem és tu, sombra triste?
Gigantesca, visionária, tu mesma uma visionária,
Com membros majestosos e piedosos olhos resplandecentes,
Espalhando por toda parte, em cada olhar teu, um mundo dourado,
Matizando-o com cores deslumbrantes.
Como o protagonista,
Anda para as luzes do palco em alguma cena grandiosa,
Dominando todos os demais, vejo o próprio Almirante,
(Tipo histórico de coragem, ação, fé),
Observa-o navegando de Palos, liderando sua frota,
Observa a sua viagem, seu retorno, sua grande fama,
Seus azares, caluniadores, contempla-o prisioneiro, algemado,
Contempla seu abatimento, pobreza, morte.
(Curioso, ergo-me no tempo, anotando os esforços dos heróis,
É longo o adiamento? Amargo o ultraje, a pobreza, a morte?
Jaz a semente no solo, esquecida ao longo de séculos? Olha, para o tempo
apropriado de Deus,
Insurge durante a noite, germina, brota,
E enche a terra com utilidade e beleza).
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Não apenas as terras e os mares, teu próprio claro frescor,
A jovem maturidade de geração e florescimento,
Para os domínios de livros sagrados que brotam,
Ó alma, não reprimida, eu contigo e tu comigo,
Tua circunavegação do mundo tem início,
De homem, a viagem de retorno de sua mente,
Para o paraíso inicial da razão,
De volta, de volta para o nascimento da sabedoria, para inocentes
intuições,
Outra vez uma bela criação.
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Ó tu, transcendente,
Sem nome, a fibra e o sopro,
Luz das luzes, derramando universos, tu, o centro de todos eles,
Tu, poderoso centro da verdade, o bom, o amoroso,
Tu, fonte moral e espiritual — manancial de afeto — tu,
reservatório,
(Ó minha alma reflexiva — ó sede insatisfeita — não
esperas onde estás?
Não esperas por acaso por nós, em alguma parte por aí, o
Companheiro perfeito?
Tu, pulso — tu, motivo das estrelas, dos sóis, dos sistemas,
Que, circulando, move-se em ordem, seguro, harmonioso,
Através da vastidão sem forma do espaço,
Como deveria eu pensar, como emitir um único sopro, como falar, se estou
fora de mim,
Não poderia lançar, para aqueles, universos superiores?
Ligeiramente, murcho no pensamento de Deus,
Na Natureza e em suas maravilhas, Tempo e Espaço e Morte,
Mas eu, voltando-me, clamo por ti, ó alma, tu que na verdade és o meu
Eu,
E, vê, gentilmente dominas os orbes,
Dominas o Tempo, sorrindo satisfeita na Morte,
E enches e te avultas na plena vastidão do Espaço.
Maior que estrelas ou sóis,
Saltando, ó alma, adiante em tua jornada;
Que amor como o teu e o nosso poderia amplificar-se ainda mais?
Que aspirações, que desejos podem superar o teu e o nosso, ó
alma?
Que sonhos de ideal? Que planos de pureza, perfeição, força?
Que vibrante vontade de tudo renunciar pelo bem dos outros?
De tudo sofrer pelo bem dos outros?
Calculando de antemão, ó alma, a chegada de teu momento,
Todos os mares cruzados, todos os cabos dobrados, a viagem feita,
Cercado, lutaste e venceste, arrostaste Deus, rendeste-te, a meta foi
alcançada,
Pleno de amizade, de completo amor, tendo encontrado o irmão mais
velho,
O mais novo derrete-se de carinho em seus braços.
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Ó minha alma valente!
Ó mais longe, para mais longe navega!
Ó alegria ousada, mas segura! Não são esses todos os mares de
Deus?
Ó mais longe, mais longe, para mais longe navega!
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Navegando nas profundezas ou viajando em terra por Ti;
Intenções, significados, aspirações minhas, deixando os
resultados para Ti.
Ó estou certo de que realmente vieram de Ti,
O anseio, o ardor, a vontade inquebrantável,
O potente, o que senti, o comando interior, mais forte que palavras,
Uma mensagem dos Céus sussurrando em meus ouvidos, mesmo enquanto durmo,
Fazendo-me seguir adiante.
Por mim, e por isso a obra até aqui realizada,
Por mim, a terra dos antigos saciada e terras contidas não saciadas,
libertas,
Por mim os hemisférios transpostos e ligados, o desconhecido para o
conhecido.
O fim eu não conheço, tudo está em Ti,
Pequeno ou grande não conheço — talvez quais amplos campos, quais
terras,
Talvez esse bruto e ilimitado rastejar humano que conheço,
Transplantado ali pode ele erguer-se para saturar, para gerar conhecimento digno de
Ti,
Talvez as espadas que conheço possam ali, de fato, ser transformadas em
ferramentas para a ceifa,
Talvez a cruz inerme que conheço, a cruz morta da Europa, possa brotar e
florescer ali.
Mais um esforço, meu altar é este árido areal;
Que Tu, ó Deus, minha vida iluminaste,
Com um raio de luz, constante, inefável, outorgado por Ti,
Luz rara, inenarrável, iluminando a própria luz,
Para além de todos os sinais, descrições, linguagens;
Por isso, ó Deus, seja esta a minha última palavra, de joelhos, aqui,
Velho, pobre e paralisado, eu Te agradeço.
Meu término está próximo,
As nuvens já se fecham sobre mim,
A viagem frustrada, o curso disputado, perdido,
Entrego-Te meus navios.
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Minhas mãos, meus membros cada vez mais flácidos,
Sinto meu cérebro atormentado, desnorteado,
Os velhos costados dos navios se vão, eu permaneço,
Agarrar-me-ei rapidamente em Ti, ó Deus, apesar do açoite das ondas sobre
mim,
Tu, Tu, ao menos, eu conheço.
O que falo é o pensamento do profeta ou estarei delirando?
O que sei sobre a vida? O que sei de mim mesmo?
Não conheço nem mesmo minhas obras do passado e do presente,
Obscuras e sempre instáveis adivinhações acerca delas se espalham
diante de mim,
De mundos mais novos e melhores, seus partos poderosos,
Escarnecendo de mim, fazendo-me perplexo.
E essas coisas vejo repentinamente, o que elas significam?
Como se algum milagre, alguma mão divina desvendasse meus olhos,
Vastas formas sombrias sorriem através do ar e do céu,
E nas ondas distantes navegam navios incontáveis,
E hinos em novas línguas, saudando-me, ouço.
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Os corpos esquartejados nos campos de batalha, os insanos em suas celas de
segurança, os sagrados idiotas, os recém-nascidos emergindo dos portais
e os moribundos emergindo dos portais,
A noite que os penetra e envolve.
O casal dorme calmamente em sua cama, o marido tem a palma da mão no quadril
da esposa, e ela tem a palma da mão no quadril do marido,
As irmãs dormem amorosamente, lado a lado em sua cama,
Os meninos dormem amorosamente, lado a lado em sua cama,
E a mãe dorme com a sua criancinha cuidadosamente embrulhada.
O cego dorme, e o surdo-mudo dorme,
O prisioneiro dorme bem na prisão, o filho fugitivo dorme,
O assassino que será executado no dia seguinte, como ele consegue
dormir?
E a pessoa por ele assassinada, como ela dorme?
A fêmea que ama sem ser correspondida dorme,
E o macho que ama sem ser correspondido dorme,
A mente do ganhador de dinheiro que tramou o dia inteiro dorme,
E as disposições enfurecidas e desleais, todas, todas dormem.
Ergo-me no escuro com olhos abatidos, por amor aos piores sofredores e os mais
insones,
Passo minha mão ternamente, para lá e para cá, bem próximo a
eles,
E os insones caem em suas camas e dormem adequadamente.
Agora perfuro a escuridão, novos seres aparecem,
A terra foge de mim dentro da noite,
Vi que ela era linda e vi que aquilo que não é a terra é lindo
também.
Vou de leito em leito, durmo próximo aos outros que dormem, cada um de uma
vez,
Sonho em meu sonho todos os sonhos dos outros sonhadores,
E me torno o sonhador dos outros.
Sou uma dança — toca aí em cima — o par me faz girar
rapidamente!
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Sou aquele que sempre sorri — é lua nova e crepúsculo.
Vejo as gratificações sendo escondidas, vejo ágeis fantasmas para
qualquer lado que me torno,
Esconderijo e esconderijo novamente nas profundezas do solo e do mar e no lugar
em que não é solo nem é mar.
Cumprem bem os seus deveres aqueles viajantes divinos,
Somente de mim nada podem esconder e nada esconderiam se pudessem,
Concluo que sou o seu patrão e eles me fazem um afago também,
E cercam-me e lideram-me e correm à minha frente quando ando,
Para erguer seus ardilosos disfarces, para me representar com braços
estirados, e retomar o caminho;
Para sempre nos movemos, um grupo de alegres patifes! Com música hilariante
e flâmulas amplamente agitadas de prazer!
Sou o ator, a atriz, o eleitor, o político,
O emigrante e o exilado, o criminoso que estava na cela,
Aquele que foi famoso e aquele que há de ser famoso mais tarde,
O tartamudo, a pessoa bem formada, a pessoa desgastada ou débil.
Eu sou aquela que se adornou e arrumou o cabelo esperançosamente,
Meu indolente amante veio e está escuro.
Intensifica-te e recebe-me, escuridão,
Recebe-me, e meu amante também, ele não me deixará partir
sozinho,
Rolo sobre ti como sobre uma cama, entrego-me à poeira.
Aquele a quem chamo responde e toma o lugar de meu amante,
Ele se ergue comigo, silencioso, da cama.
Escuridão, tu és mais gentil que o meu amor, sua carne era suada e
arquejante,
Sinto a umidade quente que ele deixou comigo.
Minhas mãos estão estendidas, passo-as em todas as
direções,
Eu iria aperfeiçoar o litoral sombrio para o qual estás viajando.
Sê cuidadosa, escuridão! Aquilo que ele era já me tocou?
Pensei que meu amante havia partido, pois, além disso, a escuridão e
ele são um,
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Ouço o bater do coração, sigo, desvaneço.
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Seu lindo corpo é suportado nos circulantes remoinhos, é continuamente
ferido nas rochas,
Velozmente e para fora do alcance da visão, o seu corpo valente é
conduzido.
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O chefe coloca os braços em torno de seus pescoços e os beija na
face,
Ele beija levemente as faces molhadas, uma após a outra, ele aperta as
mãos e se despede do exército.
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Ó amor e verão, estais nos sonhos e em mim,
Outono e inverno estão nos sonhos, o fazendeiro vai com sua
parcimônia,
Os rebanhos e as plantações aumentam, os celeiros estão bem
cheios.
Os elementos se fundem na noite, navios mudam de rumo nos sonhos,
O marinheiro navega, o exilado volta para casa,
O fugitivo retorna sem um arranhão, o imigrante retorna além dos meses e
dos anos,
O pobre irlandês mora numa casa simples desde a infância, com vizinhos e
rostos bem conhecidos,
Eles o acolhem calorosamente, ele está descalço novamente, esquece-se de
que tem sorte,
O holandês viaja para casa e o escocês e o gaulês viajam para casa,
e os nativos do Mediterrâneo viajam para casa.
Em todos os portos da Inglaterra, França, Espanha, entram navios
abarrotados,
O suíço anda na direção de suas montanhas, o prussiano segue o
seu caminho, o húngaro o seu caminho e o polonês o dele,
O sueco retorna e o dinamarquês e o norueguês retornam.
Os que voltam para a casa e os que saem de casa,
O lindo nadador perdido, o entediado, o onanista, a fêmea que ama sem ser
correspondida, o ganhador de dinheiro,
O ator e a atriz, aqueles que já se apresentaram e aqueles que esperam pelo
início,
O garoto carinhoso, o marido e a esposa, o eleitor, o candidato que foi eleito e o
candidato que perdeu a eleição,
Os grandes que já são conhecidos, os grandes de qualquer tempo
futuro,
O tartamudo, o doente, o perfeito, o caseiro,
O criminoso na cela, o juiz que se sentou e proferiu a sentença, os advogados
fluentes, o júri, a audiência,
O trocista e o lamentoso, o dançarino, a viúva da meia-noite, a velha
índia vermelha,
O definhado, o que tem erisipela, o idiota, o que está enganado,
O antípoda e todos os que estão entre esses e eles na escuridão,
Juro que são medianos agora — um não é melhor do que
outro,
A noite amou-os e o sono renovou-os.
Juro que todos eles são lindos,
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Todos os que dormem são lindos, tudo o que está dentro da luz fosca
é lindo,
O mais selvagem e mais sanguinário terminou e tudo está em paz.
A paz é sempre linda,
O mito do céu indica a paz e a noite.
O mito do céu indica a alma,
A alma é sempre bela, ela aparece mais ou aparece menos, vem ou fica para
trás,
Vem de seu jardim coberto de folhagens, olha prazenteiramente para si e inclui o
mundo,
Perfeito e limpo sai previamente como jato dos genitais, e perfeito e limpo adere
ao útero,
A cabeça bem crescida, bem proporcionada e aprumada, e os intestinos e as
juntas bem proporcionados e aprumados.
A alma é sempre linda,
O universo está devidamente em ordem, tudo está no lugar certo,
O que chegou está em seu lugar e o que aguarda estará em seu lugar,
O crânio cingido espera, o sangue aguado ou apodrecido espera,
O filho do glutão ou do que tem doença venérea espera por longo
tempo, e o filho do bêbado espera por longo tempo também,
Aqueles que dormem, que viveram e morreram, esperam, os muito adiantados
avançarão em suas vezes, e os muito atrasados virão em suas
vezes,
O diverso não deve ser menos diverso, mas devem fluir e unir-se — eles
se unem agora.
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amor
desmedido, e o filho abraça o pai com amor desmedido,
Os cabelos brancos da mãe brilham no punho branco da filha,
A respiração do menino acompanha a respiração do homem, o amigo
é estreitado pelo amigo,
O acadêmico beija o professor e o professor beija o acadêmico, o
incorreto é feito correto,
O chamado do escravo se unifica ao chamado de seu mestre, e o mestre saúda o
escravo,
O condenado dá um passo fora da prisão, o insano se torna são, o
sofrimento das pessoas doentes é aliviado,
O suor e as febres cessam, a garganta que não estava saudável está
saudável, os pulmões do definhado se recuperam, a cabeça do pobre
estressado está livre,
As juntas do reumático se movimentam suavemente como costumavam ser, e mais
suaves do que nunca,
Asfixiantes passagens abertas, o paralisado se torna maleável,
Os inchados e os convulsionados e congestionados despertam em boas
condições,
Eles passam pelo revigoramento e pela química da noite e acordam.
Eu também vou além da noite,
Permaneço um momento longe de ti, ó noite, mas retorno a ti novamente e
te amo.
Por que deveria temer confiar-me a ti?
Não tenho medo, tenho sido bem conduzido por ti,
Amo o dia rico que corre, mas não abandono aquela com que me deito por tanto
tempo,
Não sei como vim de ti e não sei para onde irei contigo, mas sei que vim
bem e hei de ir bem.
Só estarei um tempo com a noite e levantar-me-ei bem cedo,
Viverei o dia devidamente, ó minha mãe, e devidamente retornarei para
ti.
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Deixai que juízes e criminosos sejam transpostos — deixai que os guardas
das prisões sejam presos — deixai que aqueles que eram prisioneiros recebam
as chaves;
Deixai que aqueles que desconfiam do nascimento e da morte liderem os demais.
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A mão fiel dos vivos não abandona a mão do moribundo,
Os lábios contraídos tocam de leve a testa do moribundo,
A respiração cessa, cessa o pulsar do coração,
O corpo se estira sobre a cama e os vivos observam-no,
Ele é palpável tal qual os vivos são palpáveis.
Os vivos observam o corpo com sua visão,
Mas um tipo diferente de vivo espreita sem visão e, curiosamente,observa o
corpo.
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diligências da Broadway, o cortejo quase todo formado por condutores.
O trote para o cemitério é constante, os sinos da morte tocam
oportunamente,
O portal é ultrapassado, o grupo pára ao lado da cova
recém-aberta, os vivos desmontam, o carro funéreo é aberto,
O caixão é retirado, descido e arrumado na cova, a chibata é
colocada sobre o caixão, a terra que está nas pás é
prontamente lançada sobre ele,
O montículo acima é aplainado com as enxadas — silêncio,
Um minuto — ninguém se move ou fala — está feito,
Ele é decentemente posto de lado — haverá algo mais?
Foi um bom camarada, desabrido, impulsivo, sua aparência não era
ruim,
Disposto a ajudar um amigo com sua vida e com sua morte, gostava de mulheres,
jogava, comia e bebia avidamente,
Sabia o que era ser endinheirado, no fim da vida ficou cada vez mais desalentado,
doente, dependeu de uma contribuição financeira para viver,
Morreu aos quarenta e um anos — e esse foi o seu funeral.
Dedo polegar estendido, dedo levantado, avental, capa, luvas, tirante, roupas
impermeáveis, açoite escolhido cuidadosamente,
Patrão, vigia, partida, cavalariço, alguém passeia contigo, tu
passeias com alguém, andadura, homem à frente e homem atrás,
Um dia bom de trabalho, um dia ruim de trabalho, animais de criação,
animais de pouca qualidade, o primeiro a sair, o último a sair, o retorno
à noite,
Pensar que tudo isso significa tanto para os outros condutores, e ele, ali,
não mais se interessa por isso tudo.
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Pensar que a diferença continuará para outros e, contudo, estamos
além da diferença.
Pensar em quanto prazer existe,
Estás satisfeito na cidade? Quando te envolves nos negócios? Ou
planejando uma candidatura e uma eleição? Ou com a tua esposa e tua
família?
Ou com tua mãe e teus irmãos? Ou com o trabalho doméstico das
mulheres? Ou com os lindos cuidados maternais?
Isso também flui adiante para os outros, tu e eu fluímos para
adiante,
Mas, no tempo certo, tu e eu teremos interesse menor em tudo isso.
Tua fazenda, lucros, plantações — pensar sobre como tua vida foi
passada a limpo,
Pensar que ainda haverá fazendas, lucros, plantações e, contudo,
que utilidade terão para ti?
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Tu estás, doravante, seguro, não importa o que aconteça.
As fibras que foram entrelaçadas estão unidas, a urdidura cruza o tecido,
o padrão é sistemático.
Todas as preparações foram justificadas,
A orquestra tem seus instrumentos suficientemente configurados, o bastão
já deu o sinal.
O convidado que estava vindo esperou por bastante tempo e está agora
alojado,
Ele está cheio de beleza e feliz, olhar para ele e estar ao seu lado é
suficiente.
A lei do passado não pode ser burlada,
A lei do presente e do futuro não pode ser burlada,
A lei dos vivos não pode ser burlada, ela é eterna,
A lei da promoção e da transformação não pode ser
burlada,
A lei dos heróis e dos benfeitores não pode ser burlada,
A lei dos bêbados, informantes, pessoas más, nenhum único til disso
pode ser burlado.
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Dessas e nessas coisas todas,
Sonhei que não devemos mudar tanto, e nem as leis que nos regem devem
mudar,
Sonhei que heróis e benfeitores hão de estar sob os auspícios das
leis do presente e do passado,
E que os assassinos, bêbados, mentirosos hão de estar sob a lei do
presente e do passado,
Pois sonhei que a lei sob a qual eles estão agora é suficiente.
E sonhei que o propósito e a essência da vida conhecida, a vida
transitória,
É formar e decidir a identidade para a vida desconhecida, a vida
permanente.
Se tudo termina apenas em cinzas e estrume,
Se os vermes e ratazanas dão cabo de nós, então Alarme! Pois fomos
traídos,
Então, de fato, a morte está sob suspeição.
Suspeitas da morte? Se eu suspeitasse da morte eu deveria morrer agora mesmo,
Pensas que eu poderia andar prazenteiramente e bem vestido na direção
do aniquilamento?
Prazenteiramente e bem vestido ando,
Em que rumo caminho não posso definir, mas sei que é bom,
O universo inteiro indica que o destino é bom,
O passado e o presente indicam que o destino é bom.
Quão maravilhosos e perfeitos são os animais!
Quão perfeita é a terra e as coisas instantâneas que há sobre
ela!
O que é chamado de bom é perfeito, e o que é chamado de ruim
é igualmente perfeito,
Os vegetais e minerais são todos perfeitos, e os fluidos imponderáveis
são perfeitos;
Vagarosamente e com certeza eles passaram a esse estado, e vagarosamente e com
certeza eles ainda passarão.
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As árvores têm, enraizadas no solo! As ervas do mar têm! Os
animais!
Juro que penso que não há nada que não seja a imortalidade!
Que o esquema primoroso é para ela, e a deriva nebulosa é para ela, e a
adesão é para ela!
E toda a preparação é para ela — e a identidade é para
ela — e a vida e a matéria são juntas para ela!
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Passos gentis que sobem, brisas místicas que adejam suaves e baixas,
Ondulações de rios invisíveis, marés de uma corrente fluindo,
para sempre fluindo,
(Ou será esse o som das lágrimas ao cair? As águas imensuráveis
das lágrimas humanas?)
Vejo, apenas vejo na direção do céu, grandes massas de nuvens,
Com tristeza e devagar elas rolam, silenciosamente inflam e se misturam,
E, às vezes, na distância algumas estrelas meio escuras e
entristecidas,
Aparecem e desaparecem.
(Algum parto, certamente, algum nascimento solene de imortalidade;
Nas fronteiras, impenetráveis aos olhos,
Alguma alma está fazendo a passagem.)
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Permanente, aqui do meu lado, guerreiro, igual a qualquer um, real como qualquer
um,
Nem o tempo nem as mudanças hão de me transformar ou transformar minhas
palavras.
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E se os memoriais dos mortos fossem colocados indiferentemente, em toda parte, mesmo
na sala em que como ou no quarto em que durmo, eu me sentiria satisfeito,
E se o corpo de alguém que amo, ou se meu próprio corpo se transformar
oportunamente em pó e for derramado no mar, sentir-me-ei satisfeito,
Ou se for distribuído aos ventos, sentir-me-ei satisfeito.
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Quando me encostei e olhei através da luz brilhante, ele desapareceu
inteiramente,
E aparecerem em seu lugar aqueles que me odeiam e que escarnecem de mim.
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Passo adiante (Ó vivendo! Sempre vivendo!) e deixo os corpos para trás.
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Que abundante! Que espiritual! Que sumário!
O mesmo velho homem e alma — as mesmas velhas aspirações e a mesma
satisfação.
Eu pensava no mais esplêndido dos dias até ver o que o não-dia
exibiu,
Eu pensava que este orbe era o bastante, até que miríades de outros orbes
arremessaram-se tão silenciosamente em minha volta.
Agora, quando os grandes pensamentos de espaço e eternidade me preenchem, hei de
avaliar-me por eles,
E agora, tocado pelos que vivem em outros orbes, que nasceram tão longe quanto
aqueles que vivem na Terra,
Ou aqueles que esperam para nascer, ou ainda os que foram para além daqueles que
são da Terra,
De agora em diante, não os ignoro mais do que ignoro a minha própria
vida,
Ou as vidas da Terra que nasceram tão longe quanto eu, ou os que esperam para
nascer.
Vejo agora que a vida não pode revelar-me tudo, tal qual o dia não o
pode,
Vejo que tenho de aguardar aquilo que será revelado pela morte.
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Naufragando ali, enquanto o fluxo da água impassível continua — e agora
refletindo: será que aquelas mulheres se foram de fato?
Então as almas se afogam e são destruídas?
Apenas a matéria triunfa?
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E para a tua sensibilidade, refrãos sensíveis, Mãe aterradora,
Prelúdios do intelecto elevando esses e tu, fórmulas mentais apropriadas
a ti, reais e saudáveis e grandes como esses e tu,
Tu, ascendendo mais alto, mergulhando mais fundo do que sabíamos, tu,
União transcendental!
Por ti o fato que será justificado, fundido com o pensamento,
Pensamento de homem justificado, fundido com o de Deus,
Através de tua idéia, vê, a realidade imortal!
Através de tua realidade, vê, a idéia imortal!
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Não abraçaste somente a tua aventura, não apenas a do continente do
Oeste,
O currículo da Terra inteira flutua sobre a tua quilha, ó navio, e é
afiançado em teu mastro,
A ti foram confiados os viajantes do Tempo, as nações antecedentes afundam
ou nadam contigo,
Com todas as suas lutas antigas, mártires, heróis, épicos, guerras, tu
sustentas os outros continentes,
O que é deles, o que é deles é igualmente teu, o triunfante porto da
destinação;
Guia, então, com mão boa e forte e com olho cauteloso, ó timoneiro,
pois levas grandes companheiros,
A venerável Ásia sacerdotal navega hoje contigo,
E a real Europa feudal navega contigo.
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Vejo tua luz iluminando e tua sombra sombreando como se fosse abarcar o globo
inteiro,
Mas não me encarrego de definir-te, mal posso compreender-te,
Digo apenas teu nome, tua profecia, como agora,
Apenas profiro-te!
Tu, em teu futuro,
Tu, em tua única vida permanente, carreira, tua própria mente solta, teu
espírito elevado,
Tu, como um outro sol, igualmente necessário, radiante, ardente, movendo-se
prontamente, frutificando tudo,
Tu, erguendo-te em potente vibração e alegria, em grande hilaridade sem
fim,
Espalhando permanentemente a nuvem parada no céu por tanto tempo, que pesou por
tanto tempo sobre a mente do homem,
A dúvida, a suspeita, o horror, de uma gradual, de uma certa decadência do
homem;
Tu, em tua maior, mais saudável geração de fêmeas, machos —
tu, em teus atletas, moral, espiritual, Sul, Norte, Oeste, Leste,
(Para os teus seios imortais, Mãe de Todos, todas as tuas filhas, filhos,
acarinhados do mesmo modo, para sempre iguais),
Tu, em teus próprios músicos, cantores, artistas, ainda não nascidos,
mas certos,
Tu, em tua riqueza moral e civilização (até que ela venha, tua mais
orgulhosa civilização deve permanecer em vão),
Tu, em teu suprimento geral, em teu culto que a todos inclui — tu, que não
te fechas em uma única bíblia, em um único salvador, meramente,
Teus salvadores sem conta, latentes em ti, tuas bíblias incessantes dentro de
ti, iguais a quaisquer outros, divinos como quaisquer outros,
(Tu, formulando teu caminho elevado, não em tuas duas grandes guerras, nem em
teu século de crescimento visível,
Mas muito mais nestas folhas e cantos, teus cantos, grande Mãe!)
Tu, em uma educação desenvolvida em ti, em professores, estudos,
estudantes, nascidos de ti,
Tu, em tuas democráticas fêtes en-masse, teus festivais altamente
originais, óperas, palestras, pregadores,
Tu, em teus acabamentos (as preparações somente agora concluídas, o
edifício atado em sólidas fundações),
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Tu, em teus pináculos, intelecto, pensamento, teus prazeres racionais mais
elevados, teu amor e tua aspiração divina,
Em tua vinda literária resplendente, teus oradores de pulmão cheio, teus
bardos sacerdotais, teus cósmicos menestréis,
Estes! Estes em ti (certos para vir), hoje profetizo.
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Cada uma delas há de se erguer e passar e cessar, saindo de ti,
Enquanto tu hás de girar na espiral do Tempo, saindo de ti mesma,
libertando-te, fundindo-te.
Igualitária, natural, tua mística União (misturando o mortal ao
imortal),
Há de pairar rumo à realização do futuro, o espírito do
corpo e a mente,
A alma, seus destinos,
A alma, seus destinos, o real que é real,
(O sentido de todas essas aparições do real)
Em ti, América, a alma, seus destinos,
Teu globo dos globos! Tua maravilha nebulosa!
Por muitas agonias que atravessaste, convulsões de aquecimento e resfriamento
(por meio dessas, tu te solidificando),
Teu orbe mental, moral — teu Novo, de fato novo, Mundo Espiritual!
O Presente não te contém — pois tão vasto é o teu
crescimento,
Tão incomparável é teu vôo, tal geração é a
tua,
Que apenas o FUTURO pode conter-te.
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Sobre todo o globo que volta a sua face para ti, que brilhas no espaço,
Tu, que imparcialmente a tudo envolves, não apenas continentes e mares,
Tu, que para uvas e ervas e pequenas flores selvagens concedeste com tamanha
liberalidade,
Derrama, derrama-te no que é meu e em mim, com apenas um efêmero raio de
teus milhões de milhões,
Ataca através destes cantos.
Não lances apenas teu sutil deslumbramento e tua força para esses,
Prepara o final da tarde de mim mesmo — prepara minhas sombras de longo
alcance,
Prepara minhas noites estreladas.
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Vejo o vosso fluxo circular nunca apagado,
Vejo por baixo de vossas desfigurações e disfarces de maldade.
Desdobrai-vos e deformai-vos como quiserdes, cutucai com enredadas partes
dianteiras de peixes ou de ratos,
Sereis libertas de vossas focinheiras, certamente sereis.
Eu vi a face do néscio mais difamado e babão que mantinham no
asilo,
E sabia, para minha consolação, o que eles não sabiam,
Eu sabia dos agentes que esvaziaram e quebraram meu irmão,
Os mesmos que esperaram para limpar o lixo da moradia derrubada,
E eu hei de olhar novamente de tempos em tempos,
Hei de encontrar o verdadeiro proprietário perfeito e intocado, tão bom
quanto eu mesmo em cada polegada.
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Esta é a face de um lírio inteiramente amadurecido,
Ela fala ao homem de quadril flexível, próximo aos piquetes do
jardim,
Vem cá, ela grita ruborizadamente, aproxima-te de mim, homem de quadril eu possa,
Enche-me com mel esbranquiçado; inclina-te para mim,
Coça para mim a tua barba irritada, coça o meu peito e meus
ombros.
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Cavaleiros armados avançam para reparar seus erros, alguns em busca do sagrado
Graal;
Vejo o torneio, vejo os concorrentes vestindo pesadas armaduras em faustosos
cavalos mordentes,
Ouço os gritos, os sons das pancadas e dos golpes de aço,
Vejo os exércitos tumultuosos dos Cruzados — ouve o tinir dos
címbalos,
Vê o lugar em que os monges passam antes da partida, sustentando, no alto, a
cruz.
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Não apenas a guerra — tua canção temerosa, selvagem artista,
traz todas as visões do medo,
Os feitos de salteadores cruéis, rapinagem, assassinato — ouço os
gritos pedindo ajuda!
Vejo navios afundando no mar, observo no convés e abaixo do convés os
terríveis quadros vivos.
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Guerra, tristeza, sofrimento terminados — a exuberante terra purgada —
nada resta, exceto a alegria!
O oceano cheio de alegria — a atmosfera toda de alegria!
Alegria! Alegria! Em liberdade, adoração, amor! Alegria no êxtase da
vida!
Ser, meramente, é o bastante! Respirar é o bastante!
Alegria! Alegria! Por toda parte a alegria!
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Tua risada feita de um assobio louco, ecoando, roncando como um terremoto, a todos
inflamando,
Lei completa de ti mesma, em teus próprios trilhos firmemente agarrada,
(Tua não é a doçura cortês da harpa que faz chorar ou do piano
lisonjeiro)
As vibrações de teus guinchos devolvidas pelas rochas e montanhas,
Lançadas sobre as amplas pradarias, através dos lagos,
Fechada para os livres céus e alegre e forte.
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O odor dos pinheiros e a escuridão, a terrível quietude natural (aqui, nesses
brejos densos, o pirata carrega a sua arma, e o fugitivo tem a sua cabana
escondida);
Ó estranha fascinação desses mal conhecidos e quase intransitáveis
brejos, infestados de répteis, onde ressoam os urros dos jacarés, os sons
tristes da coruja noturna e do felino
selvagem, e o sibilo da cascavel,
O pássaro-das-cem-línguas, o mímico americano, cantando a manhã
inteira, cantando através da noite enluarada,
O beija-flor, o peru selvagem, o guaxinim, o gambá,
Um campo de milho do Kentucky, o alto, gracioso, milho bem maturado, magro, agitado,
verde brilhante, com borlas, com lindas espigas embainhadas em suas cascas;
Ó meu coração! Ó dores suaves e penetrantes, não posso
suportá-las, partirei;
Ó ser proveniente da Virgínia, o lugar onde cresci! Ó ser da
Carolina!
Ó vontades irrepreensíveis! Ó retornarei para o velho Tennessee e nunca
mais peregrinarei.
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barcaças, as
balsas, os negros barcos marítimos a vapor, bem modelados,
As ruas do centro da cidade, as casas de negócio dos assalariados, as casas de
negócio dos vendedores de navio e os corretores financeiros e as ruas
fluviais,
Imigrantes chegando, quinze mil ou vinte mil em uma semana,
As carretas rebocando bens, a raça masculina dos condutores de cavalos, os
marinheiros de rosto bronzeado,
O ar de verão, o sol radiante brilhando e as nuvens navegando no alto,
As neves do inverno, as cascavéis, o gelo quebrado no rio, passando em toda a
extensão para cima e para baixo com a maré cheia e a maré vazante,
Os mecânicos da cidade, os mestres, bem formados, de lindos rostos, olhando
diretamente nos olhos,
Trotadouros abarrotados, veículos, Broadway, as mulheres, as lojas e os
espetáculos,
Um milhão de pessoas — de modos livres e soberbos — vozes abertas
— hospitalidade — os jovens mais corajosos e amistosos,
Cidade de águas correntes e cintilantes! Cidade de postes e pontas!
Cidade aninhada em baías! Minha cidade!
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Onde falhou um retorno perfeito, indiferente a mentiras ou à verdade?
Está sobre o solo ou na água ou no fogo? Ou no espírito do homem? Ou
na carne e no sangue?
Meditando entre mentirosos e retirando-me asperamente para o centro de mim mesmo,
vejo que de fato não há mentirosos nem mentiras afinal,
E que nada falha ao seu perfeito retorno, e aquilo que se conhece por mentiras
são retornos perfeitos,
E cada coisa representa exatamente a si mesma e aquilo que a aperfeiçoou,
E que a verdade inclui tudo e é sólida tanto quanto o espaço é
sólido,
E que não há falha ou vácuo no montante da verdade — mas que
tudo é verdade, sem exceção;
E doravante celebrarei qualquer coisa que vejo ou sou,
E cantarei e sorrirei e nada negarei.
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Acompanhante das ruas mais ocupadas, através da assembléia,
Isso e suas radiações planam constantemente.
No olhar de belos bebês inconscientes,
Ou, estranhamente, nos mortos postos em caixões,
Nos espetáculos de demolição ou nas estrelas à noite,
Como um filme de sonhos, dissolvente e delicado,
Escondendo-se e, contudo, atrasando.
Incluem-no dois pequenos sopros de palavra,
Duas palavras, todavia, tudo o que há do início ao fim, nelas
incluído.
Quão ardentemente procurado!
Quantos navios navegaram e naufragaram por ele!
Quantos viajantes saíram de suas casas e jamais retornaram!
Quanto gênio ousadamente arriscado e perdido por ele!
Que incontáveis estoques de beleza, amor, aventurados por ele!
E quanto de todos os mais soberbos feitos, desde o início dos Tempos, podem ser
atribuídos a ele — e continuarão a ser até o fim!
O quanto todos os heróicos martírios deram-se por ele!
De que modo se justificam por ele os horrores, os males, as batalhas da terra!
De que modo as chamas brilhantes, fascinantes e ligeiras dele têm atraído
os olhos dos homens, em todos as idades e em todas as terras.
Rico como o crepúsculo na costa norueguesa, o céu, as ilhas e os
penhascos,
Ou as luzes da meia-noite, silenciosas, cintilantes, setentrionais,
inacessíveis.
Por acaso Deus cria o enigma, tão vago e entretanto tão exato,
A alma por ele, e todo o universo visível por ele,
E, finalmente, o céu por ele.
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E quem tem sido mais feliz? Ó julgo que sou eu — penso que ninguém
jamais foi mais feliz do que eu,
E quem a tudo esbanjou? Pois esbanjo constantemente o melhor do que tenho,
E quem é mais orgulhoso? Pois penso que tenho razões para ser o filho vivo
mais orgulhoso — pois sou o filho da vigorosa cidade de telhados altos,
E quem tem sido ousado e verdadeiro? Pois eu seria o ser mais ousado e verdadeiro do
universo,
E quem é benevolente? Pois eu demonstraria maior benevolência que os
demais,
E quem tem recebido o amor do maior número de amigos? Pois eu sei o que é
receber o amor apaixonado de muitos amigos,
E quem possui um corpo perfeito e enamorado? Pois não acredito que alguém
possua um corpo mais perfeito e enamorado do que o meu,
E quem pensa os pensamentos mais amplos? Pois eu cercaria aqueles pensamentos,
E quem compôs hinos adequados para a terra? Pois eu estou louco de um êxtase
devorador para compor os hinos mais alegres para a terra inteira.
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Ele ainda há de se erguer como o soldado da última vitória.
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para poemas —
hão de vir de suas vidas, hão de ser realizadores e descobridores,
Deles e de suas obras devem emergir divinos transmissores, para transmitir
evangelhos,
Personagens, eventos e retrospectos hão de ser transmitidos nos evangelhos,
árvores, animais, águas, hão de ser transmitidos,
Mortes, o futuro e a fé invisível hão de ser transmitidos.
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Nem penses que te esquecemos, maternal;
Encoberta que estiveste por tanto tempo? Será que as nuvens hão de se fechar
sobre ti outra vez?
Ah, mas tu te mostraste para nós — conhecemo-te,
Tu nos deste uma prova certeira, um lampejo de ti,
Tu esperaste aí como todos os lugares de teu tempo.
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As companhias da cavalaria lutando até o fim em heroísmo
implacável,
No centro do pequeno círculo, usando seus cavalos chacinados como parapeito,
A queda de Custer e de todos os seus oficiais e soldados.
Continua ainda a velha, velha lenda de nossa raça,
O mais elevado da vida sustentado pela morte,
O antigo estandarte perfeitamente mantido,
Ó lição oportuna, ó como te acolho com prazer!
Quando sentado em dias escuros,
Deprimido, aborrecido, através da densidade e da escuridão do tempo, em
vão procurando pela luz e pela esperança,
De lugares insuspeitos, uma experiência ameaçadora e momentânea,
(O sol lá no centro, embora escondido,
A vida elétrica para sempre no centro.)
Irrompe a luz de um raio.
Tu, de graciosos cabelos fulvos em batalha,
Vi por um momento, com cabeça ereta, empurrando sempre adiante, suportando uma
brilhante espada nas mãos,
Agora culminando na morte a esplêndida febre de teus feitos,
(Não trago hino fúnebre para eles ou para ti, trago um alegre soneto
triunfal),
Desesperado e glorioso, sim, na derrota o mais desesperado e o mais glorioso,
Depois de muitas batalhas, nas quais nunca rendeste uma arma ou uma cor,
Deixando para trás de ti uma doce memória aos soldados,
Tu te rendeste.
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Eu sonho, sonho,
sonho.
Das cenas da Natureza, campos e montanhas,
Dos céus tão cheios de beleza após a tempestade, à noite, a lua
tão espectralmente brilhante,
Brilhando docemente, brilhando sobre o chão, onde cavamos as trincheiras e
acumulamos os montes de terra,
Eu sonho, sonho, sonho.
Há muito, tudo isso passou, faces e trincheiras e campos,
Através da carnificina movi-me com uma serenidade calosa, ou para longe dos
caídos,
Para frente corri naquele tempo — mas, agora, com suas formas à noite,
Eu sonho, sonho, sonho.
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Ó tu, o homem que a Europa feudal festejou, em torno de quem a venerável
Ásia reuniu-se,
Aquele que andou com reis, a passo firme, na caminhada circular pelo mundo;
Mas em terras estrangeiras, as tuas caminhadas com reis —
Aquelas pradarias soberanas do Oeste, Kansas, Missouri, Illinois,
Com milhões de Ohio, de Indiana, companheiros, agricultores, soldados, todos do
front,
Anonimamente contigo, andando com os reis, a passo firme, na caminhada circular pelo
mundo —,
Foram todas justificadas.
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Agora andas vigorosamente, contudo talvez na direção de guerras mais
densas, quando a hora chegar,
Talvez para te engajares na hora certa em rivalidades ainda mais terríveis, em
perigos,
Em campanhas mais longas e crises, em trabalhos mais difíceis que todos os
demais.)
Em minha volta, ouço aquela notoriedade do mundo, política,
produção,
Os anúncios das coisas reconhecidas, a ciência,
O incentivado crescimento das cidades e a disseminação dos inventos.
Vejo os navios (eles durarão alguns anos),
As grandes fábricas com seus capatazes e empregados,
E ouço a aprovação a tudo isso, e a isso não me oponho.
Mas também anuncio coisas sólidas,
Ciência, navios, política, cidades, fábricas não são
nulos,
Como uma grande procissão musical, com o som que se derrama das cornetas ao
longe, movendo-se em triunfo, e erguendo-se a uma visão maior,
Elas representam as realidades — tudo está como deveria ser.
Então, minhas realidades;
O que será tão real quanto o que é meu?
Liberdade e a média divina, libertação para todos os escravos na face
da terra,
As promessas arrebatadoras e a iluminação dos videntes, o mundo espiritual,
as canções duradouras deste século,
E nossas visões, as visões dos poetas, o anúncio mais sólido que
quaisquer outros.
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Vejo a Liberdade, completamente armada e vitoriosa e muito orgulhosa, tendo a Lei de
um lado e a Paz do outro,
Um trio estupendo tudo produzindo adiante contra a idéia da casta;
Que históricos desenredos são esses dos quais tão rapidamente nos
aproximamos?
Vejo homens marchando e contramarchando com rapidez, aos milhões,
Vejo rompidas as fronteiras e os limites das velhas aristocracias,
Vejo removidos os marcos divisórios dos reis europeus,
Vejo, neste dia, o povo elaborando o seu marco divisório (todos os demais se
desfazem);
Nunca questões tão agudas foram levantadas como neste dia,
Nunca foi o homem comum, sua alma, mais enérgico, mais como um Deus,
Vê, como ele se apressa e se apressa, sem permitir que as massas descansem!
Seu pé audaz está em toda parte da terra e do mar, ele coloniza o
Pacífico, os arquipélagos,
Com o navio a vapor, com o telégrafo elétrico, o jornal, os motores de
guerra em quantidade,
Com isso e com a disseminação das fábricas pelo mundo, ele interliga
toda a geografia, conecta todas as terras;
Que sussurros são esses, ó terras, correndo adiante de vós, passando
no fundo dos mares?
Estão todas as nações comungando? Haverá um único
coração no globo?
Está a humanidade se organizando em massa? Pois vê! — tiranos tremem,
coroas empalidecem,
A terra, descansando, confronta uma nova era, talvez uma guerra divina geral,
Ninguém sabe o que virá a seguir, tais são as potências que
enchem os dias e as noites;
Anos proféticos! O espaço adiante em que me movo, quando tento em vão
penetrá-lo, ele está cheio de fantasmas,
Feitos não nascidos, coisas que em breve serão, projetam sua sombra em
minha volta,
Essa correria e esse calor incríveis, essa estranha e extática febre de
sonhos, ó anos!
Teus sonhos, ó anos, como eles penetram através de mim! (Não sei se
durmo ou se estou desperto);
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A América e a Europa já realizadas empalidecem, retirando-se nas sombras
atrás de mim,
As não realizadas, mais gigantescas do que nunca, avançam, avançam
sobre mim.
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Os mortos reanimados e reavivados, a poeira e os escombros revividos,
Eu canto este canto de minha alma silenciosa em nome de todos os soldados
mortos.
Rostos tão pálidos com olhos maravilhosos e muito queridos, chegai-vos
mais perto,
Aproximai-vos, mas não faleis.
Fantasmas de perdidos incontáveis,
Invisíveis aos demais, doravante transformai-vos em meus companheiros,
Segui-me sempre — não me abandoneis enquanto eu estiver vivo.
Doces são as bochechas florescentes dos vivos — doces são as vozes
musicais soando,
Mas doces, ah! doces são os mortos com seus olhos silentes.
Queridíssimos companheiros, tudo terminou há muito,
Mas o amor não terminou — e que amor, ó companheiros!
Perfume dos campos de batalha erguendo-se, desprendendo-se do fedor.
Perfumai, portanto, o meu canto, ó amor, amor imortal,
Dai-me, para que eu me banhe nelas, as lembranças de todos os soldados
mortos,
Vesti-os com uma mortalha, embalsamai-os, revesti-os completamente com um orgulho
suave.
A todos perfumai — fazei-os inteiros,
Fazei com que essas cinzas sejam nutridas e floresçam,
Ó amor, a todos dissolvei, fazei com que todos frutifiquem com a química
mais apurada.
Concedei-me a incansabilidade, fazei de mim uma fonte,
Fazei com que eu exale o amor de mim mesmo, onde quer que eu vá, como um
orvalho perene,
Pelas cinzas de todos os soldados mortos do Sul ou do Norte.
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Olhos de minha alma enxergando a perfeição,
Vida natural de mim louvando fielmente as coisas,
Corroborando para sempre para o triunfo das coisas.
Ilustres são todos!
Ilustre é aquilo que denominamos espaço, esfera de espíritos
incontáveis,
Ilustre o mistério da locomoção em todos os seres, mesmo no mais
minúsculo inseto,
Ilustre é o atributo da fala, os sentidos, o corpo,
Ilustre é a luz que passa — ilustre o reflexo pálido sobre a lua
nova no céu do oeste,
Ilustre é tudo o que vejo ou ouço ou toco, até o último.
O bom está em tudo,
Na satisfação e no autodomínio dos animais,
No retorno anual das estações,
No júbilo da juventude,
Na força e no ardor da virilidade,
Na grandiosidade e na delicadeza da idade senil,
Nas soberbas visões da morte.
Maravilhoso é partir!
Maravilhoso é estar aqui!
O coração injeta o sangue homogêneo e inocente!
Respirar o ar, que delicioso!
Falar — andar — capturar algo com as mãos!
Preparar-se para dormir, ir para a cama, olhar para a minha carne de
coloração rosada!
Estar consciente de meu corpo, tão satisfeito, tão grande!
Ser este incrível Deus que sou!
Ter ido adiante entre outros Deuses, esses homens e mulheres que amo.
Maravilhosa a forma como te celebro e celebro a mim mesmo!
De como meus pensamentos fazem parte sutil dos espetáculos em torno!
De como as nuvens passam acima de nossas cabeças silenciosamente!
De como a terra se lança mais e mais! E de como o sol, a lua, as estrelas se
lançam mais e mais!
De como a água canta e brinca! (certamente ela está viva!)
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De como as árvores se levantam e ficam de pé, com troncos fortes, com
galhos e folhas!
(Certamente há um "algo mais" em cada uma das árvores, alguma alma
vivente.)
Espanto das coisas — até mesmo da menor das partículas!
Ó espiritualidade das coisas!
Ó força musical fluindo pelas idades e continentes, agora me
alcançando na América!
Eu tomo as tuas cordas fortes, tranço-as e passo-as à frente com grande
vibração.
Eu também cantarolo o sol, atrasado ou ao meio-dia, ou como agora,
pondo-se,
Eu também pulso com a inteligência e a beleza da terra e com tudo o que
cresce na terra,
Eu também senti o irresistível chamado de mim mesmo.
Quando desci o Mississippi num barco a vapor,
Quando devaneei pelos prados,
Quando vivi, quando olhei através das janelas de meus olhos,
Quando avancei na manhã, na hora em que contemplei a luz surgindo do
Leste,
Quando me banhei na praia do Mar do Leste, e mais uma vez na praia do Mar do
Oeste,
Quando vaguei pelas ruas do interior de Chicago, quaisquer qu sejam as ruas pelas
quais eu tenha vagado,
Ou cidades ou florestas silenciosas, ou mesmo em meio aos sítios de
guerra,
Onde quer que eu tenha estado, encarreguei-me de satisfação e
triunfo.
Canto o paroxismo das igualdades modernas ou antigas,
Canto os finalés infinitos das coisas,
Digo que a Natureza continua, que a glória continua,
Louvo com elétrica voz,
Pois não vejo uma única imperfeição no universo,
E ao final não vejo uma causa ou efeito lamentável no universo.
Ó sol que se põe! Embora o tempo tenha chegado,
Ainda canto sob ti, se ninguém mais o faz, nessa adoração
irrestrita.
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Com os pés doloridos e o cansaço, logo que a luz do dia diminui, paramos
para a noite,
Alguns de nós tão fatigados, carregando a arma e a mochila, caem para
dormir em nossas trilhas,
Outros armam as pequenas tendas, e os fogos acesos começam a lançar
faíscas,
Paliçadas em postos avançados estabelecidas para alertar em meio à
escuridão,
E uma palavra fornecida para a senha, cuidado ou segurança,
Até o toque alto dos tambores na alvorada,
Levantamo-nos renovados, passados pela noite e pelo sono, e retomamos nossa
jornada,
Ou nos encaminhamos para a batalha.
Repara, os acampamentos das tendas verdes,
Que os dias de paz vão preenchendo e os dias de guerra vão
preenchendo,
Com um exército místico (é ele também ordenado a avançar?
Está ele também parado apenas por um momento,
Até que a noite e o sono passem?)
Agora, naqueles acampamentos verdes, naquelas tendas que pintam o mundo,
Os pais, os filhos, os maridos, as esposas, nelas, os velhos e os jovens,
Dormindo sob a luz do sol, dormindo sob a luz da lua, satisfeitos e silenciosos
ali, afinal,
Observa o poderoso campo de bivaque e acampamento de espera de todos,
De todas as corporações e generais, e o Presidente sobre as
corporações e todos os generais,
E de cada um de nós, ó soldados, e de cada um e de todos nas fileiras em
que lutamos,
(Ali, todos nós, sem ódio, encontramo-nos).
Pois atualmente, ó soldados, nós também acampamos em nosso lugar no
acampamento verde de bivaque,
Mas não precisamos de paliçadas em postos avançados, nem de uma
palavra como senha,
Nem daqueles que tocam os tambores para anunciar a manhã.
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O tempo longo, longo, de ancoragem deixamos,
Enfim, o navio está vazio, ele salta!
Prontamente se afasta do litoral,
Alegria, colega de bordo, alegria!
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Anuncio uma vida que há de ser copiosa, veemente, espiritual, ousada,
Anuncio um fim que há de encontrar com leveza e alegria a sua
tradução.
Anuncio miríades de jovens, cheios de beleza, gigantescos, de sangue doce,
Anuncio uma raça de esplêndidos e selvagens homens velhos.
Ó mais densos e mais rápidos — (Até
breve!)
Ó aglomerando-se perto demais sobre mim,
Prevejo algo demasiado, algo que significa mais do que eu imaginava,
Parece-me que estou morrendo.
Apressa-te, garganta, e soa o que está no fim,
Saúda-me — saúda os dias uma vez mais. Faz ressoar o velho brado
uma vez mais.
Gritando com eletricidade, usando a atmosfera,
Lançando olhares a esmo, absorvendo tudo o que noto,
Continuo prontamente, mas desço por um momento,
Entregando curiosas mensagens embrulhadas,
Quentes faíscas, sementes etéreas que caem na poeira.
Eu mesmo sem conhecê-las, obedecendo minha missão, sem jamais ousar
questioná-la,
Para as eras e eras futuras, contudo, o desenvolvimento das sementes deixando,
Erguendo-me para as tropas retiradas da guerra, promulgando para eles as tarefas
que tenho,
Para as mulheres legando certos sussurros de mim, suas afeições por mim
mais claramente explicando,
Para rapazes meus problemas oferecendo — eu sem brincadeiras — testando
os músculos de seus cérebros,
Então passo, vocal por algum tempo, visível, contrário,
Mais tarde um eco melodioso, para ele me curvando apaixonadamente (a morte
fazendo-me realmente imorredouro),
O melhor de mim então, quando não mais visível, no rumo daquilo para
o que venho me preparando sem cessar.
E o que há mais, a não ser o fato de que demoro e paro e faço
reverência e me estendo com a boca não fechada?
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Haverá um singelo adeus final?
Cessam minhas canções, eu as abandono,
Por detrás da tela onde me escondo, avanço pessoalmente apenas para
ti.
Companheiro, este não é um livro,
Aquele que toca isto toca um homem,
(Será noite? Estamos juntos aqui, sozinhos?)
Eu sou aquele que abraças e aquele que te abraça,
Eu salto destas páginas para dentro de teus braços — a morte me
chama.
Ó como teus dedos me entorpecem,
Tua respiração cai em torno de mim, tal como o orvalho, teu pulso embala
os tímpanos de meus ouvidos,
Sinto-me imerso da cabeça aos pés,
É delicioso, basta.
Basta, ó feito improvisado e secreto,
Basta, ó presente deslizante — basta, ó passado resumido.
Querido amigo, quem quer que sejas, leva este beijo,
Dou-o especialmente a ti, não me esqueças,
Sinto-me como aquele que realizou o seu trabalho durante o dia e que se retira por
um tempo,
Recebo agora novamente de minhas muitas interpretações, de meus avatares
ascendendo, enquanto outros sem dúvida esperam por mim,
Uma esfera desconhecida mais real do que a que sonhei, mais direta, lança
raios despertadores sobre mim, Até breve!
Lembra-te de minhas palavras, posso novamente retornar,
Amo-te, deixo a materialidade,
Sou eu um desencarnado, triunfante, morto.
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Apático, tal qual um papagaio velho, cantando com voz de taquara rachada,
guinchando?
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Perenes com a Terra, com a Liberdade, com a Lei e com o Amor,
Uma grande, saudável, elevada, Mãe estabelecida,
Assentada sobre o diamante do Tempo.
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Outra vez, pela manhã — uma pesada neblina em disputa com o amanhecer,
Outra vez a nau estremecida e lutadora desvia-se de mim — eu avanço
através das rochas batidas pela espuma que quase me tocam,
Outra vez registro o lugar em que na popa o pequeno e magro timoneiro indiano
Aparece em meio à bruma, com rosto elevado e mão dominadora.
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Por longo tempo ela se sustenta nas alturas, com largo seio mais intumescendo,
Todas as palpitações, dilatações — as fazendas, as
florestas, as ruas das cidades — operários no trabalho,
Velas mestras, gáveas, lanças de guindaste, aparecem em alto mar —
estandartes de fumaça dos navios a vapor — debaixo do sol matinal,
Carregada de vidas humanas, garbosamente amarrada para fora, garbosamente amarrada
para dentro,
Ostentada em muitos mastros, a bandeira que amo.
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Tuas tropas de cavalos de corrida de crina branca correndo para a meta,
Tua face ampla, sorridente, atingida por pequenos raios faiscantes do sol,
Tuas crias carrancudas e escuras — teus frouxos furacões,
Tua postura indomável, caprichos, voluntariedade;
Grande como a tua arte que está acima do resto, tuas muitas lágrimas —
uma escassez de toda a eternidade em tua satisfação,
(Nada além dos maiores esforços, erros, derrotas, poderia fazer-te o maior
— nem menor poderia fazer-te)
Teu estado solitário — algo que sempre procuraste e procuraste, sem contudo
jamais ganhar,
Com certeza algum direito retido — alguma voz, em imensa fúria
monótona, de amante da liberdade enclausurado,
Algum coração vasto, como o de um planeta, acorrentado e esfolado naqueles
quebradores,
Inchado no comprimento, com espasmo e respiração ofegante,
E a raspagem rítmica de tuas areias e ondas,
E o sibilo da serpente, e os selvagens repiques de risada,
E as meias-vozes do rugido dos leões ao longe,
(Soando, apelando ao ouvido surdo do céu — mas, agora, harmonia uma vez,
Um fantasma na noite é teu confidente uma vez),
A primeira e a última confissão do globo,
Surgindo, murmurando do abismo de tua alma,
A história de uma paixão cósmica elemental,
Que contaste à tua alma afim.
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Homem de dias poderosos — e igual aos dias!
Para ti das pradarias! — dura tem sido a tua parte, emaranhada e
íngreme,
Para a admiração tem ela sido encenada!
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Coração e braço indômito — demonstrações da linha
jamais rompida,
Igual coragem, prontidão, paciência, fé — e mesmo na derrota
não se dá por derrotado)
Onde houver um navio, ou casa construída na terra, ou dia ou noite,
Por entre cidades e as ruas prolíficas das cidades, dentro ou fora das casas,
fábricas ou fazendas,
Agora, no porvir, ou no passado — onde desejos patriotas existiram ou
existem,
Onde quer que a Liberdade — sustentada pela Tolerância, acalentada pela Lei
—
Se ergue, ali está sendo erigido o teu verdadeiro monumento.
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Que remoinhos de maldade, bem-aventurança e tristeza sobre a tua haste!
Que curiosas olhadelas questionadoras — clarões de amor!
Olhares de soslaio, inveja, escárnio, desprezo, esperança,
aspiração!
Teu portal — tua arena — tu entre miríades de linhas longas desenhadas
e de grupos!
(Quem poderia senão as tuas lajes, teus parapeitos, tuas fachadas, contar
histórias inimitáveis;
Tuas ricas janelas, e imensos hotéis — tuas calçadas largas.)
Tu, de infinitos pés escorregadios, requebrados, embaralhados!
Tu, tal como o próprio mundo com suas partes coloridas — como a vida
infinita, corajosa, escarnecedora!
Teu espetáculo e tua lição visionada, indescritível, vasta!
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Assistindo à chegada e à partida dos navios, e resmungando sozinho — E
agora o encerramento de tudo:
Um brigue que tinha dificuldade para sair, um dia, confundiu-se por muito tempo —
marés cruzadas e muita erraticidade,
Finalmente, quando a noite caiu, a brisa bateu corretamente, mudando a sorte da
embarcação,
E rapidamente contornando o cabo, adentrou altivo na escuridão, partindo enquanto
o velho assistia,
"Ele está livre — ele segue, agora, a sua destinação" —
essas foram suas últimas palavras — quando Jenny veio, ele estava ali,
sentado e morto,
O holandês Kossabone, velho Salt, aparentado pelo lado de minha mãe, há
muito tempo.
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Então, vazio e findo e quieto e inteiramente perdido.
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missão do Novo Mundo, eu canto.
A fisiologia, o que vai da cabeça aos pés, eu canto, não apenas a
fisionomia, nem o cérebro somente é digno da Musa, eu digo que a forma
completa é muito mais valorosa. A fêmea, tanto quanto o macho, eu canto.
Nem cessa no tema do Ser de alguém. Falo a palavra do moderno, a palavra da
Massa.
Meus dias eu canto, e as Terras — com o interstício que conheço de
Guerra desafortunada.
(Ó amigo, quem quer que sejas, finalmente chegando até aqui para iniciar,
sinto através de cada folha o aperto de tua mão, o qual retribuo.
E então, em nossa jornada, andando pela estrada, e mais de uma vez, unidos e
ligados seguimos.)
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Os pequenos arbustos, o amarelo e o verde dos salgueiros, a ameixa e as cerejas que
brotam,
Com elas o pisco-de-peito-ruivo, a cotovia e o tordo, entoando suas canções
— o pássaro azul esvoaçando;
Tais são as cenas que a encenação anual traz consigo.
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"Deixai-me voltar novamente para os meus dias de guerra,
Aos lugares e aos cenários — para a formação da linha de
batalha,
Para os batedores que vão à frente reconhecendo o terreno,
Para os canhões, para a horrenda artilharia,
Para os auxiliares a galope, carregando ordens,
Para os feridos, os caídos, o calor, o suspense,
O forte perfume, a fumaça, o barulho ensurdecedor;
Fora com vossa vida de paz! — vossas alegrias de paz!
Devolvei-me a velha vida de batalhas selvagens!"
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E deu voltas e voltas no globo — e agora ele retorna:
Como o lugar está mudado — todos os antigos referenciais se foram — os
pais morreram;
(Sim, ele retorna para ficar definitivamente no porto — para
estabelecer-se— tem uma bolsa bem cheia — nenhum lugar servirá
além deste);
O pequeno bote a remos que o trouxe da corveta encontra-se agora preso por uma
corda,
Ouço as ondas que batem, a quilha incansável, o balanço na areia,
Vejo o kit do navegador, o saco de lona, a grande caixa atada com bronze,
Examino minuciosamente o rosto todo marron-framboesa e barbeado — a estrutura
corajosa e forte,
Vestido com um terno castanho avermelhado de bom pano escocês:
(Então — qual foi a história que contou sobre aqueles vinte anos? E o
que será do futuro?)
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Das fibras de meu coração — da garganta e da língua — (O
sangue quente que pulsa de minha vida,
O anseio pessoal e a forma por mim — não apenas o papel, o tipo
automático e a tinta)
Cada canção minha — cada pronunciamento no passado — tendo a sua
longa, longa história,
Da vida ou da morte, ou ferimento do soldado, ou perda ou segurança do
país,
(Ó céus! Que aparatoso trem entre todos, iniciado e sem fim! Comparado, de
fato, àquilo!
Deplorável e feito em pedaços, até mesmo em seu melhor!)
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Trazidas exclusivamente por eles — tanto (talvez o melhor) daquilo a que antes
não dávamos importância;
As luzes que de fato deles emanam — dos cumes tremulantes da idade
avançada.
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Não seria melhor evitar falar (nesta minha idade avançada e nesta paralisia) de tais diminutos penduricalhos e pintas ornamentais (máculas talvez, manchas), já que uma longa e poeirenta jornada se segue, deixando para que sejam testemunhadas mais tarde? Não tenho tido temor suficiente dos toques descuidados, desde o início — e nem agora — nem das repetições papagaiescas — nem dos chavões e dos lugares-comuns. Talvez eu seja democrático demais para esse tipo de abstenção. Além disso, não está a área de versos, tal qual originalmente planejei em minha teoria, suficientemente ilustrada — e o tempo maduro o suficiente para que eu me retire em silêncio? — (de fato não há clima para altos brados nem mercado para o meu tipo de expressão poética).
Em resposta, ou melhor, como desafio, para essa sorte de bem elaborada interrogação, aqui vai esta pequena coleção, e a conclusão de minhas coleções anteriores de poemas. Embora não esteja aqui reunido um esclarecimento completo, é válido imprimi-lo (certamente não tenho nada novo para escrever) — pois entretenho as horas de meu septuagésimo segundo ano de vida — horas de confinamento forçado em meu cubículo — dando forma a essa pequena coleção de poemas da idade avançada:
Últimas gotículas que se seguem a uma chuva espontânea, De muitas destilações límpidas e aguaceiros do passado; (Vão elas fazer germinar alguma coisa? Meras exalações que são — as da terra e as do mar — as da América;
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Poderão elas filtrar qualquer emoção profunda? Qualquer
coração e qualquer mente?)
Contudo é possível que assim seja, sinto-me disposto a desenvolver a oportunidade do momento e depois encerrar. Nos últimos dois anos emiti, durante as calmarias da doença e da exaustão, certos chilros — lentos e moribundos provavelmente (indubitavelmente) — os quais agora posso reunir e aprimorar enquanto ainda posso ver corretamente — (pois meus olhos já me avisaram plenamente que minha visão está escurecendo, e meu cérebro cada vez mais palpavelmente negligencia ou se recusa a fazer, mês após mês, mesmo as tarefas e as revisões mais leves).
De fato, aqui estou eu nestes anos atuais de 1890 e 1891 (a cada quinzena que se sucede sentindo-me mais duro e mais profundamente encalhado), tal como algum horrível e antigo crustáceo dilapidado, envolvido em sua casca dura, ou concha batida pelo tempo (sem pernas, absolutamente sem locomoção) atirada e deixada para secar no alto das areias da praia, indefesa, impedida de ir a qualquer lugar — sem alternativa além de me comportar em silêncio, enquanto passo os dias que ainda me estão designados, tentando descobrir se ainda há algo para a concha horrível, batida pelo tempo, que possa ser tirado finalmente, dos bons espíritos inatos e das primitivas pulsações centrais que existem lá no fundo, em alguma parte de sua velha concha grisalha . . . . . . . . . . . . . (Leitor, tu deves permitir um pouco de alegria neste ponto — primeiramente porque não há muitos desses poemetos a seguir que falem sobre a morte, e também porque estas horas (de 5 de julho de 1890) estão de tal modo ensoladaras. Idoso como estou, sinto hoje quase como algum tipo de onda brincalhona, que brinca contudo como uma criança ou um gatinho — provavelmente um período de ajuste físico e perfeição que se dá aqui e agora. De qualquer modo, acredito que isso está em mim perenemente.)
Então, por trás de tudo isso, a consolação mais profunda (é
uma consolação lúgubre, mas não ouso lamentar esse fato que se deu
no passado, nem me abstenho de habitar, e até de me vangloriar aqui ao final) que
esta minha condição dos últimos anos, de mocho paralisado ou de concha,
é o indubitável resultado e desenvolvimento, agora por quase vinte anos, da
excitação e da ação emocional e física que durou além da
conta, com zelo excessivo, nos tempos
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de 1862, 3, 4 e 5. Nesses anos estive visitando e acompanhando
os voluntários feridos e doentes do exército, de ambos os lados, nas campanhas
ou disputas, ou após elas, ou nos hospitais ou nos campos ao sul da cidade de
Washington, ou naquele lugar e em qualquer outro. Aqueles tempos foram quentes, tristes,
desarticulados — os voluntários do exército, de todos os Estados,
— do Norte ou do Sul — os feridos, sofrendo, morrendo — os verões
exaustivos em que tanto suávamos, as marchas, as batalhas, a carnificina —
naquelas trincheiras os corpos rapidamente se amontoando aos milhares, quase sempre
anônimos. Será que a América do Futuro — será que esta vasta e
rica União terá consciência um dia do preço pago lá atrás
para que ela existisse? — aquelas hecatombes de mortes em batalha — aqueles
tempos dos quais, ó leitor distante, este livro inteiro é — real e
finalmente — apenas uma reminiscência de mim para ti, um memorial por tudo
aquilo?
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Que demoramos e nos atrasamos — e que flutuamos ao final, e que agora estamos
aqui,
Para sermos as gotas concludentes das chuvas que passaram.
Atrás de um Adeus espreita muito de uma saudação de um novo começo — para mim, Desenvolvimento, Continuidade, Imortalidade, Transformação são os sentidos mais importantes da vida da Natureza e da Humanidade, e são o aspecto sine qua non de todos os fatos, e de cada fato.
Por que as pessoas vivem com tanta ternura em suas últimas palavras, conselhos, aparência, quando da partida? Aquelas últimas palavras não são exemplos do melhor, do que envolve vitalidade em sua plenitude, e equilíbrio, e controle perfeito e escopo. Mas são valiosas além da medida para confirmar e endossar o trem variado, os fatos, as teorias e a fé da vida inteira que precede.
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Aqui, aqui vindo de peregrinações, de vagueações, de
lições, de guerras, de derrotas — aqui no Ocidente uma voz triunfante
— a tudo justificando,
Um agradável brado repicando — uma canção, desta vez de
máximo orgulho e satisfação;
Nela eu canto a grandeza comum, a horda da média geral (os melhores não
precedem os piores) — e agora eu canto a idade avançada,
(Meus versos, escritos primeiramente na manhã da vida, e para o banquete do
verão e do outono,
Do mesmo modo passo para os cabelos nevados, e concedo o mesmo aos pulsos esfriados
pelo inverno);
Como aqui no trinado descuidado, eu e minhas recitações, com fé e
amor,
Flutuando para outra obra, para canções desconhecidas,
condições,
Adiante, adiante, vós, pares aprazíveis! Continuai da mesma forma!
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Nota — Verão no interior. — Muitos anos. — Em minhas correrias e explorações encontrei uma floresta próxima ao riacho, para onde, por alguma razão, um número não usual de pássaros em clima de felicidade pareciam retirar-se. Especialmente no começo do dia, e novamente no final, eu ouvia ali os concertos musicais dos pássaros mais copiosos. Observava aquele fenômeno freqüentemente na hora do nascer do sol — e também na hora do crepúsculo, ou um pouco antes . . . Certa vez, uma questão surgiu para mim: qual é a melhor sessão de canto, a primeira ou a última? Os primeiros sempre se divertiam, e talvez parecessem mais alegres e mais fortes; mas sempre senti os sons do crepúsculo ou do final da tarde mais penetrantes e mais doces — pareciam tocar a alma — com freqüência os tordos do início da noite, dois ou três deles, respondiam e talvez se unissem ao canto. Embora eu tenha saudades de algumas daquelas manhãs, percebi que me tornei estritamente pontual para as apresentações no início da noite.
Outra nota — "Ele partiu com a maré e o pôr-do-sol" — foi uma frase que ouvi de um cirurgião que descrevia a morte de um velho marinheiro sob certas condições peculiarmente gentis.
Durante a Guerra de Secessão, 1863 e 1864, visitando os Hospitais do Exército nas cercanias de Washington, criei o hábito, e o mantive até o fim, sempre que o fluxo ou o refluxo da maré começava na última parte do dia, de visitar pontualmente aqueles que estavam nas alas populosas de homens sofredores. De algum modo (pensei então) o efeito da hora era palpável. Os mais feridos sentiam algum alívio, e gostavam de conversar um pouco, ou de ter alguém com quem conversar, suas naturezas intelectuais e emocionais estavam em sua melhor forma: a morte era sempre mais fácil; os remédios pareciam fazer melhor efeito quando administrados nessas circunstâncias, e uma atmosfera de bonança permeava as alas.
Influências semelhantes, circunstâncias e horas semelhantes, se davam no encerramento do dia, após grandes batalhas, mesmo com todos os seus horrores. Mais de uma vez tive experiências assim, nos campos cobertos de corpos caídos ou mortos.
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Nem por mim — meu próprio Eu rebelado em ti?
Inclina-te, inclina-te, orgulhoso apetite voraz! — embora te sufocando;
Tua garganta ciliada e tua testa empinada para beber a água da goteira;
Inclinando bem teu pescoço para receber esmolas.
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(Nós, bisnetos e tataranetos, não nos esquecemos de teus grandes
antepassados),
De cinqüenta Nações e Nações nebulosas, compactados,
enviados hoje sobre o mar,
Da América o aplauso, o amor, as memórias e a boa vontade.
Nota — Camden, New Jersey, 7 de agosto de 1888. Walt Whitman pede ao New York Harold "que inclua o seu tributo a Sheridan":
"Na grande constelação de cinco ou seis nomes, sob a Presidência de Lincoln, que a história sustentará através das eras em seu firmamento, como marco das últimas cinco cintilações da secessão, irradiando sobre os seus suspiros de morte, o de Sheridan brilhará. Uma consideração erguese do exemplo dos soldados que agora estão mortos e passa por minha mente, sendo digna de nota. Se a guerra tivesse durado um pouco mais, em minha opinião, teria revelado e provado os mais conclusivos talentos de guerra jamais evidenciados por qualquer nação na face da terra. Que eles possuíram categoria e aperfeiçoamento adiante de todos os outros conhecidos, em escala de qualidade e de número ilimitado, isso é facilmente admissível. Mas temos, também, a elegibilidade da organização, do manejo e da formação de oficiais uns iguais aos outros. Esses com armamentos modernos, transporte, e a inventividade do gênio americano, fariam dos Estados Unidos, com sinceridade, uma potência militar não somente capaz de enfrentar o mundo inteiro, mas também de vencer o mundo inteiro unido contra nós".
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O estalido dos rifles — o ruído surdo do canhão — a correria
dos homens saindo de suas tendas;
O fragor da cavalaria — a estranha presteza na formação das fileiras
— o elegante toque da corneta;
O som dos cascos dos cavalos na partida — selas, armas, equipamentos.
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Meditando sobre cenas de guerra há muito ocorridas — sobre os
incontáveis soldados anônimos sepultados,
Sobre os nomes vazios, como os que não foram encomendados pelo ar e pelos mares
— os que não retornaram,
O breve tratado de paz depois da batalha, com horríveis enterros de
esquadrões, e as trincheiras profundas cheias de corpos,
Dos mortos reunidos de toda a América, Norte, Sul, Leste, Oeste, de onde eles
vieram,
Das florestas do Maine, das fazendas da Nova Inglaterra, da fértil
Pensilvânia, Illinois, Ohio,
Do Oeste imensurável, da Virgínia, do Sul, das Carolinas, do Texas,
(Mesmo aqui em meu quarto — sombras e meia luz nas silenciosas chamas
bruxuleantes,
Vejo as fileiras decididas, erguendo-se — ouço o passo rítmico do
exércitos.)
Vós todos, um milhão de nomes não escritos — vós, legado
obscuro de todas as guerras,
Um verso especial por vós — um lampejo de dever por muito tempo
negligenciado — teu místico catálogo estranhamente aqui reunido,
Cada nome lembrado por mim saído da escuridão e das cinzas da morte,
De agora em diante para ser recordado, no fundo, bem no fundo de meu
coração, por muitos anos futuros,
Vós, místico catálogo inteiro de nomes desconhecidos, do Norte ou do
Sul,
Embalsamados com amor nesta canção crepuscular.
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E hoje e sempre assim ele se encontra, misturando-as, fundindo-as, segurando-as pelas
mãos, firmemente,
Mãos que ele jamais largará até ser capaz de reconciliá-las,
E de fundi-las, inteira e alegremente.
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Os botões rapidamente florescendo, solidariedade, auxílio, amor,
Do Oeste e do Leste, do Sul e do Norte e do exterior,
Seus corações quentes e esporados e suas mãos; a humanidade se move
para auxiliar a humanidade;
E de dentro ainda um pensamento e uma lição,
Tu, globo eternamente lançado! Através do Espaço e da Atmosfera!
Vós, águas que nos envolveis!
Vós, que em toda a nossa vida e nossa morte, durante a ação ou
durante o sono!
Vós, leis invisíveis que a todos permeiam,
Vós, que em todos, e sobre todos, e através e sob todos, não
cessam!
Vós! Vós! A vital, a universal, a gigante força sem
resistência, que não dorme, sempre calma,
Segurando a Humanidade em vossas mãos abertas, como se fora um brinquedo
efêmero
Que, doente, sempre vos esquece!
Pois que também vos esqueci,
(Absorvido que estava nessas pequenas potências de progresso, política,
cultura, riqueza, invenções, civilização),
Perdi o meu reconhecimento de vosso poder sempre controlador, vós, poderosas,
agonia dos elementos,
Nas quais e sobre as quais flutuamos, as quais todos boiamos.
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Aquele que se desviou andou para longe? É essa a razão pela qual
está estranhamente escondido?
Farias soar os sons abaixo do inquieto oceano do mundo inteiro?
Conhecerias a insatisfação? A ânsia e o aguilhão de todas as
vidas;
Algo jamais aquietado — nunca inteiramente terminado? a invisível
necessidade de cada semente?
"É a ânsia central em cada átomo,
(Freqüentemente inconsciente, freqüentemente mal, caído)
Para retornar à sua divina fonte e origem, não importa a que
distância esteja,
Potencialmente igual em todos os sujeitos e objetos, sem exceção".
(Domingo, _____, _________, _______ Fui esta manhãà igreja. Um professor universitário, Reverendo Dr.______________, fez um ótimo sermão, durante o qual captei as palavras acima; mas o ministro incluiu em seu "catálogo da harmonia" letra e espírito, apenas as coisas estéticas, e ignorou totalmente o que narro a seguir)
O diabólico e obscuro, o moribundo e o desencarnado, O incontável (dezenove vigésimos) baixo e maligno, cruel e selvagem, Os loucos, prisioneiros em terríveis prisões, presas da luxúria, malignos,
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Peçonha e corrupção, serpentes, os tubarões devoradores, os
mentirosos, os dissolutos;
(Qual é a parte que os depravados e os abomináveis sustentam dentro do
esquema do orbe terrestre?)
Salamandras aquáticas, seres que rastejam no lodo e na lama, venenos,
O solo estéril, os homens maus, a escória e os hediondos apodrecidos.
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Algo ainda não narrado na voz da poesia ou nos impressos — algo
faltando,
(Quem sabe? O melhor ainda sem expressão e faltando).
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Ou que sorte terei, e se algum dia voltarei a ver-te,
Então, adeus, minha Ilusão.
Agora para terminar — deixa-me olhar para trás por um momento;
O mais vagaroso e mais débil tique-taque do relógio está em mim,
Saída, anoitecer, e em breve cessando o batimento do coração.
Vivemos longamente, com alegria, juntos acariciados;
Delicioso! — agora a separação — Adeus, minha
Ilusão.
Contudo não me deixes ser apressado em demasia,
Muito vivemos de fato, dormimos, filtramo-nos, tornamo-nos realmente um;
Então se morrermos, morremos juntos (sim, permaneceremos um),
Se formos a algum lugar iremos juntos para encontrar o que acontece,
Talvez estaremos em melhores condições e mais contentes, e aprenderemos
algo,
Talvez sejas tu agora realmente a conduzir-me para as verdadeiras canções
(quem sabe?),
Talvez sejas tu realmente a desfazer o nó mortal, retornando agora,
finalmente,
Adeus — e viva, minha Ilusão!
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Talvez a melhor entre as canççes já ouvidas, as de todo e qualquer verdadeiro amor, as dos episódios mais belos da vida, as das mais árduas cenas dos marinheiros ou soldados, no mar ou em terra firme, seja a epítome de todas elas, ou de qualquer uma delas, muito tempo mais tarde, olhando para as realidades que ficaram distantes no passado, quando toda a sua excitação prática já se foi. O fato é que a nossa alma ama flutuar entre tais reminiscências!
Então, aqui me sento tagarelando sob a luz precoce das velas da idade avançada—eu e meu livro—, lançando olhares retrospectivos sobre nossa estrada viajada. Após terminar, tal como foi, a jornada—(uma variada excursão de anos, com muitas paradas e espaços de intervalo—ou alguma viagem náutica estendida, na qual mais de uma vez a hora derradeira havia aparentemente chegado e parecia que certamente naufragaríamos—contudo alcançando o porto suficientemente bem através de todas as derrotas—enfim)—após ter completado meus poemas, estou curioso para revisá—los à luz de suas próprias intenções (inconscientes quando de sua composição ou inconscientes em sua maior parte), com certos desdobramentos dos 30 anos que eles procuram abarcar. Estas linhas, assim sendo, provavelmente fundirão as tramas dos primeiros propósitos e especulações, com a urdidura daquelas experiências mais tardias que sempre trouxeram estranhos desenvolvimentos.
Resultado de sete ou oito estágios e esforços que se estenderam por
aproximadamente 30 anos (ao me aproximar de meus 73 anos, vivo em boa parte de
memórias), tenho em Folhas de Relva, agora
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levadas a termo com
todas as suas potencialidades e forças, o meu cartão de visitas para as
gerações vindouras do Novo Mundo*, se posso assim dizer. Que não ganhei a aceitação
de meus contemporâneos, mas caí em aficionados sonhos de
futuros—antecipações—(“ainda vive a canção embora morra
Regnar”)—que de um ponto de vista mundano e comercial Folhas de
Relva foi pior que um fracasso—que a crítica pública ao livro e a
mim como autor ainda mostra, mais do qualquer coisa, as suas marcas de raiva e desprezo
(“encontro uma sólida fileira de inimigos em toda parte” —carta de W.S.K., 28
de maio de 1884) e que apenas por tê-las publicado fui objeto de duas ou três
seções de bofetadas bem sérias e oficiais—tudo isso não é
mais do que aquilo que eu teria esperado. Eu tinha minha escolha quando comecei. Não
apostei nem nos elogios suaves, nem em grande retorno financeiro, nem na
aprovação das escolas e nas convenções existentes. E agora realizado,
ou parcialmente realizado, o melhor conforto de toda essa empreitada (além de um
pequeno grupo dos mais queridos amigos e apoiadores já conferidos a um homem ou a uma
causa—sem dúvidas todos os mais fiéis e os menos dispostos a abrir
mão de suas posições—esta pequena falange!—por serem tão
poucos) é que, sem ser interrompido ou deformado por qualquer influência da alma
que há em mim, disse o que diria de um modo inteiramente próprio, registrando-o
inequivocamente—deixando o seu valor para ser definido pelo tempo.
Ao refletir sobre aquela minha decisão, Willian O’Connor e Dr. Bucke são muito
mais peremptórios do que eu. Além de tudo o mais que pode ser dito, considero
que Folhas de Relva e sua teoria sejam experimentais—tal
como, no sentido mais profundo, considero que também sejam a nossa república
americana e a sua teoria. (Penso que tenho ao menos filosofia suficiente para não
estar absolutamente certo demais de coisa alguma ou de quaisquer resultados.) Em segundo
lugar, o volume é uma sortie—se provarse triunfante e
conquistar a sua área de objetivo, de liberdade e de construção, o que
poderá ser totalmente respondido daqui a nada menos que cem anos. Considero o fato de
ter positivamente con
Quando Champollion, em seu leito de morte, entregou ao
impressor a prova revisada de sua Gramática egípcia,
disse alegremente: “Tenha cuidado com isso: trata-se de meu cartão de visitas para
a posteridade".
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quistado certa audiência, muito mais compensador do que quaisquer
deficiências ou a falta de reconhecimento. Essencialmente, esse era, desde o
princípio, e tem sempre sido até agora, o principal objetivo. Agora ele parece
ter sido alcançado, e estou certamente satisfeito de abrir mão de quaisquer
outras recompensas momentosas, tendo-as em pequena conta. Revendo minhas
intenções, candidamente e sem paixões, sinto que foram honrosas—e
aceito seu resultado, qualquer que ele venha a ser.
Após minha ambição e meu esforço continuado, quando jovem, para competir com os demais pelas recompensas mais comuns, nos negócios, na política, na literatura, etc.—de tomar parte do grande mêlée, tanto pelos prêmios da vitória como para fazer o bem— após anos perseguindo esses objetivos, encontrei-me possuído, entre os meus 31 e 33 anos de idade, por um desejo especial e uma convicção. Ou melhor, para ser bem exato, um desejo que tinha marcado sua presença em minha vida, ou havia pairado pelos flancos, quase indefinido até então, avançou adiante, definiu-se, e finalmente dominou tudo o mais. Tratava-se de um sentimento ou ambição de articular e fielmente expressar em forma poéticoliterária, e sem outros compromissos, minha própria personalidade física, emocional, moral, intelectual e estética, em meio a, e narrando, o momentoso espírito e os fatos de seus dias imediatos, e da América atual—e explorar a Personalidade, identificada com local e data, em um sentido bem mais cândido e abrangente do que em qualquer outro poema ou livro até então.
Talvez isso seja, em resumo, ou pelo menos sugere, tudo o que procurei fazer. Tendo em
vista o século XIX, com os Estados Unidos, e o que eles forneceram como área e
pontos de vista, Folhas de Relva é, ou procura ser,
simplesmente, um fiel e indubitável registro desejado por alguém. Em meio a
tudo, elas dão à identidade de um homem—o autor—identidade, calor,
observações, fé e pensamentos, quase incolores, tingidos com quaisquer
cores definidas de outras fés ou em outras identidades. Muitas canções
além dessas tinham sido cantadas—maravilhosas, incomparáveis
canções— adaptadas para outras terras—para outro espírito e
outro estágio evolutivo; mas cantei, e deixei de fora ou inseri, quase que
exclusivamente os cantos com referência à América e ao presente. A
ciência moderna e a democracia parecem estar lançando o seu desafio à
poesia, para que ela seja capaz de fazer as suas declarações em contraste com as
canções e os mitos do passado. Tal como o
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vejo agora (talvez tarde demais), assumi
inconscientemente aquele desafio e procurei fazer tais declarações—algo
que certamente não procuraria fazer agora, compreendendo com maior clareza o que isso
significa.
Para lançar as bases de Folhas de Relva, como um poema, abandonei os temas convencionais, que nelas não aparecem: nada do cabedal da ornamentação, ou da escolha de tramas de amor e de guerra, ou elevadas e excepcionais personagens das canções do Velho Mundo; nada, como posso dizer, em nome da beleza—nem lenda, nem mito, nem romance, nem eufemismo, nem rima. Contudo, a mais ampla média da humanidade e suas identidades neste século XIX que agora amadurece, e especialmente em seus incontáveis exemplos e ocupações práticas nos Estados Unidos atualmente.
Um contraste principal das idéias por trás de cada página de meus versos, comparado com os poemas estabelecidos, é a sua atitude relativamente distinta com referência a Deus, com referência ao universo objetivo, e ainda mais (por reflexão, confissão, pressuposição, etc.) a bem alterada atitude do ego, aquele que canta ou que fala, para consigo mesmo e para com a sua humanidade companheira. Certamente esta é a hora para que a América, acima de todos, inicie esse reajustamento na poesia e em seu escopo e ponto de vista básicos, pois tudo o mais já mudou. Enquanto escrevo, vejo em um artigo sobre Wordsworth, publicado em uma das atuais revistas inglesas, as linhas: “Há apenas algumas semanas um eminente crítico francês disse que, devido à especial tendência à ciência e à sua força devoradora, dentro de cinqüenta anos a poesia não mais seria lida”. Mas antecipo exatamente o contrário. Apenas começa a existir uma nova era mais firme, vastamente mais ampla—nem ainda se encontra de todo estabelecida—para a qual o gênio poético precisa emigrar. Qualquer que tenha sido o caso nos anos anteriores, o verdadeiro uso para a faculdade imaginativa dos tempos modernos é o de conceder uma vivificação definitiva aos fatos, à ciência, e às vidas comuns, dotando-as com os brilhos e as glórias e a ilustratividade final que pertence a cada coisa real, e apenas às coisas reais. Sem essa vivificação definitiva—que apenas o poeta ou outro artista podem promover—, a realidade pareceria incompleta, e a ciência, e a democracia, e a própria vida, vãs em sua finalidade.
Poucos apreciam as revoluções morais de nosso tempo, que foram bem mais
profundas do que as revoluções materiais ou
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inventivas ou as produzidas pela guerra. O
século XIX, agora se aproximando do fim (e amadurecendo os frutos das sementes
plantadas nos dois séculos precedentes*)—a ascensão nas massas nacionais e as
mudanças das fronteiras—os fatos históricos e outros fatos proeminentes
dos Estados Unidos—a guerra que tentou a secessão—a tempestuosa
afluência e o ímpeto de forças nebulosas—jamais os anos futuros
testemunharão maior excitação e alarido de ação—jamais uma
mudança mais completa na vanguarda dos combatentes ao longo de toda a fileira, todo o
mundo civilizado. Para todos esses novos e evolucionários fatos, significados,
propósitos, novas mensagens poéticas, novas formas e expressões são
inevitáveis.
Meu livro e eu—que período presumimos abarcar? Aqueles trinta anos de 1850 a 1880—e a América dentro deles! Orgulhosos, de fato orgulhosos nos sentiremos, se tivermos sido capazes de selecionar o bastante daquele período em seu próprio espírito para, valorosamente, bafejar alguns sopros vivos dele ao futuro!
Não ousarei formular uma definição de Poesia, aqui ou em qualquer outro lugar, por razões que são minhas, ou quaisquer razões, nem responderei à pergunta sobre o que ela é. Religião, Amor, Natureza. . . enquanto esses termos são indispensáveis e nós conferimos a eles um significado suficientemente exato, em minha opinião nenhuma definição elaborada é suficiente para abarcar o significado da Poesia; nem qualquer regra ou convenção pode ser estabelecida de modo tão absoluto que não venha a ser desprezada ou subvertida pelo surgimento de alguma grande exceção.
Também é necessário cuidadosamente relembrar que a literatura de primeira
classe não brilha por qualquer luminosidade própria; o mesmo vale para os seus
poemas. Tal literatura nasce de circunstâncias e é evolucionária. A real
luminosidade viva vem sempre, curiosamente, de algum outro lugar—segue fontes
imponderáveis,
O fermento e a germinação dos Estados Unidos
até hoje se reportam ao, e na minha opinião principalmente se fundamentam no,
período elisabetano da História da Inglaterra, a era de Francis Bacon e de
Shakespeare. De fato, quando vamos ao seu encalço, que desenvolvimento ou advento
existe que não se refira ao passado, bem passado, até que se perca de vista
—talvez as suas pistas mais atormentadoras se percam—nos horizontes
longínquos do passado?
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e é lunar e relativa na melhor das hipóteses. Existem, eu sei, certos temas
fortes que parecem extremamente apropriados aos poetas— como a guerra, no
passado—na Bíblia, o êxtase religioso e a adoração—e
sempre o amor, a beleza, alguma trama excelente, algo que faz refletir ou que toca em
outras emoções. Mas estranho tal como possa parecer à primeira vista, direi
que existe algo surpreendentemente mais profundo e muito mais elevado do que aqueles temas
para os melhores elementos da canção moderna.
Tal como todas as antigas obras imaginativas se sustentam, à procura de seu tipo, sobre encadeamentos de pressuposições, com freqüência não mencionados por elas, e no entanto capazes de prover as suas bases mais importantes, e sem as quais elas não teriam tido razão para existir, assim também Folhas de Relva, antes que uma única linha tivesse sido escrita, pressupunha algo diferente de todos os demais poemas e, tal como ele se encontra, é o resultado de tais pressuposições. Eu deveria dizer, de fato, que seria inútil procurar ler o livro sem antes ter esse pano de fundo preparatório e essa qualidade cuidadosamente assimilados. Pense nos Estados Unidos de hoje—os fatos que fizeram esses 38 ou 40 impérios fundirem-se em um—60 ou 70 milhões de semelhantes, com suas vidas, suas paixões, com seus futuros—essas incalculáveis, modernas multidões americanas em ebulição à nossa volta, das quais somos partes inseparáveis! Pensemos, em comparação, sobre o insignificante ambiente e a área limitada dos poetas do passado ou do presente na Europa, independentemente da grandeza de seus gênios. Pensemos na ausência e na ignorância, em todos os casos até aqui mencionados, das multidões, da vitalidade, e dos estimulantes sem precedentes do aqui e do agora. Quase podemos dizer que a poesia, com características ilimitadas e magnitude cósmica e dinâmica, adequadas à alma humana, nunca antes foi possível. é certo que uma poesia que tivesse fé absoluta e eqüidade para o uso das massas democráticas nunca existiu.
Para criar uma canção de primeira classe, uma certa dose de nacionalidade, ou
por outro lado o que pode ser chamado o negativo e a falta dela (como algumas vezes me
parece no caso de Goethe), é, freqüentemente senão sempre, o primeiro
elemento necessário. Alguém precisa apenas de um certo poder de
penetração para enxergar e mais ou menos retirar os fatos materiais de seu
país e região, com as cores dos humores da humanidade naquele momento, ou as
suas perspectivas tristes ou esperançosas, por trás de todos os
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poetas e de cada
poeta, integrando os seus registros de nascimento. Sei muito bem que minhas Folhas não poderiam ter emergido ou ter sido confeccionadas em
qualquer outra era que não fosse a segunda metade do século XIX, nem em outra
terra que não fosse a América democrática, e nem em uma circunstância
distinta do triunfo absoluto dos exércitos da União Nacional.
E ainda que meus amigos confiram ou não o meu trabalho, conheço o bastante os
seus limites, de tal modo que relativamente ao talento da ilustração, da
criação de situações dramáticas, e especialmente em termos de
melodia verbal e de toda a técnica convencional de poesia, não apenas as obras
divinas que hoje estão diante de nós, no futuro do mundo da literatura, mas
outras tantas dúzias, transcendem (algumas delas transcendem imensuravelmente) tudo o
que já fiz ou poderia fazer. Mas a mim me parecia, como os objetos da natureza, que
os temas do esteticismo e todas as explorações especiais da mente e da alma
envolveriam não apenas a sua qualidade inerente, mas, sim, a qualidade, tão
importante, de seu ponto de vista*; a hora havia chegado para se refletir sobre todos os temas e coisas,
velhas e novas, de acordo com as luzes que haviam sido lançadas sobre elas com o
advento da América e da democracia —para cantar aqueles temas por meio de uma
expressão que não fosse apenas a do agradecido e reverente legatário do
passado, mas, sim, o da criança nascida no Novo Mundo—para tudo ilustrar
através da gênese e conjunto do hoje; e que uma tal ilustração e
conjunto são as demandas mais importantes da prospectiva literatura de
ficção da América. Não para conduzir, no estilo já aprovado,
alguma escolha de trama da sorte ou do azar, ou ilusão, ou de pensamentos refinados,
ou incidentes, ou cortesias—tudo o que já foi feito cumulativamente e bem
feito, de modo a provavelmente jamais ser excedido—, mas compreendendo que tais
apresentações estéticas de objetos, paixões, tramas, pensamentos,
etc., não são desejadas pelas nossas terras e por nossos dias, já que em
relação a elas provavelmente nunca terão coisa alguma melhor do que aquilo
que já possuem na forma de legados do passado, enquanto ainda permanece sem ser dito
tudo o que existe, mesmo em relação a tudo aquilo, sob um ponto de vista
subjetivo e contemporâneo, exclusi-
De acordo com Immanuel Kant, o ponto de vista
é a última realidade essencial, dando forma e significado para todas as outras
coisas.
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vamente apropriado ao nosso caso, e ao nosso novo gênio e
aos novos ambientes, diferentes de qualquer coisa que já tivemos até aqui; e que
uma tal concepção de vida ou de arte, atual ou passada, é para nós o
único meio de sua assimilação consistente no mundo Ocidental.
De fato, e de qualquer modo, para dizê-lo especificamente, não terá chegado a hora (isso deve ser claramente dito em nome da América democrática, se não por qualquer outro motivo) em que é imperativo que venha um reajustamento de toda a teoria e a natureza da Poesia? A questão é importante, e eu posso trocar o argumento e repetir: não estará o melhor do pensamento de nossos dias e de nossa República prenhe de um nascimento e de um espírito de canção superior a qualquer coisa do passado ou do presente?
Para a consolidação efetiva e moral de nossas terras (já são, como estabelecimento material, os maiores fatos na história conhecida e maiores, muito maiores, por aquilo que eles preludiam e necessitam, e hão de ser no futuro), para se adaptar com e construir sobre as realidades concretas e as teorias de universo fornecidas pela ciência, e daí em diante a única base irrefutável para coisa qualquer, o verso incluído—para radicar ambas as influências nas ações emocionais e imaginativas da modernidade, e dominar tudo o que a precede ou a ela se opõe—não será indispensável um avanço radical e um passo adiante, ou uma indispensável nova vértebra da melhor canção?
O Novo Mundo recebe com alegria os poemas da Antiguidade, com o rico fundo de épicos
do feudalismo europeu, peças, baladas —ao menos não procura enfraquecer ou
substituir aquelas vozes que estão em nossos ouvidos e em nossa área—por
estudos indispensáveis, influências, registros, comparações. Mas
embora o ocaso do deslumbramento do sol da literatura esteja naqueles poemas para nós
de hoje—embora talvez as melhores partes do atual caráter nas nações,
grupos sociais, ou individualidade de qualquer homem ou mulher, do Velho Mundo ou do Novo,
seja proveniente deles—e embora se me fosse solicitado listar as mais preciosas
heranças deixadas para a atual civilização americana de todas as eras que
nos precedem, não tenho certeza, mas acho que escolheria aquelas velhas e menos
velhas canções transportadas para cá do Oriente para o
Ocidente—algumas sérias palavras e sérios débitos permanecem; algumas
considerações acres pedem a nossa atenção. Dos grandes poemas
recebidos do exterior e das idades, e hoje penetrando e envolvendo a América,
haverá um que seja consistente
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com estes Estados Unidos, ou essencialmente aplicável a eles tal
como são ou como hão de ser? Haverá um cujas bases subjacentes não
sejam uma negação e um insulto à democracia? Que comentário importante
temos aqui, de qualquer modo, nesta era de realização literária, com o
esplêndido amanhecer da ciência e a ressurreição da História, de
que nossas principais obras poéticas e religiosas não são nossas, nem foram
adaptadas para a nossa luz, mas têm sido fornecidas por idades muito antigas, de seus
reservatórios e de sua escuridão, ou, no máximo, da luz decrescente de seu
crepúsculo! O que há lá, naquelas obras, que tão imperiosamente e
escarnecidamente exerce domínio sobre toda a nossa avançada
civilização e cultura?
Até mesmo Shakespeare, que tanto influencia as letras atualmente e as artes (que de fato em muitos graus se originaram a partir dele), pertence essencialmente ao passado sepultado. Somente ele sustenta a distinção orgulhosa de certas fases importantes do passado, de ter sido o mais elevado entre os cantores a quem a vida já forneceu a sua voz. Todos, entretanto, estão relacionados e estabelecidos sob condições, padrões, políticas, sociologias, raios de crença, que têm sido praticamente eliminados do hemisfério Oriental, e jamais existiram no Ocidental. Como tipos oficiais de canção, elas pertencem à América tanto quanto as pessoas e instituições que elas descrevem. Pode-se dizer, é verdade, que a natureza emocional, moral e estética da humanidade não sofreu mudanças radicais—e que nesse sentido os antigos poemas se aplicam aos nossos tempos e a todos os tempos, independentemente de data; e que eles são de um valor incalculável como retratos do passado. Eu de bom grado chego à plenitude dessas admissões; então com isso avanço nesses pontos de grande e até suprema importância.
Já registrei, de fato, em outras ocasiões a minha reverência e o meu
elogio por essas heranças poéticas que jamais deverão ser superadas, e a
sua indescritível preciosidade como relíquias para a América. Outro ponto
em separado precisa agora ser declarado candidamente. Se eu não tivesse me postado
perante aqueles poemas com a cabeça descoberta, totalmente consciente de sua grandeza
colossal e beleza de forma e espírito, não poderia ter escrito Folhas de Relva. Meu veredicto e minhas conclusões, tais como ilustrados
nestas páginas, foram alcançados por meio do gênio e da persuasão das
obras antigas tanto quanto por meio de qualquer outra coisa—
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provavelmente mais por
meio disso do que por qualquer outro modo. Tal como a construção total e bela da
América é um legítimo resultado evolucionário do passado, o mesmo ouso
afirmar sobre meus versos. Sem parar de qualificar a alegação, o Mundo Antigo
teve os poemas dos mitos, das ficções, do feudalismo, das conquistas, das
castas, das guerras dinásticas e de personagens e façanhas esplêndidas e
excepcionais, que foram grandes; mas o Novo Mundo precisa dos poemas das realidades e da
ciência, e da média democrática e da eqüidade básica, que
hão de ser maiores. No centro de tudo, e como objeto de tudo, situa-se o Ser Humano,
na direção de quem os poemas da evolução heróica e espiritual e
tudo o que a eles se liga, direta ou indiretamente, se inclina, no Velho Mundo ou no
Novo.
Prosseguindo com o assunto, meus amigos mais de uma vez sugeriram—ou talvez seja que a tagarelice da idade avançada tenha me possuído—alguns fatos embrionários adicionais de Folhas de Relva, e especialmente de como iniciei esse trabalho. O Dr. Bucke, em seu livro, já descreveu completa e belamente a preparação do meu campo poético, com as atividades particulares e gerais de arado, plantação, semeadura, e cuidados com o solo, até que tudo estivesse fértil, enraizado, e pronto para iniciar o seu próprio caminho para o bem ou para o mal. Antes de todas essas etapas, não tentei qualquer familiaridade com a literatura poética. Quando tinha 16 anos tornei-me o dono de um corpulento volume bem cheio com mil páginas em forma de oitavo (eu o tenho até hoje), contendo a poesia completa de Walter Scott—uma mina inexaurível e um tesouro de forragem poética (especialmente as florestas infinitas e selvas de notas)—e assim tem sido para mim por cinqüenta anos, e assim permanece até hoje*.
Poemas completos de Walter Scott; incluindo especialmente “O remate da arte dos menestréis”; e mais: “Tristem”; “Balada do último menestrel”; “Baladas dos germanos”; “Marmion”; “A dama do lago”; “Visão de Don Roderick”; “Senhor das ilhas”; “Rokeby”; “Núpcias de Triemain”; “Campo de Waterloo”; “Haroldo, o Audaz”; todos os dramas; várias introduções, infinitas notas interessantes, e ensaios sobre poesia, romance, etc.
Tratava-se da edição de 1833 (ou 34) por Lockhart, com as últimas e copiosas revisões de Scott e suas anotações. (Li de ponta a ponta todos os poemas, mas as baladas de “O remate da arte dos menestréis”, em especial, foram lidas por mim muitas e muitas vezes.)
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Mais tarde, de tempos em tempos, nos verões e nos outonos, eu costumava sair, algumas vezes por uma semana, para um passeio, entrando pelo interior, ou no litoral de Long Island—lá, na presença das influências externas, li inteiramente o Velho e o Novo Testamentos e absorvi (provavelmente para a meu melhor benefício do que se estivesse em qualquer biblioteca ou quarto fechado—faz uma grande diferença o lugar em que se lê) Shakespeare, Ossian, as melhores traduções que pude conseguir de Homero, ésquilo, Sófocles, os antigos Nibelungos germânicos, os antigos poemas hindus, e uma ou outra obra-prima, Dante entre elas. Ocorreu que li esses últimos em uma velha floresta. A Ilíada (versão em prosa de Buckley) li primeiramente inteira na península do Oriente, na ponta nordeste de Long Island, dentro de uma caverna rochosa com chão de areia, tendo o mar por todos os lados. (Tenho refletido desde então sobre a causa de não ter me sentido subjugado por aquelas obras-primas. Provavelmente porque as li, tal como descrevi, na presença abundante da Natureza, debaixo do sol, com as paisagens se espalhando ao longe e o horizonte, ou o mar encapelado.)
Por fim revisei entre outros os poemas de Edgar Poe—dos quais eu não era um admirador, embora eu sempre os tenha visto para além do seu limitado raio de melodia (como perpétuos carrilhões de sinos musicais, na escala de b bemol menor até g), eles eram expressões melodiosas, e talvez nunca tenham sido superados, de uma certa fase pronunciada de humana morbidez. (A área poética é muito espaçosa—há nela lugar para todos—há tantas mansões!) Mas senti-me recompensado pela prosa de Poe com a idéia de que (em qualquer condição para as nossas circunstâncias, as do nosso presente) não pode haver algo como um longo poema. A mesma idéia já vinha, desde antes, assombrando a minha mente, mas o argumento de Poe, embora curto, somou-se às minhas suspeitas dando-me certeza.
Outro ponto teve um estabelecimento precoce, abrindo amplamente o caminho. Eu vi, quando
o meu empreendimento e os meus questionamentos positivamente ganharam forma (de que forma
melhor posso expressar meu próprio tempo distintivo e aquilo que me cerca,
América, Democracia?), que o tronco e o centro de onde a resposta iria se irradiar, e
para o qual tudo deveria retornar de seu desvio, não importando de que
distância, deveriam ser idênticos em corpo e alma, uma personalidade—a
qual, depois de muito considerar e ponderar deliberadamente, resolvi que deveria ser a
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minha
própria—e de fato não poderia ser qualquer outra. Também senti com
muita força (tenha eu conseguido demonstrá-lo ou não) que para compreender
verdadeiramente e totalmente o Presente, ambos, o Passado e o Futuro, são
considerações principais.
Tudo isso, porém, e muito mais poderia ter levado a nada (e positivamente quase levaria a nada) se não tivesse recebido um repentino, vasto, terrível estímulo direto e indireto para uma nova expressão declamatória nacional. é verdade, digo, que embora eu tivesse iniciado antes, somente com a ocorrência da Guerra de Secessão, e aquilo que ela me mostrou como que em lampejos de raios, com as profundezas emocionais que ela sondou e fez emergir (é evidente que não me refiro apenas aos sentimentos de meu coração, pois vi tudo isso com a mesma clareza em milhões de outras pessoas)—que somente do forte arroubo e da poderosa provocação das cenas daquela guerra, surgiram as razões de ser definitivas para uma canção autóctone e apaixonada.
Desci aos campos de guerra na Virgínia (final de 1862), vivi a partir de então nos acampamentos—testemunhei grandes batalhas e os dias e as noites que se seguiam—, compartilhei de todas as flutuações, desalento, desespero, esperanças novamente erguidas, a coragem evocada—o risco eminente da morte—a causa, também —ao longo e preenchendo aqueles anos agonizantes e apavorantes, 1863-64-65—os anos de verdadeira parturição (mais do que 1776-83) desta que a partir de então seria uma União homogênea.
Sem aqueles três ou quatro anos, e as experiências que eles me deram, Folhas de Relva não teriam existido.
Mas vim a público com a intenção também de indicar ou dar pistas de
alguns pontos característicos que, desde então, eu vejo (embora não o visse
então, pelo menos não de um modo definitivo), eram as bases e os objetos de
anseio para com aquelas Folhas, desde o princípio. A palavra
que eu mesmo coloco primariamente para descrevê-las, na forma em que elas se
apresentam finalmente, é a palavra sugestionabilidade. Fecho e
termino muito pouco, se o faço alguma vez; e não poderia fazê-lo
consistentemente com o meu esquema. O leitor sempre terá a sua parte a fazer, tanto
quanto eu tive a minha. Procuro menos declarar ou apresentar qualquer tema ou pensamento,
e mais trazer-te, leitor, à atmosfera do tema ou do pensamento—para que ali tu
possas dar os teus próprios vôos. Outra palavra impetuosa é camaradagem, em todas as terras,
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e em um senso mais elevado e reconhecido do que
até este ponto. Outras palavras sinalizadoras seriam bom
entusiasmo, controvérsia, e esperança.
O traço dominante de qualquer poeta é sempre o espírito que ele traz para a observação da Humanidade e da Natureza—o estado de espírito a partir do qual ele contempla os seus assuntos. Com que tipo de índole e com que quantidade de fé ele relata essas coisas? Com que atualidade a canção tem sido conduzida? Qual é o equipamento e qualidade especial do cantor—qual o matiz de sua cor? O último valor dos que se expressam pela arte, do passado e do presente —estetas gregos, Shakespeare—ou em nossos dias Tennyson, Victor Hugo, Carlyle, Emerson—está certamente envolvido nessas questões. Digo que o mais profundo serviço que os poemas ou qualquer outro tipo de escritos podem prestar aos seus leitores não é apenas satisfazer o intelecto ou oferecer algo polido e interessante, nem mesmo descrever grandes paixões, ou pessoas, ou eventos, mas preenchê-los com vigorosa e clara virilidade, religiosidade, e dar a eles um bom coração na forma de uma posse extrema e de um hábito. O mundo educado parece estar cada vez mais entediado através dos séculos, deixando ao nosso tempo a herança de tudo isso. Afortunadamente, há o fundo original inexaurível de animação, que normalmente reside na raça, para sempre acessível e para o qual podemos sempre apelar e no qual podemos sempre nos apoiar.
Quanto à individualidade nativa do americano, embora venha com certeza, e em larga escala, o tipo distintivo e ideal de caráter ocidental (consistente com as características operativas, políticas e até mesmo de lucratividade da humanidade dos Estados Unidos no século XIX, tal como ideais foram os cavaleiros escolhidos, os cavalheiros e guerreiros para os séculos de Feudalismo europeu) ainda não apareceu. Permiti que a ênfase de meus poemas do começo ao fim se sustentasse sobre a individualidade americana e a ajudasse—não apenas porque essa é uma grande lição na Natureza, entre todas as suas leis gerais, mas como um contrapeso às tendências niveladoras da Democracia—e por outras razões. Desafiando a literatura ostensiva e outras convenções, canto, propositadamente, canto “o grande orgulho do homem em si mesmo”, e permito que esse seja mais ou menos um motivo de quase todos os meus versos. Penso que esse orgulho é indispensável a um americano. Não julgo que esse sentimento seja incompatível com obediência, humildade, deferência, e autoquestionamento.
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A Democracia foi tão retardada e ameaçada por poderosas personalidades, que os seus primeiros instintos estão ansiosos para prender, conformar, extraviar-se e reduzir tudo a um nível mortal. Enquanto o ambicioso pensamento de minha canção existe para ajudar a formar uma grande Nação agregada, ele procura, talvez, em sua totalidade, formar miríades de indivíduos plenamente desenvolvidos e inclusivos. Bem-vindas como são as doutrinas de eqüidade e fraternidade e que defendem a educação popular, um certo compromisso acompanha todas elas, como vemos. Aquele algo essencial no íntimo do homem, nos abismos de sua alma, a tudo colorindo, e, por fruições excepcionais, dando a ele a majestade final—algo continuamente tocado e atingido pelos antigos poemas e baladas do feudalismo e freqüentemente o seu mais importante fundamento—a ciência moderna e a Democracia parecem estar colocando em risco, talvez até eliminando. Mas isso é apenas a forma e a aparência; pois a realidade é muito distinta. As novas influências, sobre a totalidade das coisas, estão certamente preparando o caminho para as maiores individualidades já existentes. Aqui e agora, do mesmo modo, a força pessoal está por trás de todas as coisas. Os tempos e as representações que vão da Ilíada a Shakespeare, inclusive, não podem felizmente jamais ser realizados outra vez—mas os elementos de humanidade corajosa e elevada encontram-se intocados.
Sem ceder uma única polegada, o operário e a operária deveriam estar nas
minhas páginas, da primeira à última. A mesma amplitude de heroísmo e
elevação com que os poetas gregos e feudais dotaram os seus personagens
divinamente ou nobremente nascidos—e de fato mais orgulhosos e melhor fundamentados
e com amplitudes maiores que aqueles—dei às massas democráticas da
América. Isso para mostrar que nós, aqui e agora, somos elegíveis ao mais
grandioso e melhor—mais elegíveis agora do que em quaisquer tempos do passado.
Também desejo que minhas expressões (disse a mim mesmo antes de começar)
sejam em espírito os poemas da manhã. (Eles foram quase sempre elaborados e
escritos nas manhãs ensolaradas e ao meio-dia de minha vida.) Desejo que sejam os
poemas das mulheres tão inteiramente quanto sejam os poemas dos homens. Desejei
inserir a União completa dos Estados Unidos dentro de minhas canções, sem
qualquer preferência ou qualquer tipo de parcialidade. Doravante, se eles
sobreviverem e forem lidos, eles devem ser tanto do Sul quanto do Norte—tanto ao
longo do
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Pacífico quanto ao longo do Atlântico—no vale do Mississippi, no
Canadá, lá em cima no Maine, lá embaixo no Texas e nas praias de Puget
Sound.
Por um outro ponto de vista Folhas de Relva é declaradamente o canto do sexo e da amorosidade, e até mesmo da animalidade—embora significados que geralmente não se encontram associados a essas palavras estejam por trás delas, e irão oportunamente emergir; e todas visam ser erguidas sob uma luz e uma atmosfera diferentes. Dessa característica, intencionalmente palpável em algumas linhas, direi apenas que o princípio desposado dessas linhas confere sopro de vida para o meu esquema completo e que a maioria das partes poderia não ter sido escrita no lugar em que essas linhas fossem omitidas. Ainda que isso seja difícil, tornou-se, em minha opinião, imperativo conseguir uma mudança de atitude dos homens e das mulheres superiores em relação aos pensamentos e aos fatos da sexualidade, como um elemento do caráter, personalidade, emoções e um tema em literatura. Não discutirei a questão em si mesma; ela não se sustenta sozinha. Sua vitalidade está no todo de suas relações, inclinações, significados—como a chave de uma sinfonia. Em última análise as linhas a que me refiro, e o espírito em que são ditas, permeiam inteiramente Folhas de Relva, e a obra deve erguerse ou cair com elas, como o corpo humano e a alma devem subsistir como um todo.
Universais como são certos fatos e sintomas de comunidades ou indivíduos de todos os tempos, não há nada tão raro nas modernas convenções e na moderna poesia como a sua fiança normal. A literatura está sempre chamando o médico para se consultar ou se confessar, e sempre dando evasivas e embrulhando supressões em vez de apresentar aquela "heróica nudez* sobre a qual um genuíno diagnóstico de casos sérios pode ser construído. E em respeito às edições de Folhas de Relva no porvir (se elas existirem) aproveito esta ocasião para confirmar aquelas linhas com assentadas convicções e a renovação deliberada de 30 anos e, por meio deste, proibir, tanto quanto eu puder pela força da palavra, a sua elisão.
Então, ainda um propósito que a tudo abarca e sobre e abaixo de tudo. Desde que
aquilo que pode ser chamado de pensamento, ou o botão do pensamento, mal começou
em minha mente juvenil, eu
"Século XIX", julho de 1883.
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tinha um desejo de tentar um registro valioso daquela inteira fé e
aceitação (“para justificar os caminhos de Deus para o homem” é a frase
conhecida e ambiciosa de Milton), que são os fundamentos da América moral. Eu
tudo sentia positivamente nos dias de minha juventude como agora em meus anos
avançados; queria formular um poema em que todos os pensamentos ou fatos deveriam
direta ou indiretamente ser ou conspirar para uma crença implícita na sabedoria,
saúde, mistério, beleza de todos os processos, todo objeto concreto, toda
existência humana ou outra existência, não apenas considerado do ponto de
vista do todo, mas de cada um.
Enquanto não posso compreendê-lo ou explicá-lo, acredito inteiramente em uma chave e um propósito na natureza, inteira e diversificada; e que os resultados invisíveis e espirituais, tão reais e definidos quanto os visíveis, são a causa de toda a vida concreta e de todo o materialismo, através do tempo. Meu livro deve emanar vivacidade e alegria legitimamente o bastante, pois surgiu desses elementos e tem sido o conforto de minha vida desde que o iniciei originalmente.
Uma das razões geradoras das Folhas foi a minha convicção (tão forte hoje como sempre) de que o desenvolvimento mais elevado dos Estados Unidos há de ser o espiritual e o heróico. Ajudar a disparar e favorecer esse crescimento—ou mesmo chamar a atenção para ele ou para a sua necessidade—é propósito do início, do meio e do fim dos poemas. (De fato, quando realmente decifrado e resumido até o fim, arando honestamente o solo inculto da média da humanidade—não meramente um “bom governo”, no senso comum—é a justificação e a principal razão de ser destes Estados Unidos.)
Vantagens isoladas em qualquer categoria ou graça ou fortuna —os diretos ou indiretos filamentos de toda a poesia do passado—são em minha opinião detestáveis para o gênio republicano e não oferecem fundamentos para os versos que a ele se coadunam. Poemas estabelecidos, eu sei, têm a grande vantagem de cantar aquilo que já foi cumprido, tão cheios de glórias, lembranças queridas às mentes dos homens. Mas o meu livro é um candidato para o futuro. “Toda a arte original”, afirma Taine, de qualquer modo, “é regulada por si mesma, e nenhuma arte original pode ser regulada por algum fator externo; ela carrega o seu próprio contrapeso e não o recebe de alguma outra parte — vive de seu próprio sangue”—um consolo para as minhas contusões freqüentes e minha intratável vaidade.
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Como este texto é talvez principalmente uma tentativa de uma declaração pessoal ou ilustração, permitirei a mim mesmo, como auxílio adicional, extrair a seguinte anedota do livro Anais dos pintores da Antiguidade, decorado por mim na juventude. Rubens, o pintor flamengo, em uma de suas andanças pelas galerias dos antigos conventos, deparou-se com uma obra singular. Após observála e muito refletir sobre ela por um bom tempo, e ouvir as críticas de seu séquito de alunos, disse a eles, em resposta aos seus questionamentos (a respeito da escola à qual a obra pertenceria): “Não acredito que o artista, desconhecido e talvez não mais entre os vivos, que deu ao mundo este legado, pertenceu alguma vez a qualquer escola, ou pintou qualquer coisa além deste quadro, que é uma façanha pessoal—uma parte da vida de um homem”.
Folhas de Relva, de fato (nunca será demais reiterá-lo), foi o afloramento de minha própria natureza pessoal, emocional ou outra, —uma tentativa, do começo ao fim, de registrar uma pessoa, um ser humano (eu mesmo, no final do século XIX, na América) livre, inteira e verdadeiramente. Não encontrei qualquer registro pessoal similar na literatura atual que para mim tenha sido satisfatório. Porém não é em Folhas de Relva, distintamente como literatura, ou algo dessa espécie, que fui nutrido ou resolvi minhas reivindicações. Ninguém alcançará meus versos se insistir em vê-los como performance literária, ou procurar em uma tal performance, ou mirando principalmente na direção da arte ou da estética.
Digo que nenhuma terra ou pessoa ou circunstância jamais existiu que precisasse tanto de uma raça de cantores e de poemas diferentes de todos os outros, e rigidamente os seus próprios, como a terra e as pessoas e as circunstâncias de nossos Estados Unidos precisam hoje de tais cantores e poemas, e para o futuro. E ainda mais, enquanto estes Estados continuarem a absorver e forem dominados pela poesia do Velho Mundo, e permanecerem desabastecidos de poesia autóctone, para expressar, vitalizar e dar cor e definição ao seu sucesso material e político, e ministrá-los de modo distintivo, sentirão a insuficiência de uma nacionalidade de Primeira Classe e permanecerão defeituosos. Na liberdade de meu dia que termina, dou-te, leitor, a mesma conversa tagarela de antes, pensamentos, lembranças,
Ociosamente à deriva com o refluxo, Tais ondulações, vozes mal ouvidas, ecos que vêm da praia.
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Concluo com dois itens para o gênio imaginativo do Oeste, quando ele se ergue valorosamente—primeiro, o que Herder ensinou ao jovem Goethe, que a poesia verdadeiramente grande é sempre (como os cânticos homéricos ou bíblicos) o resultado de um espírito nacional, e não o privilégio de uns poucos polidos e seletos; segundo, que as mais fortes e mais doces canções ainda estão por ser cantadas.
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A publicação de um folheto contendo 12 poemas sem título, de um autor
até então desconhecido, assinalou, em 1855, a passagem para um novo ciclo
cultural nos Estados Unidos. A data em que o texto apareceu, 4 de julho, Dia da
Independência norteamericana, seria, mais tarde, associada a uma simbólica
libertação de influências estrangeiras e à criação de um
idioma próprio,
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indiscutivelmente nativo. Com Folhas de Relva, a poesia das
Américas cruzava os portais da modernidade.
O autor dos poemas, batizado como Walter Whitman Filho, nasceu a 31 de maio de 1819 em West Hills, Huntington, Long Island, sendo o segundo de nove filhos de um casal muito simples: o pai era um carpinteiro e a mãe uma dona de casa analfabeta. Pouco depois do nascimento de Walter, a família mudou-se para o Brooklyn, onde o menino foi criado entre os quakers*.
A vida familiar de Walter trouxe-lhe muitas desventuras: a mãe vivia enferma; o pai era um homem arredio e ausente; uma das irmãs, Hannah, era neurótica; Jesse, o irmão mais velho, teve sífilis e morreu num manicômio; outro irmão, Andrew, era um jovem vaidoso que não se conformava com a pobreza; e Edward, o caçula, era deficiente mental. George, o mais bem-sucedido entre todos (foi nomeado inspetor pela Direção de Obras Hidráulicas), jamais se interessou pelo trabalho literário de Walter. Muito tempo depois de Folhas de Relva ter sido considerada uma obra reveladora de novos horizontes, George admitiu que não tinha dado a menor importância à obra do irmão: “Vi o livro, mas não o li. Não pensei que valesse a pena lê-lo. Nossa mãe pensou o mesmo”, declarou.
Aos 11 anos, Whitman deixou de freqüentar a escola e passou a trabalhar como
mensageiro de um escritório de advocacia; aos 12, tornou-se aprendiz de impressor e,
aos 13, trabalhava nas oficinas do jornal Long Island Star. Sua
adolescência foi marcada pela inquietude. Precisava trabalhar, mas não gostava
de sentir-se amarrado, dizia que “só queria viver”. Aos 17 anos, decidiu deixar as
atividades em empresas de jornalismo e tornar-se professor, e nos três anos seguintes
lecionou em sete escolas rurais, alojando-se nas casas de seus alunos. Aos 20 anos, o
jovem novamente mudou
Quakers: grupo religioso de tradição
protestante, denominada Sociedade dos Amigos, criada por volta de 1652 pelo inglês
George Fox. Os quakers reagiram contra os abusos da Igreja Anglicana, alegando ter
influência direta do Espírito Santo. Os membros da Sociedade dos Amigos
receberam a alcunha de quakers (tremedores) em virtude de suas
manifestações espirituais durante os cultos. Refutavam qualquer
organização clerical e preferiam viver no recolhimento, valorizando a pureza
moral e a prática ativa do pacifismo e da filantropia. Perseguidos na Inglaterra
por Carlos II, emigraram em massa para os Estados Unidos, onde, em 1681, criaram, sob a
liderança de William Penn, a colônia da Pensilvânia.
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de opinião. Voltou à cidade natal de Huntington, onde adquiriu uma
máquina impressora e fundou o seu próprio jornal, o Long
Island. Contudo, o empreendimento que começara com grande entusiasmo, teve
vida curta. Após um ano trabalhando como factótum do próprio diário,
fechou-o e foi novamente em busca de emprego na imprensa da região. De jornal em
jornal, tornou-se, aos 27 anos, redator do Brooklyn Eagle.
A essa altura já escrevia em prosa e verso, e alguns de seus trabalhos haviam sido publicados. A prosa era empolada e retórica. Os contos tinham títulos lúgubres como “Um impulso malvado”, “História de um assassino fugitivo” e “A volta do terrível Frank”. Seus poemas eram ainda piores. Compostos em metros vulgares e com rimas forçadas, tratavam principalmente de temas violentos. Eram expressões de sentimentos medíocres, revestidas de uma forma absurda, sem qualquer virtude técnica. Em resumo, eram poemas sem brilho, mesmo em se tratando de um autor principiante.
Whitman foi redator do Eagle até os 30 anos. Escrevia alguns artigos razoáveis e outros medíocres. Escreveu também Franklin Evans ou O Abstêmio, uma verdadeira apologia da temperança disfarçada de romance. Também nesse período, ajudava o pai na construção de casas, mas sabia vestir-se com elegância, gostava muito de ir ao teatro e à ópera (consta que seu compositor favorito era Donizetti), passeava pela Broadway e freqüentava rodas de discussão política e alguns eventos da alta sociedade.
Um amigo de Whitman falou-lhe de uma vaga no New Orleans Daily Crescent, e em fevereiro de 1848, acompanhado de seu irmão Jeff, que tinha então 15 anos, dirigiu-se ao Sul, passando pelos Alleghenies, atravessando Ohio e chegando ao Mississippi. Três meses mais tarde, porém, Whitman estava de volta ao Brooklyn, onde, durante um ano, foi redator do Freeman, um seminário liberal.
Foi também por volta dos 30 anos que Whitman começou a escrever em um novo estilo poético; abandonou os versos vulgares e torpes que havia publicado nos periódicos e passou a experimentar formas livres, sem rima, e com ritmo flexível, combinando acentos vigorosos e pulsações irregulares. As reiterações oportunas, os paralelismos e a cadência compensavam a ausência de metrificação, assemelhando-se bastante ao estilo dos salmistas hebraicos. Quando atingiu 35 anos, essas experiências alcançaram extraordinária culminação.
Em 1855, passou a assinar apenas Walt Whitman, em parte para
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a emancipação de suas produções anteriores, e entregou para
publicação, a uma pequena editora do Brooklyn, os originais de seus 12 poemas
polirítmicos, intitulados Folhas de Relva. O título era
uma glorificação do “herbário democrático”, que tanto se identificava
com o espírito norteamericano. O retrato em uma página de rosto revelava o
amadurecimento do autor. Os traços do diletante refinado haviam desaparecido: a
reluzente bengala e o fraque impecável deram lugar às toscas roupas de
operário, calças presas com cinto e botas de cano alto. A camisa aberta e o
chapéu inclinado para a frente davam-lhe um certo ar de libertino. Tal era a imagem
da lenda que ele mesmo começava a criar. é possível dizer que passou o
resto de sua vida elaborando essa lenda e que nela estava entremeada a sua grande
obra.
Na primeira edição de Folhas de Relva Whitman se apresentou como um operário, “amado pelos analfabetos”. Era comum aos autores da época elogiar-se a si mesmos em comentários anônimos. Whitman não foi exceção a essa regra. Desejoso de atrair numerosos leitores e querendo assegurar-se de que encontrariam uma nova personagem democrática, um novo poeta da democracia, escreveu: “Sendo de genuína estirpe americana, corpulento, vigoroso—de 36 anos de idade—jamais recorreu a remédios, jamais se vestiu de preto, sempre usou roupas grossas, frescas e limpas, desnuda a garganta, o peito da camisa liso e amplo, o rosto moreno de tom rosado, a barba entremeada de branco, o cabelo igual ao feno depois de segado nos campos; pessoa particularmente amada e procurada, sobretudo pelos jovens e os analfabetos; homem que não busca a companhia de literatos, jamais é encontrado nas tribunas, entre grupos de clérigos, funcionários ou professores; acham-no na baía, acompanhando os pescadores nas barcas, ou viajando num ônibus da Broadway, sentado junto ao condutor, ou com um grupo de vagabundos, percorrendo os amplos campos do país [. . .]. é homem no qual se adverte a singularidade consistente na ausência de toda a singularidade, cujo trato não se deslumbra, senão que produz fascinação tranqüilizadora do familiar e do costumeiro, de algo cuja existência se conhecia anteriormente, esperando-o com veemência; esse é Walt Whitman, o criador de uma literatura de nova espécie”.
É óbvio que Whitman, em busca da popularidade, exagerava, atribuindo a si o
extremo da mendicidade, apresentando-se como homem do rio, como “um dos debaixo”, querendo
que seus poemas
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vendessem com aspecto da linguagem vulgar dos marinheiros, dos condutores de ônibus e
vagabundos. Todavia, uma certa dose de imodéstia e auto-adulação era
desculpável e até necessária, já que teve de enfrentar o coro
vociferante de críticos contumazes. “O livro constitui uma impertinência para a
língua inglesa; quanto a seu sentimento, é uma afronta para a moral reconhecida
de um povo respeitável”, publicou o Christian Examiner num dos
comentários menos agressivos que se escreveram sobre a obra. “Devemos indicar este
monturo de sujeira às leis, as quais, com toda certeza, para cumprir seu fim,
hão de suprimir semelhante obscenidade. Não cremos que haja periódico
tão imundo para lhe reproduzir as passagens”, declarou o New York
Criterion. Mas o Boston Intelligencer superou o Criterion em má-fé: “Essa massa heterogênea de
inchação, egolatria, vulgaridade e disparates [. . .]. A bestialidade do autor
evidencia-se na descrição que faz de si mesmo e não nos ocorre melhor
recompensa que o látego para a violação da decência tão flagrante
como a que temos entre nós [. . .]. O autor deveria ser expulso a pontapés de
todo círculo de pessoas decentes, por se encontrar em nível mais baixo que o dos
animais. Não há inspiração nem método em seu balbuciar incoerente
e parece-nos que deve ser algum louco fugido do manicômio, que se debate em
lamentável delírio”.
Os críticos ingleses não foram menos cruéis. O London Critic disparou: “é possível que a mais ousada das nações tolere um poeta cujas indecências mal-cheirosas nos ofendem o olfato? Walt Whitman está tão alheio à arte, como um porco o está em relação à matemática”. A última frase parece um eco do comentário publicado pelo New York Times sobre o autor de Folhas de Relva: “trata-se de um centauro, semi-homem, semibesta [. . .] que fosse como um porco na imensa sujeira dos pensamentos obscenos”.
Paradoxalmente, as primeiras mostras de aprovação da obra vieram da puritana e recatada Nova Inglaterra. Charles Eliot Norton usou de prudência ao dizer: “Trata-se de curiosa obra escrita sem regras [. . .], não aparece nela a rima ou o verso livre, antes está composta numa espécie de prosa agitada, dividida em linhas, sem nenhum propósito de regularidade ou medida [. . .]. Mas o autor é uma nova luminária surgida na poesia”.
Edward Everett Hale, o famoso homem de letras de Boston, autor de O
homem sem pátria, foi ainda mais generoso em sua análise. Embora
admitisse que o livro era “estranho e inusitado”, declarou
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louçania, simplicidade e realismo de suas páginas, do mesmo modo como o homem
fatigado que se estende num prado e sente o prazer de ali estar, em meio à
vegetação que o rodeia [...]. Neste curioso livro apresentaram-se pequenos
esboços da vida—os quais, à medida que vão sendo desenvolvidos ante
nós, dão-nos a impressão de serem reais, tão reais que nos perguntamos
assombrados como puderam ser plasmados no papel”. Todavia, os encômios mais
inesperadamente desabridos vieram da parte do grande Sábio de Concord, o
filósofo Ralph Waldo Emerson. Aquele livro de um poeta desconhecido, publicado por um
editor obscuro, despertou em Emerson o mais eloqüente entusiasmo: “Meu caro senhor,
não me foge o valor das qualidades maravilhosas que brilham em Folhas de Relva. Vejo nesta obra o mais extraordinário exemplo de
inspiração e sabedoria que a América do Norte até agora produziu.
Senti grande prazer ao lê-la, já que a clareza e o vigor nos produzem gozo [. .
.]. Dou-lhe os meus parabéns por suas idéias independentes e corajosas...
Encontrei coisas incomparáveis, ditas de modo incomparável. Encontrei um valor
na forma de tratar os temas que me encantou e que só pode nascer de uma ampla
visão. Felicito-o no começo de sua grande carreira.”
Entretanto, os ecos proféticos da saudação de Emerson tardariam a se tornar realidade. Durante muito tempo ainda a obra de Whitman seria atacada, ridicularizada, vituperada. O próprio autor foi responsável em parte pelos ataques sofridos nos anos que se seguiram, porque se comprazia em provocar os grupos conservadores, sobretudo no que se referia às considerações sexuais de sua obra. Beirando o exibicionismo, escreveu, ele mesmo, um outro comentário anônimo para a imprensa, no qual criticava o próprio livro: “Não se pode esquecer que para Whitman o sexo é o grande princípio ordenador do universo. Ele fala do músculo do macho e da entranha fecunda da fêmea em suas páginas como de realidades benfazejas. . . Estende os braços à direita e à esquerda, convidando homens e mulheres a estreitar-se com ele num abraço de amor indiscutível, busca apertar-lhes as mãos, deseja o contato de seus colos e peitos e ama o som de suas vozes. Tudo o mais parece fundir-se em seu impetuoso carinho para com os seres humanos”.
O sentimento de carinho realmente transborda das Folhas de Relva, e um carinho universal, que a tudo e a todos abraça, na exaltação do divino medíocre, pois, ao glorificar-se a si mesmo, o poeta glorificou a humanidade inteira:
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Eu celebro o eu, num canto de mim mesmo,
E aquilo que eu presumir também presumirás,
Pois cada átomo que há em mim igualmente habita em ti.
Essa identificação entre um homem, o eu lírico e todos os homens é crescente em sua obra, na medida em que é acrescida de novos poemas, nas edições subseqüentes: a segunda tinha 384 páginas; os 12 poemas iniciais tornaram-se 32. A terceira edição, publicada cinco anos depois da primeira, tinha 456 páginas e continha 124 poemas novos, assim como correções radicais nos poemas originais. As edições posteriores sofreram acréscimos e correções menores, mas, somente em 1891, com a nona edição da obra, Whitman deu por encerrado o ciclo de revisões de Folhas de Relva, deixando para a posteridade o que também tem sido chamado de “edição do leito de morte”.
A obra lhe trouxe alguma fama, mas não lhe aumentou a renda. Dois anos depois da primeira edição, apertado pela fome, Whitman voltou ao jornalismo. Na primavera de 1857, aos 38 anos, foi nomeado redator do Brooklyn Daily Times e começou a atacar as falcatruas legalizadas, a prostituição organizada e as injustiças sociais aceitas pela maioria complacente.
Em 1861, estourou a Guerra de Secessão*. Antiescravista, Whitman
estava alinhado aos exércitos do Norte, a União, a mesma
que celebrou com tanta veemência em seus versos. Têm-se discutido as razões
pela qual não chegou a se alistar para os combates. Alguns atribuem essa escolha
às influências do pensamento pacifista dos quacker,
outros ao fato de que já se considerava velho aos 38 anos de idade. O mais
provável, contudo, é que tenha pesado a sua oposição inata à
disciplina obrigatória, sua incapacidade de submeter- se à rotina de
arregimentação. Em vez de se alistar, Whitman seguiu para a cidade de
Washington, que foi convertida num gigantesco hospital de guerra, e ali permaneceu durante
12 anos, entregando-se de corpo e alma a um intenso trabalho de enfermagem
Termo pelo qual se costuma designar a guerra civil entre o
sul e o norte dos Estados Unidos no período que vai de 1861 a 1865. O conflito, que
custou a vida de mais de 61.000 norte-americanos, foi provocado pela reação do
norte ao posicionamento separatista dos sulistas que queriam a permanência da
instituição da escravatura negra no país.
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e de apoio
psicológico aos soldados feridos ou enfermos. Em visita a hospitais, escreveu que
“há alguma coisa no amor humano, nas carícias e em sua magnética corrente
de simpatia que, de certo modo, proporciona mais alívio que todos os remédios do
mundo”.
Whitman não tinha rendimentos, mas prestava alguns serviços militares extras (como copiar documentos oficiais e escrever artigos), que lhe garantiam o sustento e ainda lhe possibilitavam oferecer aos seus doentes tabaco, selos, doces, açúcar para a limonada, algumas laranjas e maçãs e, às vezes, algum livro. Mantinha colóquios íntimos com aqueles soldados acamados e escrevia-lhes as cartas. Dessa experiência veio-lhe a inspiração para escrever uma comovedora série poética intitulada Toque de Recolher.
O estudo constante de si mesmo levou Whitman a sentir vivo interesse pelos demais; assim, em vez de compor abstratos hinos patrióticos à democracia, preferiu falar em suas páginas da beleza e do terror que a vida encerra, vida que ele julgava ser “plena de paixão, pulso e poderio”.
Os serviços prestados aos feridos de guerra amenizaram as críticas que a imprensa lhe fazia como escritor. Em 1865, dez anos depois da publicação de Folhas de Relva, o New York Times comentou Toque de Recolher afirmando que Whitman era deficiente de qualquer ponto de vista, como poeta, e suas páginas mostravam “uma pobreza de idéias evidenciada pelo tumulto de palavras incoerentes. Porém”, prosseguia o Times, “o Sr. Whitman possui melhores títulos para ser objeto da gratidão de seus compatriotas que os que possam resultar de sua vocação poética [. . .]. A devoção com que se dedicou aos mais penosos deveres nos hospitais de Washington durante a guerra honrará sua memória quando as Folhas de Relva tiverem murchado e o Toque de Recolher houver cessado de soar”.
A gratidão dos compatriotas por Whitman manifestou-se por meio de um membro do
Gabinete de Lincoln, e foi assim que o poeta recebeu um cargo no Departamento de Assuntos
Indígenas da Secretaria do Interior. Alguns meses depois, quando a nomeação
parecia consolidada, o Secretário do Interior, James Hartland, descobriu o livro de
Whitman num caixote fechado, leu-o aterrorizado e destituiu-o imediatamente. A
indignação de seus amigos se fez sentir nos meios políticos: William
Douglas O’Connor publicou o combativo folheto O Bom Poeta Gris, e a
destituição sumária converteu-se assim em uma transferência para o
escritório do pro-
med.00400.557.jpg curador-geral, onde o poeta trabalhou até os 53 anos. A partir dessa
idade, Whitman foi obrigado a ganhar a vida de um modo bem mais penoso: não só
teve de imprimir seus próprios livros como também teve de vendê-los. A
quinta edição de Folhas de Relva trazia uma nota
promocional sobre poemas soltos, como “Passagem para a índia” e “Visões
democráticas” que podiam ser comprados diretamente do autor.
Apegado à cidade de Washington, Whitman ali permaneceu até que fortes e constantes dores de cabeça (atribuídas a uma infecção contraída nos hospitais de guerra), crises de esgotamento e solidão levaram-no, aos 53 anos de idade, a visitar a mãe, que vivia com seu irmão George em Camden, New Jersey. Poucos dias após sua chegada, morreu-lhe a mãe. O poeta mergulhou em profundo abatimento e não quis sair dali. George deu-lhe um quarto no andar superior e Whitman permaneceu em Camden.
Tinha abandonado o círculo de seus amigos e a vida mudara visivelmente. Envelheceu rapidamente: dores espasmódicas faziamno parecer mais fraco do que realmente estava. Breves períodos de energia eram alternados com longos ataques de depressão. Em uma carta que escreveu nessa época ao crítico britânico Edward Dowden, que o havia elogiado sem reservas no além-mar, queixa-se asperamente de que ele, tanto quanto seus poemas, eram sistematicamente ignorados pelos organismos estabelecidos nos Estados Unidos, rejeitados pelas editoras e de que “o autor se vê privado de meios de subsistência”. Para vender seus livros, levava-os numa cesta pelas ruas de Camden. Ganhava algum dinheiro, mas os problemas de saúde impediam-lhe caminhadas mais longas, o que limitava sua venda.
Aos 65 anos vivia num quarto pequeno e cheio de jornais velhos, em uma velha casa da rua
Mickle, próxima a um cruzamento ferroviário de Camden. Os trens passavam muito
perto, fazendo grande barulho, e o cheiro de uma fábrica de fertilizantes era-lhe
insuportável. A viúva de um marinheiro cuidava da casa, preparava as
refeições do poeta e arrumava-lhe as camisas. Seus admiradores recolhiam e
enviavam-lhe algum dinheiro para as despesas. Oliver Wendel Holmes e Samuel L. Clemens
estavam entre aqueles que lhe ofereceram carruagens para se deslocar entre as cidades em
que ainda realizava conferências esporádicas, como a famosa conferência
sobre Lincoln, proferida durante um banquete na Filadélfia. Todavia, na maior parte
do tempo, recolhia-se acamado no seu pequeno
med.00400.558.jpg quarto do andar superior da casinha da rua
Mickle, em Candem. Julgava-se moribundo, mas não vencido. Passava por longas fases de
silêncio, sentado diante da lareira, agitando (ou como diria Edmund Grosse,
“irritando”) o fogo. Pensava muito na morte, fazia planos sobre o seu túmulo e
preparava uma série de despedidas.
Aos 72 anos, Whitman preparou a edição de 1891 (também conhecida como “a edição de seu leito de morte”) de Folhas de Relva, obra que agora contava não com os 12 poemas originais de 1855, mas com mais de trezentos poemas. Descrevia-se como uma “concha de carcaça dura, destroçada, mísera e velha, maltratada pelo tempo—sem pernas, sem poder mover-se um pouco que fosse, atirada a um lugar alto e seco sobre as areias da praia”. Pelos fins de dezembro de 1891, Whitman contraiu pneumonia. Apesar do estado grave, conseguiu ainda sobreviver todo aquele inverno. Morreu no dia 26 de março de 1892, dois meses antes de completar 73 anos. A autopsia revelou que tinha também uma tuberculose avançada.
A desabrida e luxuriosa sensualidade que caracteriza Folhas de
Relva, e em especial os poemas “Canção de mim mesmo” e “Os filhos de
Adão”, contrasta de modo estranho com a vida celibatária de Whitman. O poeta
nunca se casou e o único episódio em sua vida que poderia ter parecido amor foi
a relação que manteve com a Sra. Anne Gilchrist, crítica inglesa que se
considerava companheira daquele solteirão de idade madura. Contudo, Whitman adotou
uma estudada atitude evasiva, acabando por retirar-se. Tanto George, seu irmão,
quanto Peter Doyle, que foi seu amigo entre os 45 e os 50 anos de idade, afirmam
categoricamente que Walt não se interessava pelas mulheres. O poeta se precatava
quanto a essa sua singularidade fazendo distinção nítida entre
“amorosidade”, o amor físico entre os sexos, e “afetividade”, que julgava ser uma
“atração pessoal entre os homens que é mais forte que a amizade”. Os poemas
de “Cálamo” celebram essa “afetividade”, com uma combinação de audácia
e ingenuidade: audácia, porque o poeta estava consciente das implicações e
ambigüidades de seus poemas; ingenuidade, porque identificava “o robusto amor, de
homens que se beijam uns aos outros com a saudação natural e espontânea dos
amigos na América do Norte”. A natureza dupla de Whitman o levou a interpretar
erroneamente o significado de camaradagem, mas proporcionou-lhe uma sensibilidade
além do normal; aumentou-lhe a consciência das complexidades multiformes do ser,
as infinitas variedades
med.00400.559.jpg do sofrimento e, sobretudo, fez-lhe conhecer a piedade básica e a
solidariedade.
Aqueles que admiravam Whitman sem reservas causaram-lhe tantos prejuízos quanto seus opositores. Para eles, o poeta era um clarividente e seus livros um novo evangelho, a moderna “bíblia da democracia”. Deixando de lado qualquer senso crítico e mergulhando no mais completo fanatismo, homens tais como O’Connor, Burroughs e Bucke concluíram que Whitman era a encarnação da natureza, uma criação à parte, um criador sem precursores. Na realidade, a filosofia de Whitman é um amálgama na qual se divisam as mais diversas fontes. Tudo o que lia era canalizado e filtrado por sua personalidade absorvente. A mais importante de suas fontes inspiradoras é justamente aquela que não foi bem apreciada: Emerson! Muitas passagens da prosa do Sábio de Concord encontram na poesia de Whitman o seu equivalente. Por exemplo, em O intelectual norte-americano, Emerson terminava assim: “Temos escutado demasiado tempo as cortesãs musas européias. Já se suspeita que o espírito do homem livre da América é tímido, imitativo, servil. . . Que não seja assim, irmãos e amigos, queira Deus que esse não seja o nosso espírito. Caminharemos com nossos próprios pés, trabalharemos com nossas próprias mãos, expressaremos nossas próprias idéias”. Cerca de 20 anos depois de Emerson ter escrito essas linhas, elas se tornaram o tema da desafiadora “Canção à exposição”, de Whitman:
Vem, Musa, emigra da Grécia e da Jônia, Cancela, por favor, aquelas imensas dívidas já tão pagas, Aquela questão de Tróia e a da ira de Aquiles, e Enéas, as andanças de Odisseu, Nos rochedos de teu níveo Parnaso está anunciado “mudamos” e “aluga-se”, Repete-o em Jerusalém, coloca um sinal bem alto no portão de Jafa e no Monte Moriá, Faze o mesmo nas paredes dos teus castelos alemães, franceses e espanhóis, e nas coleções italianas, Para que se possa conhecer uma esfera melhor, mais nova e mais dinâmica, um domínio amplo, não experimentado te espera, e pede por ti.Não é preciso negar as influências que recebeu para afirmar que
med.00400.560.jpg Whitman foi, de fato,
um inovador. Foi ele o pai do verso livre, ampliou grandemente os temas tratados até
então, libertando assim o espírito da poesia moderna. E não são apenas
as suas inovações técnicas que fizeram dele o arauto eloqüente de uma
civilização em acelerado ritmo de desenvolvimento. Em tudo que escreveu, sentese
o pulsar de uma América às vezes materialista, mas sempre crescente. Em certo
grau, Whitman conseguiu se expressar em um idioma autóctone, genuinamente americano,
diferente do inglês. Por vezes, falava das folhas como de uma experiência
lingüística. A poesia—afirmava ele—deve expressar-se em tom
familiar, baseando-se em alicerces amplos e baixos, aderidos ao solo. Em “Uma cartilha
americana” exortava a utilização livre das vozes populares. “Dez mil americanos
autóctones estão se formando, ou já se formaram, grande número dos
quais poderiam ser empregados pelos escritores norte-americanos—palavras que
deveriam ser acolhidas, por serem de estirpe nacional. De onde vem a propriedade, o
estranho encanto dos nomes aborígines? Monangahela—como nos deleita o ouvido
com seu feitiço! [. . .] Quem sabe utilizar convenientemente as palavras, utiliza as
coisas—elas destilam força e beleza em sua boca—são milagres de suas
mãos, milagres de seus lábios [. . .]. Precisamos de palavras flexíveis,
rotundas, perduráveis. Imaginais que as liberdades e as fibras constitutivas destes
estados só têm que ver com delicadas palavras femininas? Com maneirosas palavras
cavalheirescas?” Na prática, contudo, o vocabulário de Whitman era uma estranha
mescla de linguagem comum e parágrafos literários, uma mistura, às vezes,
incongruente, de espontaneidade e afetação. Se por um lado defendia a força
da linguagem vulgar e elogiava a gíria, por outro fez o uso extravagante de
estrangeirismo, como no verso: “embaraçoso éclaircissement por tanto tempo aprazado” e “escuta meu contabile—Oh Liberdad!” e coisas absurdas como
“imperturba-me”, “filosofistas” e “exaltai o poderoso eidolon da
terra”. Esses feitos inconseqüentes não assustavam Whitman: “Contradigo-me?”,
dizia erguendo os ombros. “Pois bem, contradigo-me. Sou muito amplo: contenho
multidões.” Seu credo estava solto pelos quatro ventos, divertia-se em dissolver as
formas, tirava os leitores das bibliotecas empoeiradas e colocavaos em contato com a
radiante luz solar e o ar livre. Para Whitman o cósmico e o cotidiano eram
sinônimos:
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Creio que uma folha de relva não faz menos que a jornada diária das
estrelas,
E a formiga é igualmente perfeita, e o grão de areia, e o ovo da
garriça,
E a raineta é uma obra-prima para o altíssimo.
E um corredor de amoras pretas adornaria os salões do céu,
E a mais estreita junta de minha mão faz qualquer máquina parecer
desprezível,
E a vaca ruminando com sua cabeça volúvel supera qualquer
estátua,
E uma ratazana é um milagre suficiente para dobrar os joelhos de
sextilhões de infiéis.
Whitman desagrada muitos leitores, não somente pela falta de gosto ocasional, mas também porque em suas obras existe uma loquacidade excessiva e uma constante aglutinação do transcendental e do trivial em fastidiosos catálogos. No entanto, em seus melhores textos tudo está livre de afetação e os poemas se elevam a uma região em que ganham as dimensões da eternidade. Suas linhas são densas e podem ser a um só tempo sensuais e comovedoramente ternas. São tão dramáticas quanto um juramento veemente, e tão graves como os salmos que lhes serviram de modelo. Tudo em Whitman contribui para manifestar e conciliar as suas próprias contradições. Mas a aceitação indiscriminada que está implícita em Whitman é a medula de sua fé. A forma de seus poemas resulta da essência de seu afeto monista, de sua capacidade de abarcar, no mesmo amplexo de mística afirmação, a beleza e a fealdade, o bem e o mal, o simples e o complexo. é necessário admitir que Folhas de Relva é obra desigual, descuidada e até sem forma; mas é também algo de monumental, é um livro gigantesco. Não constitui um único pico isolado nas alturas, mas, sim, uma variedade de picos em alturas as mais distintas. Se alguns de seus abismos parecem descer abaixo do nível do mar, suas alturas produzem estonteante vertigem, já que sua imensa elevação foi poucas vezes ultrapassada. Além disso, não resta dúvida de que o livro se identifica com o autor. De suas páginas emerge Whitman como personagem desafiadora e polêmica, enigmática, cheia de arestas e extravagante, mas como um colosso de seu tempo e de todos os tempos.
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opúsculo contendo 12 poemas. Fim de um círculo cultural e início de
outro. Adoção de um idioma próprio, nativo. Falece o pai de
Whitman.
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| Introdução | 11 |
| FOLHAS DE RELVA | |
| Letreiros | |
| Eu canto o meu próprio Ser | 25 |
| À medida que eu refletia em silêncio | 25 |
| Na cabine dos navios em pleno mar | 26 |
| Às terras estrangeiras | 27 |
| A um historiador | 27 |
| A ti, causa antiga! | 28 |
| Espectros | 28 |
| Por ele eu canto | 31 |
| Enquanto eu lia o livro | 31 |
| Ao começar os meus estudos | 32 |
| Precursores | 32 |
| Para os Estados Unidos | 32 |
| Jornadas pelos Estados Unidos | 33 |
| Para uma certa cantarina | 33 |
| Eu imperturbável | 34 |
| Sabedoria | 34 |
| A nau saindo | 34 |
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| Ouço a América cantando | 35 |
| Que lugar está sitiado? | 35 |
| Ainda assim eu canto o um | 35 |
| Não fecheis as vossas portas | 36 |
| Poetas do porvir | 36 |
| Para ti | 36 |
| A ti, leitor | 37 |
| Saindo de Paumanok | 37 |
| Canção de mim mesmo | 49 |
| Filhos De Adão | |
| Ao jardim, o mundo torna | 109 |
| Desde os rios confinados à dor | 109 |
| Eu canto o corpo elétrico | 111 |
| Uma mulher espera por mim | 119 |
| O Eu espontâneo | 121 |
| Uma hora para a loucura e o regozijo | 123 |
| Do encapelado oceano da multidão | 124 |
| Eras e eras retornando a intervalos | 125 |
| Nós também, por quanto tempo fomos enganados | 125 |
| Ó hímen! Ó himeneu! | 126 |
| Sou aquele que sofre por amor | 126 |
| Momentos puros | 126 |
| Certa vez passei por uma cidade populosa | 127 |
| Eu vos escutei, solenes e doces tubos do órgão | 127 |
| De frente para o oeste, no litoral da Califórnia | 128 |
| Como Adão ao amanhecer | 128 |
| Cálamo | |
| Por caminhos nunca antes trilhados | 129 |
| Folhagem perfumada de meu peito | 130 |
| Quem quer que me estejas agora segurando nas mãos | 131 |
| Por ti, ó Democracia | 133 |
| Estes poemas canto na primavera | 133 |
| Não tendo de meu peito estriado apenas | 135 |
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| Da terrível dúvida das aparências | 135 |
| O princípio de toda a metafísica | 136 |
| Registradores das idades conseqüentemente | 137 |
| Ouvi no fim do dia | 137 |
| És tu mais uma pessoa atraída por mim? | 138 |
| Raízes e folhas abandonadas a si mesmas | 139 |
| Não as chamas que aquecem e consomem | 139 |
| Gotas caídas | 140 |
| Cidade de orgias | 140 |
| Contempla esta face morena | 141 |
| Vi, em Louisiana, um carvalho vivo crescendo | 141 |
| A um desconhedico | 142 |
| Neste momento, enternecido e reflexivo | 142 |
| Ouvi dizer que es acusações foram contra mim | 143 |
| A relva dos prados marcando a divisa | 143 |
| Quando examino a fama conquistada | 143 |
| Nós, dois meninos, juntos e atados um ao outro | 144 |
| Uma promessa para a Califórnia | 144 |
| Aqui as folhas mais delicadas de mim | 145 |
| Nenhuma máquina para economizar mão-de-obra | 145 |
| Uma visão de relance | 145 |
| Uma folha de mão em mão | 146 |
| Terra, minha imagem | 146 |
| Sonhei em um sonho | 146 |
| Para que achas que tenho esta pena nas mãos? | 147 |
| Para o leste e para o oeste | 147 |
| Algumas vez, estando com aquele a quem amo | 147 |
| Para um jovem do oeste | 148 |
| Âncora encalhada para sempre, ó amor! | 148 |
| Em meio à multidão | 148 |
| Ó tu, para quem com freqüência e em silêncio eu acorro | 149 |
| Aquela sombra minha imagem | 149 |
| Pleno de vida agora | 149 |
| Salut au monde! | 150 |
| Canção da estrada aberta | 160 |
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| Atravessando a balsa do Brooklyn | 170 |
| Canção do Respondente | 176 |
| Nossa antiga feuillage | 181 |
| Uma canção de alegrias | 186 |
| Canção do grande machado | 193 |
| Canção à exposição | 204 |
| Canção da sequóia | 214 |
| Uma canção sobre a Terra que gira | 226 |
| Juventude, dia, velhice e noite | 232 |
| Aves De Arribaçâo | |
| Canção do universal | 233 |
| Pioneiros! Ó pioneiros! | 235 |
| Para ti | 239 |
| França, o 18º ano destes Estados | 242 |
| O eu e o que é meu | 243 |
| Ano de meteoros (1859–60) | 245 |
| Com antecedentes | 246 |
| Um carro alegórico na Broadway | 248 |
| À Deriva No Mar | |
| Saindo do berço, para sempre embalado | 252 |
| Quando refluí com o oceano da vida | 258 |
| Lágrimas | 261 |
| Ao pássaro navio-de-guerra | 262 |
| Na cabine de comando de um navio | 262 |
| À noite, na praia | 263 |
| O mundo submarino | 264 |
| Na praia, sozinho, à noite | 265 |
| Canção para todos os mares, para todas as embarcações | 266 |
| Patrulhando Barnegat | 267 |
| Depois da embarcação marítima | 267 |
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| À Margem Da Estrada | |
| Uma balada de Boston (1854) | 269 |
| Europa, os 72º e 73º anos destes Estados | 271 |
| Um espelho de mão | 273 |
| Deuses | 273 |
| Gérmens | 274 |
| Pensamentos | 275 |
| Quando ouvi o astrônomo erudito | 275 |
| Perfeições | 275 |
| Ó meu eu! Ó vida! | 276 |
| Para um Presidente | 276 |
| Sento-me e observo | 276 |
| Os ricos doadores | 277 |
| O gracejo das águias | 277 |
| Vagando em pensamento | 278 |
| O quadro de uma fazenda | 278 |
| O espanto de uma criança | 278 |
| O corredor | 278 |
| Lindas mulheres | 279 |
| Mãe e bebê | 279 |
| Pensamento | 279 |
| De viseira abaixada | 279 |
| Pensamento | 279 |
| Deslizando sobre tudo | 280 |
| Nunca veio sobre ti uma hora | 280 |
| Pensamento | 280 |
| A velhice | 280 |
| Lugares e tempos | 280 |
| Oferendas | 281 |
| Aos Estados | 281 |
| O Rufar Do Tambor | |
| Ó primeiramente, canções para um prelúdio | 282 |
| Mil oitocentos e sessenta e um | 284 |
| Rufai! Rufai, tambores! | 285 |
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| Saindo de Paumanok, eu vôo como um pássaro | 286 |
| Canção do estandarte ao amanhecer | 287 |
| Erguei-vos, ó dias, de vossas profundezas insondáveis | 293 |
| Virgínia—O Oeste | 295 |
| Cidade dos navios | 296 |
| A história do centenário | 297 |
| A cavalaria cruzando um baixio | 301 |
| Bivaque na encosta da montanha | 302 |
| Corporações do exército em marcha | 302 |
| Próximo à chama intermitente do bivaque | 303 |
| Retorna dos campos, pai | 303 |
| Minha estranha vigilância no campo, certa noita | 305 |
| Uma marcha em colunas sob pressão e a estrada desconhecida | 306 |
| Uma visão no acampamento no amanhecer cinzento e sombrio | 307 |
| Quando aborrecido andei sem rumo pelas florestas da Virgínia | 308 |
| Não foi o comandante | 308 |
| O ano que tremeu e cambaleou | 309 |
| O médico de feridas | 309 |
| Por muito tempo, tempo demais, América! | 312 |
| Dá-me o sol esplêndido e silencioso | 312 |
| Hino fúnebre para dois veteranos | 314 |
| Sobre a carnagem rosa, uma voz profética | 315 |
| Vi o velho General na baía | 316 |
| A visão dos artilheiros | 317 |
| Etiópia saudando as cores | 318 |
| A juventude não me pertence | 319 |
| Corrida de veteranos | 319 |
| Mundo, preste bem atenção | 319 |
| Ó rapaz dos prados de rosto bronzeado | 319 |
| Olha para baixo, lua bela | 320 |
| Reconciliação | 320 |
| Solene, como de um em um | 320 |
| Quando repouso minha cabeça no teu colo, companheiro | 321 |
| Delicado agrupamento | 321 |
| Para um certo civil | 322 |
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| Contempla, vitoriosa sobre os picos | 322 |
| Espírito cuja obra está completa | 323 |
| Adeus a um soldado | 324 |
| Volta, ó Liberdade | 324 |
| Na direção do solo forrado de folhas caminham | 325 |
| Memórias Do Presidente Lincoln | |
| Quando os lilases florescidos duraram na varanda | 326 |
| Ó Capitão! meu Capitão! | 334 |
| Silenciados sejam os acampamentos hoje | 335 |
| Este pó foi um dia o homem | 335 |
| Na margem do Ontário azul | 336 |
| Reversões | 351 |
| Regatos Do Outono | |
| Como conseqüência, etc. | 352 |
| O retorno dos heróis | 353 |
| Havia uma criança indo adiante | 359 |
| Velha Irlanda | 361 |
| A casa morta da cidade | 361 |
| Esta mistura | 362 |
| Para um revolucionário europeu derrotado | 364 |
| Terras anônimas | 366 |
| Canção pelo tempo de lilás | 367 |
| Desenhos para uma tumba | 373 |
| Saindo de trás desta máscara | 375 |
| Vocalismo | 376 |
| Para aquele que foi crucificado | 378 |
| Vós, condenados em julgamentos nas cortes | 378 |
| Leis para as criações | 379 |
| Para uma prostituta comum | 380 |
| Procurei por um longo tempo | 380 |
| Pensamento | 381 |
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| Milagres | 381 |
| Faíscas da roda | 382 |
| A um pupilo | 383 |
| Desentranhado das entranhas | 383 |
| O que sou eu, afinal | 384 |
| Cosmos | 384 |
| Outros podem louvar aquilo de que gostam | 385 |
| Quem aprende minha lição inteira? | 385 |
| Testes | 387 |
| A tocha | 387 |
| Ó estrela da França | 387 |
| O domador de bois | 389 |
| O pensamento de um velho homem sobre a escola | 390 |
| Vagando na manhã | 390 |
| Música italiana em Dakota | 391 |
| Com todos os teus dons | 392 |
| Minha galeria de fotos | 392 |
| Os Estados da pradaria | 392 |
| Orgulhosa música da tempestade | 393 |
| Passagem para a Índia | 399 |
| Prece de Colombo | 408 |
| Os que dormem | 410 |
| Transposições | 418 |
| Pensar sobre o tempo | 419 |
| Sussurros Da Morte Celeste | |
| Aventuras-te agora, ó alma | 426 |
| Sussurros da morte celeste | 426 |
| Cantando o quadrado deífico | 427 |
| Sobre ele, a quem amo dia e noite | 429 |
| Ainda, ainda, tuas horas de depressão | 430 |
| Como se um fantasma me acariciasse | 430 |
| Garantias | 431 |
| Anos de areia movediça | 432 |
| Aquela música sempre está em torno de mim | 432 |
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| Que navio aturdido no mar | 433 |
| Uma aranha paciente e silenciosa | 433 |
| Vivendo sempre, sempre morrendo | 433 |
| Para alguém que brevemente morrerá | 434 |
| Noite nas pradarias | 434 |
| Pensamento | 435 |
| A última invocação | 436 |
| Quando assistia aos agricultores arando a terra | 436 |
| Reflexivo e vacilante | 436 |
| Tu, mãe, com tua progênie à altura | 437 |
| Um retrato de Paumanok | 442 |
| Do Meio-Dia À Noite Estrelada | |
| Teu orbe suspenso inteiramente encantador | 443 |
| Faces | 444 |
| O trombeteiro místico | 448 |
| Para uma locomotiva no inverno | 451 |
| Ó Sul magnético | 452 |
| Mannahatta | 453 |
| Tudo é verdade | 454 |
| Uma canção-enigma | 455 |
| Sempre mais alto | 456 |
| Ah, pobrezas, encolhimentos e recuos amuados | 457 |
| Pensamentos | 458 |
| Médiums | 458 |
| Tece, minha vida intrépida | 459 |
| Espanha, 1873–74 | 459 |
| Próximo à ampla praia de Potomac | 460 |
| Dos longínquos desfiladeiros de Dakota | 460 |
| Antigos sonhos de guerra | 461 |
| Estamenha densamenta matizada | 462 |
| O melhor que vejo em ti | 462 |
| Espírito que formou este cenário | 463 |
| Quando ando, nestes dias majestosos | 463 |
| Uma meia-noite clara | 464 |
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| Canções De Despedida | |
| À medida que a hora se aproxima | 465 |
| Anos de modernidade | 465 |
| Cinzas dos soldados | 467 |
| Pensamentos | 469 |
| Canção do crepúsculo | 470 |
| Igualmente em teus portais, morte | 473 |
| Meu legado | 473 |
| Melancólico ao meditar sobre a morte dela | 474 |
| Acampamentos verdes | 474 |
| O soluçar dos sinos | 476 |
| Quando eles se aproximam do fim | 476 |
| Alegria, colega de bordo, alegria! | 476 |
| O desejo inenarrável | 477 |
| Portais | 477 |
| Estes cânticos | 477 |
| Agora finale para a margem | 477 |
| Até breve! | 478 |
| Primeiro Anexo: Areias Nos Setenta | |
| Mannahatta | 481 |
| Paumanok | 481 |
| De Montauk Point | 481 |
| Para aqueles que falharam | 482 |
| Um cântico encerrando sessenta e nove | 482 |
| Os soldados mais corajosos | 482 |
| Uma fonte de tipo | 483 |
| Quando aqui me sento para escrever | 483 |
| Meu canário | 483 |
| Perguntas para o meu septuagésimo ano | 483 |
| Os mátires de Wallabout | 484 |
| O primeiro dente-de-leão | 484 |
| América | 484 |
| Memórias | 485 |
| Hoje e tu | 485 |
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| Depois da fascinação do dia | 485 |
| Abraham Lincoln, nascido em 12 de fevereiro de 1809 | 485 |
| Selecionado dos espetáculos de maio | 486 |
| Dias serenos | 486 |
| Fantasias em Navesink | 486 |
| Dia de eleição, novembro de 1884 | 490 |
| Com lábios arrogantes vigorosos, ó Mar! | 490 |
| A morte do General Grant | 491 |
| Jaqueta vermelha (do topo do mastro) | 492 |
| Monumento de Washington, fevereiro de 1885 | 492 |
| Daquela tua alegre garganta | 493 |
| Broadway | 493 |
| Para captar a cadência final das canções | 494 |
| Velho Salt Kossabone | 494 |
| O tenor morto | 495 |
| Continuidades | 496 |
| Yonnondio | 496 |
| Vida | 497 |
| "Indo a algum lugar" | 497 |
| Pequeno o tema de meu Canto | 497 |
| Verdadeiros conquistadores | 498 |
| Os Estados Unidos para os críticos do Velho Mundo | 498 |
| O pensamento tranqüilizador de todos | 499 |
| Agradecimentos em idade avançada | 499 |
| Vida e morte | 500 |
| A voz da chuva | 500 |
| Logo as folhas do inverno hão de estar aqui | 500 |
| Enquanto não esquecemos o passado | 501 |
| O veterano moribundo | 501 |
| Lições mais fortes | 502 |
| Um crepúsculo nos prados | 502 |
| Vinte anos | 502 |
| Brotos de laranja de Flórida pelo correio | 503 |
| Crepúsculo | 503 |
| Vós, tardias e esparsas folhas de mim | 504 |
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| Não descarnados, contudo ramos apenas latentes | 504 |
| O Imperador morto | 504 |
| Como a chama sinalizadora dos gregos | 505 |
| O navio desmantelado | 505 |
| Agora, canções precedentes, adeus | 505 |
| Uma bonança quando a noite cai | 506 |
| Os cumes tremulantes da idade avançada | 506 |
| Depois do jantar e da conversa | 507 |
| Segunda Anexo: Adeus, Minha Ilusão | |
| Nota à guisa de prefácio para o segundo anexo | 508 |
| Navega para não mais retornar, iate fantasma | 510 |
| Últimas gotas demoradas | 510 |
| Adeus, minha ilusão | 511 |
| Adiante, adiante com os vossos mesmos pares aprazíveis | 511 |
| Meu septuagésimo primeiro ano de idade | 512 |
| Aparições | 512 |
| A pálida grinalda | 513 |
| Um dia terminado | 513 |
| Navio da idade avançada & A morte dos maliciosos | 514 |
| Ao ano pendente | 514 |
| Decifrando Shakespeare-Bacon | 515 |
| Daqui a muito, muito tempo | 515 |
| Bravo, exposição de Paris! | 515 |
| Sons de interpolaço | 516 |
| Para a brisa do crepúsculo | 517 |
| Velhos cantos | 518 |
| Uma saudação de Natal | 519 |
| Sons do inverno | 519 |
| Uma canção crepuscular | 519 |
| Quando o poeta surgiu inteiramente amadurecido | 520 |
| Osceola | 521 |
| Uma voz proveniente da morte | 522 |
| Um ensinamento persa | 523 |
| O lugar-comum | 524 |
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| "O Completo Divino Catálogo da Harmonia" | 524 |
| Miragens | 525 |
| O significado de Folhas de Relva | 526 |
| O que não foi exprimido | 526 |
| Grandioso é o visível | 527 |
| Botões invisíveis | 527 |
| Adeus, minha ilusão! | 527 |
| Um olhar retrospectivo sobre as estradas viajadas | 529 |
| Dados biográficos | 547 |
| Cronologia | 560 |
1. Atendendo a sugestões de leitores, livreiros e professores, a partir de certo número da coleção, começamos a publicar, de alguns autores, outras obras além da sua obra-prima. [back]
2. Tradutor e poeta. [back]
3. Hippolyte Adolphe Taine (Vouziers, 1828 — Paris, 1893): filósofo, historiador e crítico literário francês. [back]
4. A íntegra desse texto de Whitman encontra-se nesta edição, p. 527. [back]
5. CHARDIN, Teilhard de. Vida e pensamentos. São Paulo: Livro Clipping — Martin Claret, 2001, p. 99. [back]
6. Id., ibid. [back]
7. Id., ibid, p. 102. [back]
8. Id., ibid, pp. 104, 106. [back]
9. Id., ibid, pp. 106-107. [back]
10. BLOOM, Harold. Gênio — os 100 autores mais criativos da história da Literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 601-604. [back]
11. CHARDIN, Teilhard de. Op. cit., pp. 24-41. [back]
12. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 336. [back]
13. ROHDEN, Huberto. A metafísica do cristianismo. São Paulo: Martin Claret, 1991, p. 14. [back]
14. BLOOM, Harold. Op. cit. [back]
15. MONTEIRO, Irineu. Walt Whitman: Profeta da Liberdade. São Paulo: Martin Claret, 1984. [back]
16. MONTEIRO, Irineu. Op. cit., pp. 81-84. [back]
17. (Indubitavelmente, no Brooklyn, dentro de uma velha câmara mortuária, não marcada por distinções especiais, jazem amontoados neste momento os autênticos restos mortais dos mais dedicados e mais antigos revolucionários patriotas que estiveram nas prisões marítimas e prisões terrestres britânicas na época que foi de 1776 a 1783, provenientes de Nova Iorque e arredores e de toda a extensão de Long Island; originalmente foram eles enterrados — muitos milhares deles — em trincheiras nas areias de Wallabout) [back]
18. (Mais de oitenta e três graus ao norte — a cerca de um bom dia de navegação a vapor do Pólo por um de nossos velozes marinheiros em mar aberto — com superioridade, o explorador ouviu a canção de uma única emberiza-das-neves, alegremente ressoando sobre a desolação.) [back]
19. (Voltaire fechou uma famosa discussão clamando que um navio de guerra e a Grand Ópera eram provas suficientes do progresso da civilização e da França, em seus dias) [back]
20. (Quando eu já era quase um homem, vivendo no Brooklyn, Nova Iorque (meados de 1838) encontrei-me com um oficial da Marinha dos Estados Unidos que retornara do Forte Moultrie, S. C., e tive com ele longas conversas — soube da ocorrência abaixo descrita — a morte de Osceola. Esse último foi um jovem valente, líder Seminole (tribo indígena do sul da América do Norte) na guerra da Flórida que se travou naquele dias — que foi rendido e aprisionado por nossas tropas, e morreu literalmente de "coração partido", no Forte Moultrie. Adoeceu por estar confinado — os médicos e oficiais deram todas as liberdades e gentilezas possíveis para tentar salvá-lo; e então o final) [back]